sábado, 6 de julho de 2019

Homilia para o XIV domingo do tempo comum – Lc 10,1-12.17-20:





O texto proposto para a liturgia do décimo quarto domingo do tempo comum é extraído do capítulo décimo do Evangelho segundo Lucas. Vale lembrar que já se iniciou em 9,51 a viagem de subida de Jesus para Jerusalém. Até o capítulo 19, o evangelista relata a peregrinação de Jesus com seus discípulos para a cidade santa.

Não se trata de uma viagem turística, como já se afirmou em outras ocasiões, mas de um itinerário formativo-catequético para o discípulo que caminha com Jesus. Através desta subida, Ele vai ensinando o discípulo sobre como assumir o discipulado do Reino, após a entronização do mestre à direita do Pai. Vale lembrar que, é ao longo deste percurso, que culmina em Jerusalém, com os acontecimentos da morte e ressurreição de Jesus, que os discípulos vão se declarando a favor ou contra o projeto dele.

Agora se pode adentrar no horizonte do texto e saboreá-lo. O v.1 introduz a narrativa informando o leitor que Jesus reuniu e escolheu para junto de si outros 72 (dependendo do manuscrito do evangelho segundo Lucas o número é 70), e os envia dois a dois à sua frente, a todas as cidades e lugares que Ele deveria percorrer. Envia 72 (ou 70), paralelamente à missão do grupo dos Doze. O costume de se enviar em dupla se deve ao fato de que um testemunho ou anuncio só pode ser corroborado por mais de uma pessoa.

O número 70 (72) é importante, e, na verdade, revela a intencionalidade do próprio Lucas. Ele recupera para a sua comunidade a narrativa de Gn 10, onde se encontra o elenco das nações. Faz lembrar, também, da narrativa contida em Nm 11,16, onde Deus infunde em setenta homens prudentes, o mesmo Espírito dado a Moisés e Aarão. Assim, o número setenta indica a universalidade. O tema da universalidade da salvação é muito querido por Lucas. A salvação é um convite que Deus faz à todos, e por isso ninguém deve ficar de fora. Tanto da salvação, como da missão. O Reino de Deus é a origem da missão cristã: todos são convocados a tomar parte na tarefa de anunciar a presença de Jesus, aquele que traz para dentro da história humana o projeto de Deus.

Jesus lhes ordena que rezem. Esta é, portanto, a primeira característica do discípulo do Reino e de Jesus. A oração no evangelho de Lucas é sempre o indicativo de que tudo aquilo que Jesus está para fazer, é porque corresponde com o querer do Pai, e fora discernido na oração, a atitude de se colocar diante de Deus para entrar em sintonia com seu querer e vontade. O que Jesus faz, vale, evidentemente para seus discípulos, ou seja, deverão se colocar em relação à Deus através da oração. A oração, neste caso, se torna um pedido: que o Dono da messe (da colheita) envie mais operários. Esta oração, portanto, ressalta que a Missão é Graça de Deus. É um projeto que vem de Deus. Ele que é o dono da messe.

Outra característica do discípulo-missionário de Jesus é a revelada por ele no v.3. Os discípulos são pessoas que anunciam o Reino de Deus numa realidade conflituosa e que vive na contramão do projeto de Deus. No entanto, emerge a consciência de que os discípulos possuem um pastor que os defende. Nesse sentido, os anunciadores do Reino não devem empregar os métodos violentos da sociedade que vai matar Jesus e perseguir seus discípulos. Assim, anuncia o Reino quem se despoja do poder.

Uma terceira característica do discípulo do Reino é a sua entrega confiante à providência de Deus, caracterizada pela orientação de nada levar pelo caminho. O pobre bíblico não é somente aquele que nada tem, no sentido econômico apenas, mas também é aquele que não se fecha sobre o que possui. Nesse sentido, não tendo nada ou possuindo ainda que pouco, o pobre é aquele que não se fecha nem naquele pouco, e mão do que tem, entrega-se confiante nas mãos de Deus. Só pode ser discípulo e anunciador do reino quem se despoja do ter. A mensagem possui também um caráter urgente. É o que Jesus quer dizer no v. 4: “não cumprimenteis ninguém pelo caminho!”.

Os discípulos-missionário do reino possuem mais uma característica importante: são pessoas que se preocupam por restaurar a dignidade perdida do outro: “Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: 'O Reino de Deus está próximo de vós.'” (v.8-9). Para que o anúncio seja pleno deve-se recuperar a dignidade dos que se encontram marginalizados e excluídos.

No caso dos enfermos, eles eram considerados pecadores por conta da doença que possuíam, segundo a mentalidade religiosa da época, que considerava a doença como castigo e fruto do pecado. Por causa disso, os enfermos eram afastados do convívio social e religioso no tempo de Jesus. Nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) as curas que Jesus realiza revelam-no como enviado de Deus para anunciar o Reino. O Reinado de Deus é Ele mesmo agindo na história através de Jesus.

Mas o anúncio nem sempre é acolhido. Sofre resistências. No v.11, Jesus profere uma sentença que merece ser bem compreendida. “Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo pelas ruas, dizei: Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vós”. O gesto de sacudir a poeira não significa maldição da parte de Deus. Ele se torna um símbolo profético da recusa dos destinatários, e da ruptura, por parte dos discípulos, com a conduta daqueles que fizeram ouvidos de mercador ao anúncio do Reino. Todavia, alerta Jesus, “sabei que o Reino de Deus está próximo!” (v.11).  

Na sequência, a liturgia insere os vv.17-20. Eles são como que o resumo e a síntese que os setenta e dois fazem à Jesus, ao retornarem. “Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo: 'Senhor, até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome” (v.17). A expulsão de demônios por parte dos discípulos demonstra que eles têm a mesma missão de Jesus.

Jesus declara aos setenta e dois que, de fato, “viu Satanás cair do céu como um relâmpago” (v.18). O que significa este dito de Jesus? Ele se serve de um versículo que se encontra em Is 14. Para exprimir a vitória dos discípulos, que significa desendemoninhar a história humana, Jesus recorre à imagem com a qual o profeta Isaías descreve a queda do imperialismo babilônico, representado pelo seu rei: “Como caíste do céu, Lúcifer, filho da aurora...” (Is 14,12) (MAGGIONI, 1998, p. 122).

 Com o anúncio do Reino, o poder de Satanás, que é um poder de dominação e de morte, termina. Satanás é símbolo para tudo aquilo que é antagônico ao projeto de Jesus e de Deus. Quando a comunidade age segundo o modelo da vida de Jesus, ela se coloca na contramão do anti-reino e declara a falência dele e de todas as forças, sistemas de morte e de alienação que atingem o ser humano e que o impedem de viver a liberdade do Reino.

“Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes, ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu” (v.20). Jesus alerta para a tentação da comunidade de se embriagar por causa do poder e do sucesso. O poder de vencer o mal lhes é dado por Jesus (“Eu dei a vocês o poder...”). Por isso os discípulos entendem o poder que o Mestre lhes delega como instrumento para libertar as pessoas dos poderes que oprimem. Nesse sentido, a alegria dos discípulos é saber que são protagonistas da gratuidade do Deus que caminha conosco: “Fiquem alegres porque os nomes de vocês estão escritos no céu” (v. 20b) (BORTOLINI, 2008, p. 634).

O texto nos propõe perguntas: 1) no caminho (da vida e do discipulado) com Jesus, que ruma para Jerusalém, quais características do discipulado ainda precisam ser assimiladas por mim? 2) nossas comunidades têm assumido o projeto da missão de Jesus, sendo, de fato, uma comunidade discípula-missionária? 3) no percurso com Jesus, me descubro destinatário e cooperador da missão. Tenho consciência, em meu discipulado, de que a missão da qual faço parte é, acima de tudo, Graça de Deus e projeto dele, ou de um jeito ou de outro acrescento meus projetos, meu modo de ser e minhas convicções ao projeto de salvação de Deus?

Que sigamos os passos do Senhor.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

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