sábado, 27 de julho de 2019

Homilia para o XVII Domingo do Tempo Comum – Lc 11,1-13:



A liturgia deste domingo propõe a leitura do capítulo onze do evangelho segundo Lucas. Jesus e seus discípulos dão continuidade a viagem de subida para a cidade santa. É importante relembrar que esta viagem não é um deslocamento físico-geográfico tão somente. Mas um deslocamento interior, que visa uma atitude exterior por parte do discípulo que caminha com Jesus. É uma metáfora para a vida cristã, permeada do caminhar, mas também do parar. Que não é uma parada qualquer, senão para a Oração.

O capítulo onze apresenta uma catequese-ensino sobre a Oração. Ao seu interno, Lucas apresenta a Oração que Jesus ensina aos seus. A fórmula da Oração do Senhor apresentada pelo terceiro evangelista é considerada pelos biblistas como sendo a mais curta, e, por isso, a mais antiga. É verdade, que outra versão se encontra no evangelho de Mateus, bem mais elaborada, segundo as necessidades daquela comunidade e de seu autor.

O evangelista situa-nos no horizonte do texto. Jesus encontra-se em oração (v.1). Por sete vezes, durante seu ministério público, o evangelista mostra Jesus em oração, do batismo à paixão, o que corresponde exatamente à totalidade do seu ministério (cf. 3,21; 5,16; 6,12; 9,18; 9,28-29; 11,1; 22,41). Tudo o que ele deve realizar, primeiro deve ser discernido segundo a vontade de Deus. Por isso, a oração para Jesus constitui-se o momento através do qual pode entrar em comunhão com Deus. Ela revela que, tudo o que Jesus faz é da vontade e do querer de Deus.

“Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos” (v. 1b). Era comum, nos círculos rabínicos, os mestres ensinarem ao seus discípulos uma oração, a qual caracterizava a espiritualidade daquele grupo e do mestre, bem como os distinguiam dos demais. Naturalmente, por terem primeiro sido discípulos do Batista, conservavam na memória o modo de rezarem, segundo João.

Parece que Jesus tinha deixado seu grupo muito à vontade, nesse sentido, o que poderia deixar seus discípulos até inseguros, pois não tinham regras estabelecidas a cumprir. A regra de Jesus era apenas o seu jeito de viver (CORNELIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Jesus dá-lhes uma nova forma de se relacionar com Deus. A novidade da oração de Jesus é, realmente, explosiva. Ela subverte a lógica e os esquemas através do qual o judeu piedoso se relacionava com Deus. Jesus chama o Deus de Israel de Pai. Nunca ninguém jamais havia tido essa ousadia. A nível de conhecimento, o judeu sempre se dirigia a Deus como santíssimo, altíssimo, Senhor-Adonai (YHWH), o Bendito, o Eterno. Somente Jesus se dirige à Deus como Pai. É uma relação nova e inédita, superior à forma como se relacionava Abraão, o amigo de Deus. Os discípulos não são chamados a serem somente amigos de Deus, mas seus filhos. Outra novidade consiste no fato de que ao chamarem Deus de Pai, e descobrirem-se filhos em relação a ele, descobrem-se também irmãos.

A oração de Jesus encontra-se estruturada sobre cinco elementos. Eles traduzem, para nós, o que é rezar. Os dois primeiros (v. 2) provocam à abertura para o Pai; os três últimos (vv.  3-4) conduzem à transformação das relações entre as pessoas.

A “santificação do nome de Deus” (v. 2) e o “advento de seu Reino” (v. 2) estão intrinsecamente relacionados, a ponto de confundirem-se. Ora, o nome de Deus já é santificado, porque Ele é, essencialmente, santo. O pedido diz respeito ao reconhecimento dessa santidade. Reconhecer a santidade de Deus é saber que Ele é Pai, aceitar a condição de filhos e filhas e, portanto, viver como irmãos e irmãs. Isso é permitir que o seu Reino seja instaurado entre nós (CORNELIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Em seguida, Jesus ensina a pedir o “pão necessário para cada dia” (v. 3). Esta petição revela, na verdade, a atitude da confiança incondicional do discípulo em Deus. O ser humano, e, de modo especial, o discípulo do Reino, não podem ser autossuficientes por um dia sequer, mas em tudo dependerem de Deus, até mesmo no que é mais básico, como o alimento de cada dia. Um elemento indispensável para que uma comunidade viva efetivamente segundo as características do Reino, é a confiança e a solidariedade. Mas pedir a cada dia o pão significa assumir a partilha como forma de realizar o Reino, traduzido na fraternidade: pão, terra, moradia, saúde, educação, vida para todos, até que a humanidade inteira reproduza o “paraíso” saído das mãos do Pai.

Não poderia faltar este pedido na oração do Reino. “Perdoa-nos os nossos pecados, pois nós perdoamos também a todos os nossos devedores” (v. 4). De fato, somente Deus é quem perdoa os pecados. Mas Jesus introduz também aqui uma novidade: pois nós perdoamos também a todos os nossos devedores. Assim como o pão cotidiano, os cristãos partilham do Dom do Perdão. Não traduzir nas relações humanas o perdão de Deus é tornar inútil e mentirosa a oração que Jesus nos ensinou.

Com isso, Ele ensina que o perdão de Deus deve ser mediado pelo perdão fraterno; não porque a misericórdia de Deus esteja condicionada ao agir humano, mas porque a relação com Deus exige uma coerência de vida. A abertura total a Deus deve traduzir-se em uma relação nova com o próximo, tema tão caro a Lucas. Isso implica que, mais que ser perdoado, é necessário viver reconciliado. Por isso, o perdão deve ser mútuo (CORNELIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

A última petição que o Jesus ensina está relacionada a Tentação de abandonar a Deus, e fazer oposição ao seu projeto. A palavra peirasmós (tentação), quando aplicada aos discípulos revela, na verdade, o perigo da desistência e do abandono à Deus. Não são tentações de ordem carnais ou moralistas. Mas optar pelo caminho contrário ao de Deus.

Jesus, por sua vez, nos ensina a pedirmos ao Pai que não nos deixe cair nessas tentações que pervertem o projeto de uma sociedade fraterna e igualitária. Às tentações do poder, do ter e do prestígio os cristãos respondem com a partilha, serviço, igualdade, solidariedade, serviço e disponibilidade como instâncias para construir nova sociedade e história (BORTOLINI, J, 2009, p.646).

Dos vv.5-11, Jesus ilustra a oração que acaba de ensinar, contando-lhes duas parábolas. a do amigo inoportuno (vv. 5-8) e a do pai (v. 11). Ambas têm a função didática de explicitar a proximidade do Deus-Pai e a necessidade da perseverança da comunidade na oração. Esse Deus é muito mais disponível que um amigo, e muito melhor que um pai terreno. Desse modo, Ele ressalta que a qualquer momento se pode invocar esse Deus-Pai e, pedindo o que é justo, jamais Ele deixará de atender (CORNELIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

A oração do Senhor não é apenas uma oração comum, permeada de petições que o fiel orante faz à Deus. É uma escola de vida cristã. Se o rezarmos com mais atenção, veremos que o Pai-Nosso não é uma serie de pedidos, mas o modo através do qual o Cristo nos ensina a viver. Através desta oração rezamos a própria vida. Portanto, o Pai-Nosso é o modo pelo qual pedimos alguma coisa, e, que, ao mesmo tempo nos interpela. Por isso, esta oração deve ser feita no Espírito de Jesus. A comunidade que se deixa guiar pelo Espírito Santo, saberá discernir para pedir ao Pai o que é, de fato, essencial.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 20 de julho de 2019

HOMILIA PARA O XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 10,38-42:



A Igreja continua a leitura do capítulo décimo do Evangelho de Lucas. A moldura da narrativa é a mesma: a subida de Jesus para Jerusalém, meta final de sua viagem. Ao logo desta subida alternam-se as situações de acolhimento e hospitalidade e rejeição (por exemplo em 9,53, os samaritanos não recebem a Jesus). Mas na pericope meditada pela liturgia de hoje, as mulheres Marta e Maria acolhem a Jesus em casa (Lc10,38-42). Este texto pertence somente à tradição de Lucas, e, como sendo de seu perfil, o evangelista trata imediatamente de mostrar Jesus quebrando paradigmas da época.

“Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa” (v. 38). O evangelista não cita o nome da aldeia (mas situa os personagens aos poucos): é aceitável que Lucas e sua comunidade conheçam a tradição sobre Lázaro, Marta e Maria, e a tenha colhido do Quarto Evangelho. Talvez por isso, não lhe seja necessário situar com precisão, no nível da narrativa (cf. FÁBRIS, R. p.127).

No tempo da sociedade de Jesus, somente o homem podia receber um convidado em sua casa, uma vez que a mulher não tinha esta autonomia. Marta vai aos afazeres domésticos, conforme os costumes da época. Na verdade, ela faz aquilo que era próprio da mulher dentro de seu contexto social: ser a dona de casa (a doméstica). Sua atitude já era de ser esperada naquela situação social: exclusão dos meios masculinos e a submissão. Ao acolher Jesus, ela rompeu barreiras. Jesus, de sua parte também inova: uma vez que no seu tempo não parecia bem a um homem aceitar a acolhida de mulheres. O evangelista visa ensinar que, ao interno da comunidade e da vida do Reino, homem e mulher são iguais em dignidade e em direitos.  

Em contraste a ela, vemos a sua irmã, Maria. Ela senta-se aos pés de Jesus. “Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra” (v. 39). Ora, a mulher não podia ser admitida nos círculos de ensino da Lei, nas escolas rabínicas. Objetivamente, ela não poderia estar ali. Na Catequese de Lucas, Maria inaugura um novo papel para as mulheres: o da discípula. O gesto de sentar aos pés não quer dizer adoração nem devoção, como muitas interpretações afirmavam. Muito comum no ambiente rabínico e sinanogal, o “sentar aos pés” indica a postura ideal para a escuta. Ou seja, ser discípulo ou discípula; também é aceitar o outro como mestre. O Jesus de Lucas abre espaço para o protagonismo das mulheres, restaurando a dignidade delas (por ex. Lc 7,11-17.36-50; 8,1-3).

Temos aqui, novamente, uma dupla transgressão: a de Maria, que exerce um papel inconcebível para uma mulher da sua época, e a de Jesus que, ao aceitar mulheres no seu discipulado, põe cada vez mais em xeque a sua condição de mestre. Inclusive, na época circulava o seguinte ditado: “é melhor queimar a Torá do que colocá-la nas mãos de uma mulher”. Com isso, Jesus rompe com todos os padrões de mestre da sua época. Rabino algum do seu tempo aceitava mulheres no discipulado (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Agora entramos no núcleo da narrativa. Recapitulemos que a viagem de subida para Jerusalém revela-se, também, caminho de instrução para os discípulos. A partir desta constatação podemos captar o ensinamento de Jesus a respeito do autêntico discipulado-missionário: só pode ser autêntico discípulo dele, a partir da experiência da escuta de sua palavra! Este é um dos temas importantes da catequese lucana. E o diálogo nos ajuda a perceber isso. A Escuta de Maria não é uma escuta ociosa (para fugir do serviço doméstico), ou passa-tempo; tampouco é uma obrigação. Mas é uma escuta que a coloca na dinâmica do “pôr em prática” aquela Palavra.

“O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas” (v. 41). O diálogo, e fundamentalmente, a resposta de Jesus sobre a atitude de Maria serve para colocar em destaque a condição para se tornar autêntico discípulo, e ao mesmo tempo manter-se na atitude missionária: a escuta da Palavra do mestre. Não se trata de uma reprimenda ou censura. Jesus vê que a agitação e o ativismo de Marta a impede de fazer experiência da Palavra que ele transmite. Faz-se necessária a escuta da palavra do Mestre para que o serviço realizado pelo discípulo não se torne agitação vazia e estéril. De nada adianta o muito fazer, se antes não existir um encontro experiencial com a Palavra do mestre. Por isso, Jesus dá uma oportunidade a ela ao chamá-la duas vezes pelo nome. Na teologia bíblica, quando Deus chama uma personagem pelo nome duas vezes (Marta, Marta; Samuel, Samuel (1Sm 3,10); Moisés, Moisés (Ex 3,4); Saulo, Saulo (At 9,4)), é porque Ele está fazendo um chamado vocacional. Jesus está chamando, portanto, Marta a mesma condição de sua irmã, Maria: à vocação ao discipulado.

 O leitor-ouvinte do evangelho segundo Lucas encontra em Marta e Maria a experiência da escuta atenta (da Palavra de Deus), que as torna discípulas e que ordena e harmoniza o Serviço aos irmãos. Só pode servir o próximo quem, primeiro, faz a experiência da escuta da Palavra Deus. Da escuta, se move à Práxis, que é critério de verificação da escuta desta mesma Palavra. Do contrário, fica-se imerso na agitação, no muito fazer e desconectados da escuta da Palavra de Jesus.

Esta é, na perspectiva de Jesus (e do evangelista) a melhor parte. uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (v. 42). Embora a tradução litúrgica use a expressão “a melhor parte”, o correto é “a parte boa” (em grego: τήν άγαθήν μερίδα), pois é a única que realmente importa, e é incomparável. Essa “parte boa” é o Evangelho, o conjunto do ensinamento de Jesus e a sua própria pessoa. É escolhendo a “parte boa” que o ser humano encontra vida em plenitude e, por isso, se torna uma pessoa livre (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

No entanto, outra característica emerge deste texto bíblico. A escuta atenta da Palavra de Jesus, que torna homens e mulheres discípulos e discípulas de Jesus e do Reino deve encaminhar outra atitude importante, a acolhida-hospitalidade.

A hospitalidade é para o homem bíblico – e deve ser para todo o cristão, discípulo e discípula de Jesus – outro momento privilegiado para se fazer a experiência com o Deus-falante e interpelador. Deus quer ser hospede na casa da existência humana. O é de uma vez por todas, pelo mistério da Encarnação em Cristo Jesus. E quer ser, na medida e ao interno das relações estabelecidas entre os irmãos. Não é possível fazer a experiência da hospitalidade para com Deus, através de sua Palavra, se não há hospitalidade e acolhida para com irmão! Se os homens e as mulheres de hoje não se detêm para escutar aquilo que o outro têm a dizer, em suas dores, fadigas, revezes, lições e testemunhos de vida, não haverá espaço para hospitalidade para com Deus em sua Palavra, tampouco serviço autêntico e sincero a Ele nos irmãos.

Quantas vezes nossas comunidades ditas cristãs se distanciaram da Palavra de Jesus? Temos nos colocado aos pés de Jesus para acolher e escutar sua Palavra, e, consequentemente, tornarmos discípulos dele? Temos cooperado na promoção dos irmãos e das irmãs, de modo que eles também se tornem discípulos? Ao redor de Jesus todos, indistintamente, são chamados a encontrar seus lugares. Só poderemos subir à Jerusalém com Jesus, se estivermos dispostos a fazer a experiência da hospitalidade de sua Palavra, acolhendo e servindo os irmãos. Só poderemos ser autênticos discípulos, se nos dispusermos a ficar aos pés de Jesus juntamente com eles.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP

sábado, 13 de julho de 2019

Homilia para o XV Domingo do Tempo Comum - Lc 10,25-37




A liturgia deste XV domingo do tempo comum nos presenteia com a narrativa de Lc 10,27-35. É importante contextualizar o ensinamento de Jesus ao interno da obra lucana. Ele os discípulos encontram-se a caminho de Jerusalém. A subida do Mestre para a cidade santa, mais do que a destino geográfico, é uma subida para sua livre e soberana entrega na Cruz. Mas este objetivo vai, ao longo destes dez capítulos, delineando-se pelas palavras de Jesus.

Estamos no capítulo 10 do Evangelho segundo Lucas, e os versículos para esta liturgia são posteriores ao envio dos setenta e dois discípulos. No caminho de Jerusalém, Jesus propõe aos discípulos um ensinamento acerca do modo prático de realizar a vontade de Deus, conforme meditado no domingo anterior. Lucas insere, então, a lição dividida em duas partes: o diálogo do Jesus com o doutor da lei (“especialista” em Deus e suas leis / mandamentos), e o relato parabólico do “bom samaritano”.

O diálogo inicia-se com uma pergunta do especialista na lei: “Mestre, o que devo fazer para ter a vida eterna? (v.25). A intenção do mestre da lei é muito clara, e nos é revelada pelo evangelista: interroga a Jesus para pô-lo à prova. O termo grego Peirasmós (ekpeirásôn), comprova esta intenção. Trata-se de uma armadilha! Ainda que se transpareçam as “segundas intenções” do doutor da lei, a pergunta em si mesma era muito comum nos ambientes sinagogais do tempo de Jesus. O discípulo interpelava o mestre (rabino) da seguinte maneira: “mestre, ensina-nos os caminho da vida para que possamos merecer a vida futura”. O acento da pergunta está no “fazer” – na práxis – , o que é muito autêntico e original na cultura bíblica.

Jesus responde à pergunta do doutor com uma interrogação: “O que está escrito na Lei? Como lês? (v.26). Com isso, o mestre de Nazaré reorienta o doutor da lei à própria Lei, fazendo-o comprometer-se com aquilo que ensina aos outros, de modo que o doutor se enxergue no próprio texto, e no ensinamento nele contido, confronte-se em sua prática. Na verdade, Jesus aponta para a Lei (Torá = Instrução), porque nela está contida toda a revelação da vontade do Deus de Israel: uma maneira de dizer que não há necessidade nem espaço para novas formulações.

O Doutor lhe responde com a formula da profissão de Fé do povo de Israel – o Shemá (Escuta, ó Israel) – expressada em Dt 6,5: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua inteligência”. E acrescenta Lv.19,18: “E o teu próximo como a ti mesmo”. A junção das duas normativas acena para a implicação do modo coerente e exato de se ler e viver as escrituras, de modo a entrar no caminho para a vida, ou seja, através da relação vital e existencial com Deus verificada na relação com o próximo. Jesus aprova a resposta do doutor da Lei e não lhe acrescenta nenhum outro ensinamento, dizendo apenas “Faze isto e viverás”. Até aqui, no nível da narração, não há nenhuma novidade.

Ora, o amor ao próximo estava na pauta da pregação dos profetas, no Antigo Testamento, e por isso, previsto na Torá, na Palavra de Deus. Os porta-vozes de Deus – os Profetas – em suas pregações e denúncias contra o povo infiel, condenavam as práticas religiosas (orações, cultos, sacrifícios, liturgias) desvinculadas da relação com o próximo. A crítica dos profetas reside no fato de que os piedosos israelita concebiam as suas relações com YHWH unicamente pelas vias das práticas religiosas da oração, do culto e da liturgia. Eles pensavam que as liturgias, os incensos e os sacrifícios podiam aplacar e comprar a Deus; que podiam tê-Lo nas palmas das mãos. Os profetas condenarão essa ideia e prática. Deus não se deixa comprar, nem se agrada com essa mentalidade; não se deixa levar por nada de aparente ou externo. Com Deus não há barganha.

Agora entramos no segundo momento da narrativa do relato lucano: a parábola do Bom Samaritano. À pergunta sem-jeito do doutor da Lei, “Quem é meu próximo?”, o mestre de Nazaré responde com uma parábola. Um homem (e pelo contexto judaico se pode intuir que seja um israelita) descia de Jerusalém para Jericó. No caminho caiu nas mãos de assaltantes violentos. Estes o deixam quase morto pelo caminho. Sobem pelo caminho um sacerdote e um levita (ambos especialistas da liturgia levítico-cultual) e passam pelo caído-ferido sem nem ao menos tocá-lo, para que não ficassem impuros para culto e para as orações, conforme previa a Lei mosaica. Mas um terceiro personagem aparece no relato. Um samaritano. Uma figura controversa.

Os Judeus não se davam com os samaritanos. A Samaria, bem como o norte de Israel, a Galileia das nações, eram tidos como pagãos e, portanto, impuros, desde a dominação do império assírio em 722 a.C, quando do primeiro exílio promovido por esse império. A política de dominação deles era muita perversa. Ao deportar e dispersar a população local para as diferentes regiões de seu império, os assírios colocavam no lugar destes povos locais outros povos, misturando-os consigo mesmos. Nesse sentido, o norte de Israel sofreu influência religiosa de outros povos, que se mesclavam com a fé judaica javista. Um judaísmo misturado, e não puro, como o do sul. Por essa miscigenação os Judeus do sul (de Jerusalém) consideravam os samaritanos como impuros e hereges.

A esta altura, a parábola explicita seu elemento paradoxal, que visa chamar e prender a atenção do leitor: é um samaritano, que na parábola, cumpre perfeitamente a Lei de todos os israelitas; aquele que era considerado “herege”, pagão e estrangeiro cumpre com perfeição a Lei do Amor a Deus.

O texto é bem claro, o samaritano, movido por compaixão (splagnisthe) socorre o homem caído e ferido pelo caminho. O termo compaixão (Splangnisomai / Splangnon) no evangelho de Lucas é de fundamental importância, porque o terceiro evangelho é conhecido como o Evangelho da Misericórdia.

O termo compaixão é traduzido por Misericórdia. Esta não consiste em sentimentos, mas na capacidade de agir em favor do outro que sofre. Ele traduz o termo hebraico Hesed (amor), que significa um amor visceral, entranhado. Deus, diante do sofrimento dos pequenos e pobres, dos marginalizados e oprimidos, remexe-se no seu íntimo e intervém em favor deles; tem “dor de barriga” pelo sofrimento do outro e só assim é capaz de agir com misericórdia, com seu amor visceral. Lucas em sua catequese evangélica identifica a misericórdia de Deus em Jesus. Ele é o rosto e a personificação da Misericórdia de Deus. Jesus é a Misericórdia que se fez carne.

Entramos na pragmática do Texto, sua intencionalidade e finalidade para a comunidade cristã daquela primeira hora, e para nós, a geração posterior. Jesus, ao perguntar ao doutor a opinião dele sobre quem agiu como próximo daquele ferido, faz com que o especialista da Lei se posicione, e reconheça-se também neste relato. Lembre-se que quando as personagens não recebem nome no texto, é porque o autor sugere que o leitor se identifique com elas. Sinta-se questionado e provocado pela parábola, a qual tem esta função, de modo a gerar uma mudança de comportamento e de vida no leitor-ouvinte.

Para Jesus, não se deve questionar quem é ou quem pode ser objeto do amor misericordioso, mas como alguém pode tornar-se próximo do outro. O próximo é, então, todo aquele que se aproxima do outro com um amor operativo, e não com teorias. É aquele que transcende os limites socioculturais; que ultrapassa todo o senso de diferença (e socorre a diversidade). O caminho para a vida eterna é o amor-misericórdia operativo para com todos os homens e mulheres. E aqui é que se distingue quem é autêntico discípulo-apóstolo de Jesus.

As comunidades cristãs, e de modo particular, a de Lucas compreenderam a Jesus como o bom samaritano. Ele é o estrangeiro galileu que leva a termo as tradições religiosas de seu povo até as últimas consequências. Jesus é aquele que se moveu no íntimo de suas entranhas devido aos sofrimentos dos outros, e por isso moveu-se exteriormente em atitudes humanizadoras. Não se levou por preconceitos nem prescrições legais, mas mostrou-se, na linguagem lucana, o grande Filantropo (amante da humanidade) que resgata a mesma humanidade sofredora.

Uma bela interpretação alegórica nos é proposta por Orígenes de Alexandria, escritor eclesiástico da virada do século I para o II, que dirá que homem da parábola simboliza o velho Adão que desce do paraíso (Jerusalém) para o mundo (Jericó), e o Samaritano é símbolo de Cristo. A hospedaria é símbolo da Igreja, da comunidade dos discípulos de Jesus, que tem por dever cuidar dos caídos pelo caminho. Ser verdadeiro hospital de campanha no meio do mundo, como dirá o Papa Francisco, é missão da Igreja-hospedaria. Deve ser ela casa da misericórdia, e cuidar para que todos e todas tenham sua dignidade restituída.

No bom samaritano, Jesus não propõe apenas um belo exemplo a ser imitado, mas também abre uma nova perspectiva na organização das relações humanas. Esta já é uma realidade inaugurada em sua maneira de falar e agir com os homens e mulheres de seu tempo (FABRIS, R. 1998. p.127).

Será que sabemos, hoje, como comunidade dos discípulos (Igreja), reconhecer os caídos e feridos nas vias deste mundo? Sabemos acolhê-los, com suas feridas? Sabemos devolver-lhes a dignidade? Temos tido a coragem de tocar-lhes as feridas, e nelas nos sujarmos? Ou preferimos ainda uma espiritualidade estéril, desvinculada das relações humanizadoras, desencarnadas da prática do amor-misericordia, que podem devolver a dignidade de Filhos e Filhas de um único Pai, no Primogênito Irmão?

 E nós, discípulos de hoje, temos a parreisia (coragem) de andar na direção que ele aponta, ao encontro do caído e ferido? Temos a coragem de nos tornarmos próximos dos outros, em atitudes de amor?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 6 de julho de 2019

Homilia para o XIV domingo do tempo comum – Lc 10,1-12.17-20:





O texto proposto para a liturgia do décimo quarto domingo do tempo comum é extraído do capítulo décimo do Evangelho segundo Lucas. Vale lembrar que já se iniciou em 9,51 a viagem de subida de Jesus para Jerusalém. Até o capítulo 19, o evangelista relata a peregrinação de Jesus com seus discípulos para a cidade santa.

Não se trata de uma viagem turística, como já se afirmou em outras ocasiões, mas de um itinerário formativo-catequético para o discípulo que caminha com Jesus. Através desta subida, Ele vai ensinando o discípulo sobre como assumir o discipulado do Reino, após a entronização do mestre à direita do Pai. Vale lembrar que, é ao longo deste percurso, que culmina em Jerusalém, com os acontecimentos da morte e ressurreição de Jesus, que os discípulos vão se declarando a favor ou contra o projeto dele.

Agora se pode adentrar no horizonte do texto e saboreá-lo. O v.1 introduz a narrativa informando o leitor que Jesus reuniu e escolheu para junto de si outros 72 (dependendo do manuscrito do evangelho segundo Lucas o número é 70), e os envia dois a dois à sua frente, a todas as cidades e lugares que Ele deveria percorrer. Envia 72 (ou 70), paralelamente à missão do grupo dos Doze. O costume de se enviar em dupla se deve ao fato de que um testemunho ou anuncio só pode ser corroborado por mais de uma pessoa.

O número 70 (72) é importante, e, na verdade, revela a intencionalidade do próprio Lucas. Ele recupera para a sua comunidade a narrativa de Gn 10, onde se encontra o elenco das nações. Faz lembrar, também, da narrativa contida em Nm 11,16, onde Deus infunde em setenta homens prudentes, o mesmo Espírito dado a Moisés e Aarão. Assim, o número setenta indica a universalidade. O tema da universalidade da salvação é muito querido por Lucas. A salvação é um convite que Deus faz à todos, e por isso ninguém deve ficar de fora. Tanto da salvação, como da missão. O Reino de Deus é a origem da missão cristã: todos são convocados a tomar parte na tarefa de anunciar a presença de Jesus, aquele que traz para dentro da história humana o projeto de Deus.

Jesus lhes ordena que rezem. Esta é, portanto, a primeira característica do discípulo do Reino e de Jesus. A oração no evangelho de Lucas é sempre o indicativo de que tudo aquilo que Jesus está para fazer, é porque corresponde com o querer do Pai, e fora discernido na oração, a atitude de se colocar diante de Deus para entrar em sintonia com seu querer e vontade. O que Jesus faz, vale, evidentemente para seus discípulos, ou seja, deverão se colocar em relação à Deus através da oração. A oração, neste caso, se torna um pedido: que o Dono da messe (da colheita) envie mais operários. Esta oração, portanto, ressalta que a Missão é Graça de Deus. É um projeto que vem de Deus. Ele que é o dono da messe.

Outra característica do discípulo-missionário de Jesus é a revelada por ele no v.3. Os discípulos são pessoas que anunciam o Reino de Deus numa realidade conflituosa e que vive na contramão do projeto de Deus. No entanto, emerge a consciência de que os discípulos possuem um pastor que os defende. Nesse sentido, os anunciadores do Reino não devem empregar os métodos violentos da sociedade que vai matar Jesus e perseguir seus discípulos. Assim, anuncia o Reino quem se despoja do poder.

Uma terceira característica do discípulo do Reino é a sua entrega confiante à providência de Deus, caracterizada pela orientação de nada levar pelo caminho. O pobre bíblico não é somente aquele que nada tem, no sentido econômico apenas, mas também é aquele que não se fecha sobre o que possui. Nesse sentido, não tendo nada ou possuindo ainda que pouco, o pobre é aquele que não se fecha nem naquele pouco, e mão do que tem, entrega-se confiante nas mãos de Deus. Só pode ser discípulo e anunciador do reino quem se despoja do ter. A mensagem possui também um caráter urgente. É o que Jesus quer dizer no v. 4: “não cumprimenteis ninguém pelo caminho!”.

Os discípulos-missionário do reino possuem mais uma característica importante: são pessoas que se preocupam por restaurar a dignidade perdida do outro: “Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: 'O Reino de Deus está próximo de vós.'” (v.8-9). Para que o anúncio seja pleno deve-se recuperar a dignidade dos que se encontram marginalizados e excluídos.

No caso dos enfermos, eles eram considerados pecadores por conta da doença que possuíam, segundo a mentalidade religiosa da época, que considerava a doença como castigo e fruto do pecado. Por causa disso, os enfermos eram afastados do convívio social e religioso no tempo de Jesus. Nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) as curas que Jesus realiza revelam-no como enviado de Deus para anunciar o Reino. O Reinado de Deus é Ele mesmo agindo na história através de Jesus.

Mas o anúncio nem sempre é acolhido. Sofre resistências. No v.11, Jesus profere uma sentença que merece ser bem compreendida. “Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo pelas ruas, dizei: Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vós”. O gesto de sacudir a poeira não significa maldição da parte de Deus. Ele se torna um símbolo profético da recusa dos destinatários, e da ruptura, por parte dos discípulos, com a conduta daqueles que fizeram ouvidos de mercador ao anúncio do Reino. Todavia, alerta Jesus, “sabei que o Reino de Deus está próximo!” (v.11).  

Na sequência, a liturgia insere os vv.17-20. Eles são como que o resumo e a síntese que os setenta e dois fazem à Jesus, ao retornarem. “Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo: 'Senhor, até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome” (v.17). A expulsão de demônios por parte dos discípulos demonstra que eles têm a mesma missão de Jesus.

Jesus declara aos setenta e dois que, de fato, “viu Satanás cair do céu como um relâmpago” (v.18). O que significa este dito de Jesus? Ele se serve de um versículo que se encontra em Is 14. Para exprimir a vitória dos discípulos, que significa desendemoninhar a história humana, Jesus recorre à imagem com a qual o profeta Isaías descreve a queda do imperialismo babilônico, representado pelo seu rei: “Como caíste do céu, Lúcifer, filho da aurora...” (Is 14,12) (MAGGIONI, 1998, p. 122).

 Com o anúncio do Reino, o poder de Satanás, que é um poder de dominação e de morte, termina. Satanás é símbolo para tudo aquilo que é antagônico ao projeto de Jesus e de Deus. Quando a comunidade age segundo o modelo da vida de Jesus, ela se coloca na contramão do anti-reino e declara a falência dele e de todas as forças, sistemas de morte e de alienação que atingem o ser humano e que o impedem de viver a liberdade do Reino.

“Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes, ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu” (v.20). Jesus alerta para a tentação da comunidade de se embriagar por causa do poder e do sucesso. O poder de vencer o mal lhes é dado por Jesus (“Eu dei a vocês o poder...”). Por isso os discípulos entendem o poder que o Mestre lhes delega como instrumento para libertar as pessoas dos poderes que oprimem. Nesse sentido, a alegria dos discípulos é saber que são protagonistas da gratuidade do Deus que caminha conosco: “Fiquem alegres porque os nomes de vocês estão escritos no céu” (v. 20b) (BORTOLINI, 2008, p. 634).

O texto nos propõe perguntas: 1) no caminho (da vida e do discipulado) com Jesus, que ruma para Jerusalém, quais características do discipulado ainda precisam ser assimiladas por mim? 2) nossas comunidades têm assumido o projeto da missão de Jesus, sendo, de fato, uma comunidade discípula-missionária? 3) no percurso com Jesus, me descubro destinatário e cooperador da missão. Tenho consciência, em meu discipulado, de que a missão da qual faço parte é, acima de tudo, Graça de Deus e projeto dele, ou de um jeito ou de outro acrescento meus projetos, meu modo de ser e minhas convicções ao projeto de salvação de Deus?

Que sigamos os passos do Senhor.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.