sábado, 13 de julho de 2019

Homilia para o XV Domingo do Tempo Comum - Lc 10,25-37




A liturgia deste XV domingo do tempo comum nos presenteia com a narrativa de Lc 10,27-35. É importante contextualizar o ensinamento de Jesus ao interno da obra lucana. Ele os discípulos encontram-se a caminho de Jerusalém. A subida do Mestre para a cidade santa, mais do que a destino geográfico, é uma subida para sua livre e soberana entrega na Cruz. Mas este objetivo vai, ao longo destes dez capítulos, delineando-se pelas palavras de Jesus.

Estamos no capítulo 10 do Evangelho segundo Lucas, e os versículos para esta liturgia são posteriores ao envio dos setenta e dois discípulos. No caminho de Jerusalém, Jesus propõe aos discípulos um ensinamento acerca do modo prático de realizar a vontade de Deus, conforme meditado no domingo anterior. Lucas insere, então, a lição dividida em duas partes: o diálogo do Jesus com o doutor da lei (“especialista” em Deus e suas leis / mandamentos), e o relato parabólico do “bom samaritano”.

O diálogo inicia-se com uma pergunta do especialista na lei: “Mestre, o que devo fazer para ter a vida eterna? (v.25). A intenção do mestre da lei é muito clara, e nos é revelada pelo evangelista: interroga a Jesus para pô-lo à prova. O termo grego Peirasmós (ekpeirásôn), comprova esta intenção. Trata-se de uma armadilha! Ainda que se transpareçam as “segundas intenções” do doutor da lei, a pergunta em si mesma era muito comum nos ambientes sinagogais do tempo de Jesus. O discípulo interpelava o mestre (rabino) da seguinte maneira: “mestre, ensina-nos os caminho da vida para que possamos merecer a vida futura”. O acento da pergunta está no “fazer” – na práxis – , o que é muito autêntico e original na cultura bíblica.

Jesus responde à pergunta do doutor com uma interrogação: “O que está escrito na Lei? Como lês? (v.26). Com isso, o mestre de Nazaré reorienta o doutor da lei à própria Lei, fazendo-o comprometer-se com aquilo que ensina aos outros, de modo que o doutor se enxergue no próprio texto, e no ensinamento nele contido, confronte-se em sua prática. Na verdade, Jesus aponta para a Lei (Torá = Instrução), porque nela está contida toda a revelação da vontade do Deus de Israel: uma maneira de dizer que não há necessidade nem espaço para novas formulações.

O Doutor lhe responde com a formula da profissão de Fé do povo de Israel – o Shemá (Escuta, ó Israel) – expressada em Dt 6,5: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua inteligência”. E acrescenta Lv.19,18: “E o teu próximo como a ti mesmo”. A junção das duas normativas acena para a implicação do modo coerente e exato de se ler e viver as escrituras, de modo a entrar no caminho para a vida, ou seja, através da relação vital e existencial com Deus verificada na relação com o próximo. Jesus aprova a resposta do doutor da Lei e não lhe acrescenta nenhum outro ensinamento, dizendo apenas “Faze isto e viverás”. Até aqui, no nível da narração, não há nenhuma novidade.

Ora, o amor ao próximo estava na pauta da pregação dos profetas, no Antigo Testamento, e por isso, previsto na Torá, na Palavra de Deus. Os porta-vozes de Deus – os Profetas – em suas pregações e denúncias contra o povo infiel, condenavam as práticas religiosas (orações, cultos, sacrifícios, liturgias) desvinculadas da relação com o próximo. A crítica dos profetas reside no fato de que os piedosos israelita concebiam as suas relações com YHWH unicamente pelas vias das práticas religiosas da oração, do culto e da liturgia. Eles pensavam que as liturgias, os incensos e os sacrifícios podiam aplacar e comprar a Deus; que podiam tê-Lo nas palmas das mãos. Os profetas condenarão essa ideia e prática. Deus não se deixa comprar, nem se agrada com essa mentalidade; não se deixa levar por nada de aparente ou externo. Com Deus não há barganha.

Agora entramos no segundo momento da narrativa do relato lucano: a parábola do Bom Samaritano. À pergunta sem-jeito do doutor da Lei, “Quem é meu próximo?”, o mestre de Nazaré responde com uma parábola. Um homem (e pelo contexto judaico se pode intuir que seja um israelita) descia de Jerusalém para Jericó. No caminho caiu nas mãos de assaltantes violentos. Estes o deixam quase morto pelo caminho. Sobem pelo caminho um sacerdote e um levita (ambos especialistas da liturgia levítico-cultual) e passam pelo caído-ferido sem nem ao menos tocá-lo, para que não ficassem impuros para culto e para as orações, conforme previa a Lei mosaica. Mas um terceiro personagem aparece no relato. Um samaritano. Uma figura controversa.

Os Judeus não se davam com os samaritanos. A Samaria, bem como o norte de Israel, a Galileia das nações, eram tidos como pagãos e, portanto, impuros, desde a dominação do império assírio em 722 a.C, quando do primeiro exílio promovido por esse império. A política de dominação deles era muita perversa. Ao deportar e dispersar a população local para as diferentes regiões de seu império, os assírios colocavam no lugar destes povos locais outros povos, misturando-os consigo mesmos. Nesse sentido, o norte de Israel sofreu influência religiosa de outros povos, que se mesclavam com a fé judaica javista. Um judaísmo misturado, e não puro, como o do sul. Por essa miscigenação os Judeus do sul (de Jerusalém) consideravam os samaritanos como impuros e hereges.

A esta altura, a parábola explicita seu elemento paradoxal, que visa chamar e prender a atenção do leitor: é um samaritano, que na parábola, cumpre perfeitamente a Lei de todos os israelitas; aquele que era considerado “herege”, pagão e estrangeiro cumpre com perfeição a Lei do Amor a Deus.

O texto é bem claro, o samaritano, movido por compaixão (splagnisthe) socorre o homem caído e ferido pelo caminho. O termo compaixão (Splangnisomai / Splangnon) no evangelho de Lucas é de fundamental importância, porque o terceiro evangelho é conhecido como o Evangelho da Misericórdia.

O termo compaixão é traduzido por Misericórdia. Esta não consiste em sentimentos, mas na capacidade de agir em favor do outro que sofre. Ele traduz o termo hebraico Hesed (amor), que significa um amor visceral, entranhado. Deus, diante do sofrimento dos pequenos e pobres, dos marginalizados e oprimidos, remexe-se no seu íntimo e intervém em favor deles; tem “dor de barriga” pelo sofrimento do outro e só assim é capaz de agir com misericórdia, com seu amor visceral. Lucas em sua catequese evangélica identifica a misericórdia de Deus em Jesus. Ele é o rosto e a personificação da Misericórdia de Deus. Jesus é a Misericórdia que se fez carne.

Entramos na pragmática do Texto, sua intencionalidade e finalidade para a comunidade cristã daquela primeira hora, e para nós, a geração posterior. Jesus, ao perguntar ao doutor a opinião dele sobre quem agiu como próximo daquele ferido, faz com que o especialista da Lei se posicione, e reconheça-se também neste relato. Lembre-se que quando as personagens não recebem nome no texto, é porque o autor sugere que o leitor se identifique com elas. Sinta-se questionado e provocado pela parábola, a qual tem esta função, de modo a gerar uma mudança de comportamento e de vida no leitor-ouvinte.

Para Jesus, não se deve questionar quem é ou quem pode ser objeto do amor misericordioso, mas como alguém pode tornar-se próximo do outro. O próximo é, então, todo aquele que se aproxima do outro com um amor operativo, e não com teorias. É aquele que transcende os limites socioculturais; que ultrapassa todo o senso de diferença (e socorre a diversidade). O caminho para a vida eterna é o amor-misericórdia operativo para com todos os homens e mulheres. E aqui é que se distingue quem é autêntico discípulo-apóstolo de Jesus.

As comunidades cristãs, e de modo particular, a de Lucas compreenderam a Jesus como o bom samaritano. Ele é o estrangeiro galileu que leva a termo as tradições religiosas de seu povo até as últimas consequências. Jesus é aquele que se moveu no íntimo de suas entranhas devido aos sofrimentos dos outros, e por isso moveu-se exteriormente em atitudes humanizadoras. Não se levou por preconceitos nem prescrições legais, mas mostrou-se, na linguagem lucana, o grande Filantropo (amante da humanidade) que resgata a mesma humanidade sofredora.

Uma bela interpretação alegórica nos é proposta por Orígenes de Alexandria, escritor eclesiástico da virada do século I para o II, que dirá que homem da parábola simboliza o velho Adão que desce do paraíso (Jerusalém) para o mundo (Jericó), e o Samaritano é símbolo de Cristo. A hospedaria é símbolo da Igreja, da comunidade dos discípulos de Jesus, que tem por dever cuidar dos caídos pelo caminho. Ser verdadeiro hospital de campanha no meio do mundo, como dirá o Papa Francisco, é missão da Igreja-hospedaria. Deve ser ela casa da misericórdia, e cuidar para que todos e todas tenham sua dignidade restituída.

No bom samaritano, Jesus não propõe apenas um belo exemplo a ser imitado, mas também abre uma nova perspectiva na organização das relações humanas. Esta já é uma realidade inaugurada em sua maneira de falar e agir com os homens e mulheres de seu tempo (FABRIS, R. 1998. p.127).

Será que sabemos, hoje, como comunidade dos discípulos (Igreja), reconhecer os caídos e feridos nas vias deste mundo? Sabemos acolhê-los, com suas feridas? Sabemos devolver-lhes a dignidade? Temos tido a coragem de tocar-lhes as feridas, e nelas nos sujarmos? Ou preferimos ainda uma espiritualidade estéril, desvinculada das relações humanizadoras, desencarnadas da prática do amor-misericordia, que podem devolver a dignidade de Filhos e Filhas de um único Pai, no Primogênito Irmão?

 E nós, discípulos de hoje, temos a parreisia (coragem) de andar na direção que ele aponta, ao encontro do caído e ferido? Temos a coragem de nos tornarmos próximos dos outros, em atitudes de amor?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

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