sábado, 28 de novembro de 2020

HOMILIA PARA O I DOMINGO DO ADVENTO (Ano B) - Mc 13,33-37:

 


O ciclo litúrgico que se inaugura na Igreja a partir deste primeiro domingo do advento abre a leitura do Evangelho segundo Marcos. Para a meditação eclesial, a liturgia propõe o texto de Mc 13,33-37, a conclusão do seu sermão escatológico. Antes, porém, de nos colocarmos no horizonte do texto é importante que compreendamos três pontos: a especificidade dos dois primeiros domingos do advento, que se inserem no primeiro ciclo deste tempo litúrgico, que se encerra em dezessete de dezembro. Em seguida, compreender o contexto amplo do capítulo treze da catequese marcana, e, por fim, o contexto imediato do texto, a fim de colher e saborear sua mensagem.

O tempo do advento divide-se em dois momentos. O primeiro, que se estende até o dia dezessete do corrente mês, apresenta a temática do advento escatológico de Jesus. Ou seja, a liturgia faz com que o fiel, através dos textos bíblicos se abra para o horizonte da segunda vinda do Senhor. Já os domingos seguintes, são marcados pela temática simbólico-sacramental, ou se preferir memorial, da primeira vinda, celebrada com o santo natal. Ora, o Advento não é a espera de Alguém que ainda deve vir, mas é uma renovação do compromisso de tornar manifesto o Cristo que já veio e permaneceu com os seus. Portanto, o papel da comunidade cristã é tornar sempre mais visível a presença do Senhor através do amor. É o tempo para se abrir os olhos e reconhecer Deus no pequenino; no último. Compreendidas as especificidades do tempo do advento, principalmente situando-nos no horizonte do advento escatológico do Senhor, que prepara, portanto, sua segunda vida, e nos convida a estar vigilantes, é que se pode avançar na compreensão do evangelho dominical.

O contexto amplo do capítulo treze da catequese marcana situa-se no sermão escatológico concentrado pelo evangelista neste capítulo. Ele é chamado “apocalipse de Marcos”. Apocalipse significa revelação. Não se trata de tragédia ou catástrofe, mas da consolação do fiel, do povo, da humanidade por Deus. Este gênero literário serve-se de um vasto campo simbólico para transmitir uma mensagem de ânimo e de esperança em tempos de crise e de desolação. Na realidade, a literatura apocalíptica é essencialmente uma literatura de resistência, e a promessa de uma mudança radical para breve alimenta a força de resistência para a comunidade.

Importante consideração: o gênero literário apocalíptico não é uma futurologia, mas leituras da História, que está nas mãos de Deus em última análise. Fala do sofrimento do tempo presente, mas anunciam a intervenção decisiva de Deus, mantendo assim no povo oprimido a esperança, a vigilância e a firmeza. É este também o objetivo do discurso de Mc 13.

O texto que abre o tempo do advento situa-se na conclusão deste sermão escatológico. Imediatamente após estes ditos de Jesus (13,33-37), segue-se a narrativa de sua Paixão, Morte e ressurreição, segundo Marcos. Ora, os momentos finais da vida Jesus mostram o desfecho histórico de sua primeira vinda. Mas o mistério da Ressurreição abre a expectativa para a segunda vinda, a parusia – a plenitude do tempo novo inaugurado pelo anúncio do Reino proclamado por Jesus. Todavia, na incerteza do tempo, do momento em relação a esta volta do Senhor. Certo é, sem dúvida, o acontecimento. Incerto é o “quando”. Diante desta tensão, caberá ao discípulo acolher o convite de Jesus à vigilância.

Duas são as formas de ler o texto de hoje, unindo-as num mesmo horizonte; de acordo com o horizonte do texto, ao interno da narrativa de Marcos, o discípulo deverá tirar as pistas para superar o momento da tribulação pela qual passará o mestre, e saber se comportar diante dos eventos de sua paixão, morte e ressurreição; e a segunda forma é a da assimilação deste convite à vigilância frente a demora e da espera paciente da segunda vinda. A constante vigilância do cristão é toda ela um programa de ação. Mc 13 ensina a vigilância com vistas à nova vinda de Jesus, que quer encontrar os seus ocupados com as coisas do Reino, sobretudo a caridade fraterna.

Ao interno do texto, Jesus está com seus quatro mais próximos, Pedro, André, Tiago e João, sobre o monte das Oliveiras, olhando para Jerusalém e o templo. Nas narrativas anteriores, Jesus fez ver aos discípulos a oferta da pobre viúva no Templo; eles também se maravilhavam com os ornamentos do recinto. Fora dele, podem ver e contemplá-lo, uma vez que não sobrará pedra sobre pedra, conforme dissera anteriormente. Com esse panorama, os discípulos se inquietam e perguntam a Jesus “quando será?” “Qual o sinal de que tudo isso vai acontecer?”  Agora podemos adentrar no horizonte do texto e meditarmos sobre esta atitude. 

Dos vv.33-36, Jesus fala novamente em parábolas. Emergem, aqui, imagens que a comunidade cristã primitiva tinha acerca da parusia inaugurada pela ressurreição de Jesus. Os primeiros cristãos comparavam a ressurreição do Senhor a uma viagem para receber a glória de Deus Pai e seu retorno como a completude do Reino que ele inaugurou, com o ajuste final para todos de acordo com suas obras.

Alguns elementos da parábola merecem destaque. A figura do porteiro e dos servos refletem a imagem das comunidades cristãs às quais o evangelista Marcos escreve, mas também são símbolos dos discípulos que acompanham a Jesus no curso de sua vida pública. É o que o catequista bíblico pretende dizer, ao recuperar o dito do Senhor: “o que vos digo, digo a todos” (v.37a). Encarrega ao porteiro de vigiar, o que talvez represente a imagem dos líderes. O porteiro e os servos (incumbidos cada qual de seus afazeres) devem vigiar, pois não sabem quando virá o senhor da casa. Senhor da casa pode ter o sentido cotidiano de pai de família, dono, proprietário. A casa lembra, em Mc, a comunidade dos discípulos. Logo, o Senhor da casa alude ao próprio Jesus. De ambos se exige a mesma atitude: vigilância.

O termo vigilância aprece só nesta perícope por três vezes, juntamente com um sinônimo do verbo vigiar, “ficai atentos”. A exortação inicial “Cuidado! Ficai atentos” (gr. βλέπετε ἀγρυπνεῖτε / Blépete agrypneîte) é carregada de sentido. O verbo βλέπω (Blepo/Blépen) significa “ver”. Ele indica a capacidade do discernimento, da percepção; o termo ἀγρυπνέω (agrypnéo) significa ficar atento, estar acordado. Durante a narrativa os termos vão variando entre “Cuidado! Ficai atentos” (βλέπετε ἀγρυπνεῖτε), “vigiai, portanto” (γρηγορεῖτε οuν), e, vigiai (γρηγορεῖτε).

A vigilância bíblica não significa “não dormir”, “não cair (ou pegar) no sono”; também não é uma espera passiva. Pelo contrário. A vigilância é uma espera atuante, operativa. É a espera que se vive na atitude. É a capacidade de sempre estar de prontidão. Pois não se sabe a hora noturna em que o Senhor virá. Esta exortação de Jesus pode ser lida na realidade da primeira geração dos discípulos, que mesmo após a ressurreição esperavam a volta iminente – para já – do Senhor; como pode ser lida como uma exortação para as gerações seguintes dada a demora do retorno de Jesus, a parusia. Esta exortação (ordem – convite) de Jesus à vigilância serve de antidoto contra a tentação de ficar dormindo.

Jesus e Marcos se servem da imagem do sono (dormir) para ilustrar a condição do discípulo que não está respondendo ao projeto de Deus através de uma vida empenhada e frutificada nas boas obras, no serviço e no amor fraterno, que constituem a espera ativa e sempre pronta que é a vigilância. Devido ao “atraso” da volta do Senhor, as comunidades ficavam tentadas a abandonar tudo, a esfriar na vida Fé – na relação com Deus e no trato fraterno com os outros. Ainda, pensamentos e atitudes da seguinte ordem também eram perceptíveis ao interno das comunidades: bastava ter aderido à fé e viver descomprometido com a realidade, ou mesmo, como se não houvesse mais nada a fazer. Este é o sono, a dormência, que a comunidade dos discípulos de todos os tempos deve combater e evitar através do dinamismo da vigilância.  Quer diante da demora ou da iminência do acontecimento, cada momento é “o hoje de Deus”. Não devemos nos empenhar somente em vista de um fim próximo; devemos nos empenhar como se o Fim estivesse chegando sempre. O discípulo é chamado à “abrir os olhos” e não esperar que outros resolvam os problemas para si; ou mesmo realizem aquilo que cada um tem a capacidade de fazer. A comunidade é esta casa de servos, onde cada um deve realizar aquilo que recebeu para fazer, enquanto espera a vinda do dono.

O Fim ao qual queremos aludir é o próprio Senhor. E não ao fim enquanto término. Mas enquanto termo, completude, plenitude. Jesus é o Fim, a ultimidade, a plenitude para a qual tudo e todos se encaminham. O Fim, nesse sentido, é Jesus vindo sempre e a todo instante para cada um de nós. Com o advento do Cristo, O Fim, delimita-se o fim da história de injustiças, opressão e luta. Assim, é o fim deste mundo. Todavia, o “Fim” não se identifica com o fim da humanidade, mas sim com a instauração da comunhão definitiva entre a humanidade e sua história com Deus: o novo mundo, o novo céu e a nova terra, o reinado de Deus.

São tempos difíceis e de incerteza que todos e cada um vivemos; tempos estes em que foram nos tiradas todas as programações e certezas. Mas ainda nos resta a Esperança, que se enquadra neste horizonte da vigilância. Como nos encontramos ao final/recomeço deste tempo sempre novo? Vigilantes ou no perigo da sonolência, ou mesmo dormindo?

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família/Arquidiocese de Botucatu-SP


sábado, 21 de novembro de 2020

SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO - Mt 25,31-46:

 


Ha três domingos, o Senhor falava dos mistérios do Reino. A partir de três parábolas refletíamos sobre a ausência de alguém: o dono da casa, que havia saído; o noivo, que tardava em chegar; o patrão viaja e deixa seus bens em forma de talentos. E agora, na conclusão deste discurso escatológico segundo Mateus, o mesmo evangelista nos desafia e nos diz: aquele que pensávamos ausente, sempre esteve presente. O Filho do Homem sempre esteve presente em nosso meio, mais ainda tínhamos dificuldades em reconhecê-lo. Não conseguíamos ver a sua gloria porque ele se deixava ver através dos últimos, dos pequenos, dos desprezados e marginalizados; naqueles que tinham fome, sede; não tinham roupa nem terra; inclusive naqueles que estavam presos. Ele sempre esteve presente, mas, ao invés de vermos sua glória, enxergávamos tão somente sua pobreza.

A solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, apresenta a conclusão do discurso escatológico de Mateus (Mt 24 – 25), a última catequese que o evangelista reuniu a partir do ensinamento de Jesus, que antecede, por assim dizer, os momentos finais da missão pública do mestre, os julgamentos religioso e político e sua morte. É provocativo meditar o evangelho desta solenidade a partir do simbólico contido na parábola que mostra os critérios pelos quais se pautam o Filho do Homem glorificado. A realeza, se é que alguma vez Jesus tenha pretendido essa condição para si – o que vemos em sua vida e em seu agir é diametralmente contrário a esta ideologia régia – se pauta, acima de tudo, no serviço, na entrega e na doação de si para aqueles que se encontram na marginalização. O fio condutor, que será como que um baixo contínuo a ressoar será o dito “todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!”. O texto proposto para a liturgia deste último domingo do ano litúrgico é longo. Por isso deteremos nossa leitura sobre alguns versículos para podermos beber e saborear a mensagem contida neste texto.

Jesus continua seu ensinamento, ao interno do discurso escatológico, recorrendo a uma imagem muito presente na tradição de Israel contida no Talmud. Ali se lê “Na outra vida, o Santo, que bendito seja, tomará um rolo da Torá, o repousará sobre os joelhos e dirá, ‘os que estiverem trabalhando, venham, pois receberão a sua recompensa’”. Como mestre autorizado, Jesus muda o conteúdo deste pano de fundo da tradição de Israel para mostrar o seguinte aos seus discípulos: aquilo que determinará a vida do individuo não será a relação que estabeleceu com a Lei, mas a relação que ele estabeleceu com o seu irmão, porque, conforme dissera Mateus no início do seu evangelho, Jesus é Deus-conosco – Emanuel. Assim, com Ele, a relação da humanidade não se dirige unicamente à Deus, mas com Deus e como Deus ao homem. De modo que não existe relação com Deus que não passe pelas relações humanas. O Deus de Jesus não pedirá contas ao homem se este honrou-O com sua fé, mas se foi capaz de amar como Ele.

O Jesus de Mateus apresenta-se como o “Filho do Homem” glorificado. Esta personagem bíblica, aparece desde a literatura apocalíptica de Daniel, em Dn 7. É uma figura misteriosa, simbólica, que pode, por um lado aludir à condição humana da personagem em questão. De outra parte, representa aquele que foi escolhido e investido por Deus para a tarefa de executar o agir, o senhorio, o querer (justiça) de Deus mesmo na história. É dessa personagem que Jesus se serve também para conceber sua ação e seu ministério. Qual a atitude desta figura escatológica?

“Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos” (v.32). Reunirá todos os povos da terra, separará as ovelhas dos cabritos. Interessante que Mateus se serve da expressão literal “todas as nações pagãs” (πάντα τὰ ἔθνη – panta tá Ethne), para indicar que a imagem do juízo não será aplicado a Israel, mas a todas as nações pagãs, isto é, que não fazem parte do povo israelita. Na perspectiva de Mateus, o povo já recebeu seu juízo ao recusar a ação de Deus em Jesus. A ação deste Filho do Homem será a saber separar, como um pastor, as ovelhas dos cabritos (lit. bodes). Sabe separar porque conhece bem aqueles que empenharam sua vida para o bem, daqueles que não assumiram este caminho. As ovelhas são símbolos para os que deram o passo ao discipulado. É importante notar que o julgamento se dá ao interno do rebanho.

Qual caminho é este? Jesus elenca seis atitudes. Estas atitudes não estão voltadas para o campo da religiosidade, da observância ritual. Mas no horizonte das relações humanas. Estas seis atitudes estão voltadas para as necessidades e pelas situações de sofrimento humano. Na perspectiva de Jesus, o que salva o homem não é um comportamento religioso. E sim um comportamento humano.

Dar de comer e de beber significa restituir as necessidades básicas e vitais aos empobrecidos. É recuperar a dignidade humana e o direito de cada um, já assegurado no decálogo, no código da Aliança em Ex 19 – 24. A Lei de Israel já previa também o auxílio ao estrangeiro, uma vez que o próprio povo fora estrangeiro no Egito. Receber o estrangeiro, era, ainda, uma forma de se fazer experiência com Deus; a hospitalidade para com o estrangeiro era a oportunidade de acolher o próprio Deus que visitava seu povo. Basta recordar a experiência de Abraão, junto do Carvalho de Mambré (Gn 18,1-15).

Nos chama a atenção, duas categorias que o narrador da parábola enfoca: os enfermos e os encarcerados. Os enfermos eram, no tempo da sociedade de Jesus excluídos da vida social e religiosa, uma vez que a enfermidade era concebida como castigo, como consequência de algum pecado que a pessoa tivesse cometido ou, como equivocadamente se pensava, alguém de sua família o tivesse feito. A visita ao enfermo, nesse sentido, se torna um gesto de ruptura com aquela mentalidade. Significa recuperar a dignidade da pessoa através do cuidado para com ela, O prisioneiro era, no tempo e na cultura de Jesus, alguém que não suscitava compaixão ou piedade dos outros. Suscitava desprezo. Ir visitar um prisioneiro exigia também alimentá-lo, uma vez que os carcereiros não executavam essa tarefa. Via de regra, os encarcerados eram aqueles que o Império rotulava como subversivo, perigoso, revolucionário. Mas, todas as vezes em que se menciona a situação do cárcere no NT, este se deve ao Evangelho. Nesse sentido, visitar os prisioneiros seria, da parte dos discípulos do Reino, uma tomada de posição e de atitude. Significava voltar-se contra a ideologia imperial e optar pelo Evangelho.   

Depois destas atitudes descritas pelo Filho do Homem – no caso, o próprio Jesus que narra a parábola –, segue-se o questionamento daqueles que foram contados e separados como justos: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?” Segue-se a resposta da personagem apocalíptica: “Em verdade eu vos digo, que todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (v.40). O menor, ao interno da parábola, é aquele é colocado como o último, o desprezado, marginalizado e excluído. São todos aqueles que, no tempo de Jesus, não eram contados como pessoas.

O outro lado da moeda também é descrito pelo narrador-personagem da parábola. “Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos” (v.41-46). O adjetivo “maldito” não pode ser entendido como uma sentença de Deus dada ao homem. Deus não amaldiçoa o ser humano. Este dito contido na parábola recorda o fratricídio de Abel, por Caim. Assim, Jesus é muito severo: não oferecer ajuda, não responder às necessidades mais elementares do ser humano, não socorrer o irmão em seus sofrimentos, equivale cometer a mesma falta de Caim. É o mesmo que um homicídio. São considerados malditos não da parte de Deus, mas devido ao seu egoísmo, ao fechamento diante das necessidades dos irmãos, se tornam malditos. A estas pessoas, Jesus não reprova por terem feito algo mal, mas por não terem empenhado a vida pelo bem do irmão, tornando-se instrumento de morte para o próximo.

Diante deste belíssimo texto, possamos fazer a revisão de nossa vida e de nossa missão.

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 14 de novembro de 2020

HOMILIA PARA O XXXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 25,14-30:


O evangelho deste trigésimo terceiro domingo do tempo comum segue na leitura e meditação do discurso escatológico de Mateus. Os capítulos 24 à 25 abarcam o último dos grandes discursos do evangelho segundo Mateus. Jesus, através desta catequese, dá instrução a seus discípulos a respeito da consumação da história e do destino da humanidade. O catequista bíblico recolheu este ensinamento do Senhor para a sua comunidade, visando oferecer as balizas para que o discípulo possa compreender como será julgado: a partir do modo como tratou, em suas necessidades, os irmãos mais fragilizados; frutificando a vida em boas obras..

Uma vez mais Jesus se serve do recurso das parábolas para ensinar seus discípulos. Conhecida como “dos talentos”, ela tem a intenção de ilustrar como a existência humana é o tempo oportuno e definitivo de fazer frutificar os dons recebidos de Deus e, assim, se preparar para o encontro com o Senhor. A parábola serve-se da realidade de um patrão que antes de sair de viagem confia a três de seus empregados uma soma de dinheiro. Note-se o seguinte: ele reuniu seus servos e confiou a cada um deles uma parte de seus bens. Ele não dá para reaver mais tarde; mas dá na gratuidade. É interessante, ainda, que Jesus mostra uma qualidade deste chefe: ele dá a cada um de seus empregados segundo suas capacidades. Ou seja, é alguém que conhece profundamente os seus. Sabe da capacidade que cada um possui.  

A um deu cinco talentos de ouro – unidade de medida da época. Cada talento equivalia a 34 quilos de Ouro. O primeiro recebeu o equivalente à 170 quilos de ouro. O segundo recebeu dois talentos – 68 quilos de ouro. Por fim, o terceiro recebeu um talento somente. Em seguida, o homem saiu de viagem. 

Os vv.16-17 narram a atitude dos dois primeiros, os quais conseguem lucrar cem por cento. O v.18, por sua vez, relata a atitude do terceiro empregado que decidiu-se por enterrar a quantia confiada a ele pelo patrão. Jesus realça o contraste existente entre os dois primeiros e este último: cem por cento contra zero de lucro.

Segundo a parábola, o dia do acerto chegou com a volta do patrão (v.21-23). O primeiro empregado apresentou-se com os seus talentos lucrados. De cinco talentos (170kg), devolveu ao patrão mais cinco (340kg). Foi elogiado pelo patrão, e recebendo a administração de muito mais, foi convidado a tomar parte da alegria do patrão. O segundo apresentou-se com mais dois talentos lucrados, dos dois que havia recebido (136kg); sendo elogiado pelo seu senhor, igualmente recebendo mais para frutificar e participando de sua alegria.

A quem se aplica a imagem dos dois servos que lucraram as somas recebidas? No tempo narrado, ou seja, no horizonte de Jesus e de sua missão, os dois servos são símbolos daqueles que aderiram ao Senhor e suas palavras, se tornaram discípulos e estão labutando no discipulado. Já no horizonte da comunidade de Mateus, os dois que participam do banquete escatológico já não são mais tratados como servos, mas os crentes comprometidos na fidelidade e que frutificaram em boas obras.

Por fim, chegou aquele que havia enterrado a soma de ouro que o patrão lhe concedeu cuidar. Ele veio logo se desculpando: “Senhor, sei que és um homem severo, pois colhes onde não plantaste e ceifas onde não semeaste. Por isso fiquei com medo e escondi o teu talento no chão. Aqui tens o que te pertence” (v.24-25). O patrão indignou-se com a postura do empregado, motivado por covardia, medo e acomodação. A sua postura frente ao terceiro empregado segue descrita pelo Jesus de Mateus, nos vv. 26-30. E será sobre ela que o relato parabólico se deterá. 

A personagem do terceiro empregado se aplica a quem? No horizonte da vida e da missão de Jesus, o terceiro servo é metáfora para as autoridades e chefes do povo, que através da atitude de enterrar a soma recebida, estão, na verdade recusando o projeto de Deus realizado por Jesus. A imagem é polissêmica – pode atingir vários significados. São certamente os observantes da lei que considerando ter cumprido, ponto por ponto, a vontade de Deus expressa nos mandamentos, e com isso se contentavam. E acabavam desconhecendo a exigência fundamental expressa na missão de Jesus. De fato, fechados na sua mentalidade mesquinha, rejeitaram o Messias, mostrando-se servos infiéis.

Todavia, no nível da comunidade de fé, os terceiros empregados são aqueles que, no ato de enterrar o talento recebido, não empenharam a vida para mais além do que aquilo que se é esperado; são aqueles que não perseveram ou não realizam a vida através da entrega ao projeto de Deus em Jesus, não frutificando nas boas obras. 

Aqui exige-se acurada atenção, pois pode-se conceber equivocadamente que o terceiro empregado possa ser aquele que não tenha aderido a Jesus e feito resistência a ele tão somente. Pelo contrário, este terceiro servo pode ser inclusive aquele se diz fiel de carteirinha, mas que se acomodou no trivial; com o habitual; ou mesmo com o superficial da vida e experiência de fé. É para isso que Jesus se serve desta parábola, de modo a alertar os seus para tal perigo. De igual modo, Mateus a transmite para a sua comunidade.

A finalidade última é de caráter moral; exortar a comunidade a viver o presente na fidelidade e com empenho. E, nesse sentido, a vigilância se torna mais uma vez necessária, e atinge, aqui, seu alto caráter de concretização. Ela consiste na operosidade fiel e incansável, que põe a frutificar a palavra de Jesus deixada como dom aos seus. A lógica do Reino dos Céus é esta: quem soube frutificar, ao longo da vida o talento (os dons recebidos e colocados no horizonte de Deus e de seu Reino), obterá ainda mais quando for julgado pelo Pai. Ao contrário, quem não soube fazer frutificar os dons recebidos, na hora do juízo, ficará privado até mesmo do pouquinho que pensava possuir.

Quem Somos diante da parábola deste trigésimo terceiro domingo do tempo do comum? O que temos feito do talento gratuito que Deus nos deu, de acordo com nossas próprias capacidades? Que imagens temos de Deus: a de um deus patrão e carrasco ou aquela verdadeira de um Pai que dá o todo necessário para poder frutificar a vida, crescer e ser mais. 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 7 de novembro de 2020

HMILIA PARA O XXXII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 25,1-13:

 


O capítulo vinte e cinco do evangelho de Mateus abre o quinto e último discurso de Jesus em que subdivide-se a catequese mateana. Vale lembrar que o primeiro evangelho foi estruturado pelo seu catequista/autor em cinco grandes discursos a exemplo da Torah, que contém os cinco primeiros livros da tradição de Israel. Neste capitulo, pela última vez aparece o termo Reino dos Céus – que em última análise é o mesmo Reinado de Deus, isto é, sua atuação histórico-salvífica através de Jesus de Nazaré.

Mateus, inicia o chamado discurso escatológico, o qual trata da ultimidade/novidade e plenitude da ação de Deus em Jesus, recuperando e transmitindo à sua comunidade uma parábola contada pelo mestre, a qual trabalha o tema da vigilância. A parábola apresenta elementos inerentes a uma festa de casamento. Sabemos que as parábolas possuem três intenções: 1) servindo-se de elementos conhecidos da realidade, chamar a atenção do leitor-ouvinte; 2) provoca-lo; e estimulá-lo a mudar de atitude. Como vemos esses elementos presente na parábola de hoje?

Jesus opera mudanças significativas nos costumes da festa de casamento, ao iniciar a narrativa da parábola das dez virgens. De acordo com o costume, era o noivo que ia ao encontro das virgens. Aqui, Jesus subverte a lógica do costume, e diz que são as virgens que correm ao encontro do noivo. Outra subversão contida no ensino do mestre é a ideia do fechamento das portas, após a entrada do noivo. Uma festa de casamento, no tempo de Jesus, como bem sabe-se, era um evento aberto para todo o povoado. Jesus usa destas hipérboles, justamente para chamar a atenção do leitor-ouvinte para a mensagem que ele quer transmitir.

Quem são as dez virgens, das quais Jesus se serve para a parábola? Virgens, são aquelas que ainda não se casaram, nem foram ainda prometidas em casamento, no tempo da sociedade de Jesus. Mas que estão à espera do noivo. Segundo Jesus, elas tomam suas lâmpadas. No entanto, a melhor tradução seria “tochas”, em lugar de lâmpadas. A atitude delas foi a de sair ao encontro do esposo. Mateus serve-se da imagem preferida do profeta Oséias, na qual a imagem do esposo é aplicada à Deus. Ele seria o esposo e o povo, a esposa.

Das dez virgens, cinco eram prudentes, e as outras, imprudentes. Porém, Mateus utiliza um termo que Jesus proibiu de ser usado ao interno da comunidade dos discípulos, o termo morós (gr. μωραὶ/μωρός), o qual define uma pessoa tola, descrente, ímpia. Uma ofensa muito grande, que aparece já no Sermão da Montanha, em 5,22. As outras cinco eram inteligentes, prudentes e sábias. Mateus opera aqui uma inclusão, uma delimitação textual, como que fechando e amarrado os cincos discurso, ao relembrar através destes termos utilizados na parábola por Jesus, o Discurso inaugural em Mt 7,21-24, na parábola do homem sábio que construiu sua casa sobre rocha, em contraste com o imprudente que construiu sua casa sobre a areia. Neste capítulo vinte e cinco, bem como em Mt 7, considera-se sábio quem tem a capacidade de realizar o querer de Deus; cooperar com seu projeto criador e gerador de vida.

As virgens sábias (prudentes, inteligentes), segundo a parábola de Jesus, trazem consigo mais azeite. Ao contrário das virgens tolas. O óleo é também um símbolo para as boas obras do ser humano. As boas obras, nesse sentido, são o óleo que não pode ser dado ou emprestado. No que tocam as obras de justiça, as boas obras, cada um deve empenhar a vida nesse caminho.

O v.11 chama a nossa atenção. A cinco virgens tolas, ao voltarem com o óleo que saíram comprar, dão com as portas fechadas. De súbito, começam a chamar pelo noivo: “Senhor! Senhor! Abre-nos a porta”. Senhor é o título divino com o qual o judeu piedoso, ortodoxo, se dirige à Deus. A resposta contida no v.12 é muito importante: “Ele, porém, respondeu: Em verdade eu vos digo: Não vos conheço!” Ela está relacionada ao mesmo dito de Jesus em 7,22-23, “Não vos conheço. Afastai-vos de mim, vós, que praticais a iniquidade”.

Jesus quer mostrar aos discípulos que não basta uma verdadeira convicção ou confissão de fé, se ela não se traduz na vida, através da atitude de colocar-se no cumprimento do querer e da vontade de Deus, mediante as boas obras. Nisto consiste a vigilância evangélica para a qual o Senhor nos convida a permanecermos e perseverarmos.  Por isso, a vigilância bíblica não está ligada ao estar acordado, ou ao fato de não dormir. 

A vigilância bíblica indica uma atitude operativa. Ou seja, a capacidade de estar consciente de que se deve fazer algo. Logo, falta da vigilância indica a decisão de não fazer nada. Assim, a vigilância para a qual Jesus convida ao final do evangelho, consiste na atitude, na capacidade operativa de cooperar com o projeto criador e gerador de vida de Deus.

Quem somos diante desta parábola? Quais atitudes temos trazido conosco? Temos estado vigilantes diante do querer e do projeto de Deus, para o qual Jesus nos direciona?

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família. Arquidiocese de Botucatu - SP