O texto proposto para a liturgia do décimo
quarto domingo do tempo comum é extraído do capítulo décimo do Evangelho
segundo Lucas. Vale lembrar que já se iniciou em 9,51 a viagem de subida de
Jesus para Jerusalém. Até o capítulo 19, o evangelista relata a peregrinação de
Jesus com seus discípulos para a cidade santa.
Não se trata de uma viagem turística, como
já se afirmou em outras ocasiões, mas de um itinerário formativo-catequético
para o discípulo que caminha com Jesus. Através desta subida, Ele vai ensinando
o discípulo sobre como assumir o discipulado do Reino, após a entronização do
mestre à direita do Pai. Vale lembrar que, é ao longo deste percurso, que
culmina em Jerusalém, com os acontecimentos da morte e ressurreição de Jesus,
que os discípulos vão se declarando a favor ou contra o projeto dele.
Agora se pode adentrar no horizonte do
texto e saboreá-lo. O v.1 introduz a narrativa informando o leitor que Jesus reuniu
e escolheu para junto de si outros 72 (dependendo do manuscrito do evangelho
segundo Lucas o número é 70), e os envia dois a dois à sua frente, a todas as
cidades e lugares que Ele deveria percorrer. Envia 72 (ou 70), paralelamente à
missão do grupo dos Doze. O costume de se enviar em dupla se deve ao fato de que um testemunho ou anuncio só pode ser corroborado por mais de uma pessoa.
O número 70 (72) é importante, e, na
verdade, revela a intencionalidade do próprio Lucas. Ele recupera para a sua
comunidade a narrativa de Gn 10, onde se encontra o elenco das nações. Faz lembrar,
também, da narrativa contida em Nm 11,16, onde Deus infunde em setenta homens
prudentes, o mesmo Espírito dado a Moisés e Aarão. Assim, o número setenta
indica a universalidade. O tema da universalidade da salvação é muito querido
por Lucas. A salvação é um convite que Deus faz à todos, e por isso ninguém deve
ficar de fora. Tanto da salvação, como da missão. O Reino de Deus é a origem da missão
cristã: todos são convocados a tomar parte na tarefa de anunciar a presença de
Jesus, aquele que traz para dentro da história humana o projeto de Deus.
Jesus lhes ordena que rezem. Esta é,
portanto, a primeira característica do discípulo do Reino e de Jesus. A oração no
evangelho de Lucas é sempre o indicativo de que tudo aquilo que Jesus está para
fazer, é porque corresponde com o querer do Pai, e fora discernido na oração, a
atitude de se colocar diante de Deus para entrar em sintonia com seu querer e
vontade. O que Jesus faz, vale, evidentemente para seus discípulos, ou seja,
deverão se colocar em relação à Deus através da oração. A oração, neste caso, se
torna um pedido: que o Dono da messe (da colheita) envie mais operários. Esta
oração, portanto, ressalta que a Missão é Graça de Deus. É um projeto que vem
de Deus. Ele que é o dono da messe.
Outra característica do discípulo-missionário
de Jesus é a revelada por ele no v.3. Os discípulos são pessoas que anunciam o Reino
de Deus numa realidade conflituosa e que vive na contramão do projeto de Deus. No
entanto, emerge a consciência de que os discípulos possuem um pastor que os defende.
Nesse sentido, os anunciadores do Reino não devem empregar os métodos violentos
da sociedade que vai matar Jesus e perseguir seus discípulos. Assim, anuncia o
Reino quem se despoja do poder.
Uma terceira característica do discípulo
do Reino é a sua entrega confiante à providência de Deus, caracterizada pela
orientação de nada levar pelo caminho. O pobre bíblico não é somente aquele que
nada tem, no sentido econômico apenas, mas também é aquele que não se fecha
sobre o que possui. Nesse sentido, não tendo nada ou possuindo ainda que pouco,
o pobre é aquele que não se fecha nem naquele pouco, e mão do que tem,
entrega-se confiante nas mãos de Deus. Só pode ser discípulo e anunciador do
reino quem se despoja do ter. A mensagem possui também um caráter urgente. É o
que Jesus quer dizer no v. 4: “não cumprimenteis ninguém pelo caminho!”.
Os discípulos-missionário do reino possuem
mais uma característica importante: são pessoas que se preocupam por restaurar
a dignidade perdida do outro: “Quando entrardes numa cidade e fordes bem
recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei
ao povo: 'O Reino de Deus está próximo de vós.'” (v.8-9). Para que o anúncio
seja pleno deve-se recuperar a dignidade dos que se encontram marginalizados e
excluídos.
No caso dos enfermos, eles eram
considerados pecadores por conta da doença que possuíam, segundo a mentalidade
religiosa da época, que considerava a doença como castigo e fruto do pecado. Por
causa disso, os enfermos eram afastados do convívio social e religioso no tempo
de Jesus. Nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) as curas que Jesus realiza
revelam-no como enviado de Deus para anunciar o Reino. O Reinado de Deus é Ele
mesmo agindo na história através de Jesus.
Mas o anúncio nem sempre é acolhido. Sofre
resistências. No v.11, Jesus profere uma sentença que merece ser bem
compreendida. “Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo
pelas ruas, dizei: Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos
contra vós”. O gesto de sacudir a poeira não significa maldição da parte de Deus.
Ele se torna um símbolo profético da recusa dos destinatários, e da ruptura,
por parte dos discípulos, com a conduta daqueles que fizeram ouvidos de mercador
ao anúncio do Reino. Todavia, alerta Jesus, “sabei que o Reino de Deus está
próximo!” (v.11).
Na sequência, a liturgia insere os
vv.17-20. Eles são como que o resumo e a síntese que os setenta e dois fazem à Jesus,
ao retornarem. “Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo: 'Senhor,
até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome” (v.17). A expulsão de demônios
por parte dos discípulos demonstra que eles têm a mesma missão de Jesus.
Jesus declara aos setenta e dois que, de
fato, “viu Satanás cair do céu como um relâmpago” (v.18). O que significa este
dito de Jesus? Ele se serve de um versículo que se encontra em Is 14. Para exprimir
a vitória dos discípulos, que significa desendemoninhar a história humana,
Jesus recorre à imagem com a qual o profeta Isaías descreve a queda do
imperialismo babilônico, representado pelo seu rei: “Como caíste do céu,
Lúcifer, filho da aurora...” (Is 14,12) (MAGGIONI, 1998, p. 122).
Com
o anúncio do Reino, o poder de Satanás, que é um poder de dominação e de morte,
termina. Satanás é símbolo para tudo aquilo que é antagônico ao projeto de
Jesus e de Deus. Quando a comunidade age segundo o modelo da vida de Jesus, ela
se coloca na contramão do anti-reino e declara a falência dele e de todas as
forças, sistemas de morte e de alienação que atingem o ser humano e que o impedem
de viver a liberdade do Reino.
“Contudo, não vos alegreis porque os
espíritos vos obedecem. Antes, ficai alegres porque vossos nomes estão escritos
no céu” (v.20). Jesus alerta para a tentação da comunidade de se embriagar por
causa do poder e do sucesso. O poder de vencer o mal lhes é dado por Jesus (“Eu
dei a vocês o poder...”). Por isso os discípulos entendem o poder que o Mestre
lhes delega como instrumento para libertar as pessoas dos poderes que oprimem.
Nesse sentido, a alegria dos discípulos é saber que são protagonistas da
gratuidade do Deus que caminha conosco: “Fiquem alegres porque os nomes de
vocês estão escritos no céu” (v. 20b) (BORTOLINI, 2008, p. 634).
O texto nos propõe perguntas: 1) no
caminho (da vida e do discipulado) com Jesus, que ruma para Jerusalém, quais características
do discipulado ainda precisam ser assimiladas por mim? 2) nossas comunidades têm
assumido o projeto da missão de Jesus, sendo, de fato, uma comunidade discípula-missionária?
3) no percurso com Jesus, me descubro destinatário e cooperador da missão.
Tenho consciência, em meu discipulado, de que a missão da qual faço parte é, acima
de tudo, Graça de Deus e projeto dele, ou de um jeito ou de outro acrescento
meus projetos, meu modo de ser e minhas convicções ao projeto de salvação de
Deus?
Que sigamos os passos do Senhor.
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.
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