A liturgia deste XV domingo do tempo comum
nos presenteia com a narrativa de Lc 10,27-35. É importante contextualizar o ensinamento
de Jesus ao interno da obra lucana. Ele os discípulos encontram-se a caminho de
Jerusalém. A subida do Mestre para a cidade santa, mais do que a destino
geográfico, é uma subida para sua livre e soberana entrega na Cruz. Mas este
objetivo vai, ao longo destes dez capítulos, delineando-se pelas palavras de
Jesus.
Estamos no capítulo 10 do Evangelho segundo
Lucas, e os versículos para esta liturgia são posteriores ao envio dos setenta
e dois discípulos. No caminho de Jerusalém, Jesus propõe aos discípulos um
ensinamento acerca do modo prático de realizar a vontade de Deus, conforme
meditado no domingo anterior. Lucas insere, então, a lição dividida em duas
partes: o diálogo do Jesus com o doutor da lei (“especialista” em Deus e suas
leis / mandamentos), e o relato parabólico do “bom samaritano”.
O diálogo inicia-se com uma pergunta do
especialista na lei: “Mestre, o que devo fazer para ter a vida eterna? (v.25).
A intenção do mestre da lei é muito clara, e nos é revelada pelo evangelista:
interroga a Jesus para pô-lo à prova. O termo grego Peirasmós (ekpeirásôn),
comprova esta intenção. Trata-se de uma armadilha! Ainda que se transpareçam as
“segundas intenções” do doutor da lei, a pergunta em si mesma era muito comum
nos ambientes sinagogais do tempo de Jesus. O discípulo interpelava o mestre
(rabino) da seguinte maneira: “mestre, ensina-nos os caminho da vida para que
possamos merecer a vida futura”. O acento da pergunta está no “fazer” – na
práxis – , o que é muito autêntico e original na cultura bíblica.
Jesus responde à pergunta do doutor com
uma interrogação: “O que está escrito na Lei? Como lês? (v.26). Com isso, o
mestre de Nazaré reorienta o doutor da lei à própria Lei, fazendo-o
comprometer-se com aquilo que ensina aos outros, de modo que o doutor se
enxergue no próprio texto, e no ensinamento nele contido, confronte-se em sua
prática. Na verdade, Jesus aponta para a Lei (Torá = Instrução), porque nela
está contida toda a revelação da vontade do Deus de Israel: uma maneira de
dizer que não há necessidade nem espaço para novas formulações.
O Doutor lhe responde com a formula da
profissão de Fé do povo de Israel – o Shemá (Escuta, ó Israel) – expressada em
Dt 6,5: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma e
com toda a tua inteligência”. E acrescenta Lv.19,18: “E o teu próximo como a ti
mesmo”. A junção das duas normativas acena para a implicação do modo coerente e
exato de se ler e viver as escrituras, de modo a entrar no caminho para a vida,
ou seja, através da relação vital e existencial com Deus verificada na relação
com o próximo. Jesus aprova a resposta do doutor da Lei e não lhe acrescenta
nenhum outro ensinamento, dizendo apenas “Faze isto e viverás”. Até aqui, no
nível da narração, não há nenhuma novidade.
Ora, o amor ao próximo estava na pauta da
pregação dos profetas, no Antigo Testamento, e por isso, previsto na Torá, na
Palavra de Deus. Os porta-vozes de Deus – os Profetas – em suas pregações e
denúncias contra o povo infiel, condenavam as práticas religiosas (orações,
cultos, sacrifícios, liturgias) desvinculadas da relação com o próximo. A
crítica dos profetas reside no fato de que os piedosos israelita concebiam as
suas relações com YHWH unicamente pelas vias das práticas
religiosas da oração, do culto e da liturgia. Eles pensavam que as liturgias,
os incensos e os sacrifícios podiam aplacar e comprar a Deus; que podiam tê-Lo
nas palmas das mãos. Os profetas condenarão essa ideia e prática. Deus não se
deixa comprar, nem se agrada com essa mentalidade; não se deixa levar por nada de aparente ou externo. Com Deus não há
barganha.
Agora entramos no segundo momento da
narrativa do relato lucano: a parábola do Bom Samaritano. À pergunta sem-jeito
do doutor da Lei, “Quem é meu próximo?”, o mestre de Nazaré responde com uma
parábola. Um homem (e pelo contexto judaico se pode intuir que seja um
israelita) descia de Jerusalém para Jericó. No caminho caiu nas mãos de
assaltantes violentos. Estes o deixam quase morto pelo caminho. Sobem pelo
caminho um sacerdote e um levita (ambos especialistas da liturgia
levítico-cultual) e passam pelo caído-ferido sem nem ao menos tocá-lo, para que
não ficassem impuros para culto e para as orações, conforme previa a Lei
mosaica. Mas um terceiro personagem aparece no relato. Um samaritano. Uma
figura controversa.
Os Judeus não se davam com os samaritanos.
A Samaria, bem como o norte de Israel, a Galileia das nações, eram tidos como
pagãos e, portanto, impuros, desde a dominação do império assírio em 722 a.C,
quando do primeiro exílio promovido por esse império. A política de dominação
deles era muita perversa. Ao deportar e dispersar a população local para as diferentes
regiões de seu império, os assírios colocavam no lugar destes povos locais
outros povos, misturando-os consigo mesmos. Nesse sentido, o norte de Israel
sofreu influência religiosa de outros povos, que se mesclavam com a fé judaica
javista. Um judaísmo misturado, e não puro, como o do sul. Por essa
miscigenação os Judeus do sul (de Jerusalém) consideravam os samaritanos como
impuros e hereges.
A esta altura, a parábola explicita seu elemento
paradoxal, que visa chamar e prender a atenção do leitor: é um samaritano, que
na parábola, cumpre perfeitamente a Lei de todos os israelitas; aquele que era
considerado “herege”, pagão e estrangeiro cumpre com perfeição a Lei do Amor a
Deus.
O texto é bem claro, o samaritano, movido
por compaixão (splagnisthe) socorre o homem caído e ferido pelo caminho. O
termo compaixão (Splangnisomai / Splangnon) no evangelho de Lucas é de
fundamental importância, porque o terceiro evangelho é conhecido como o
Evangelho da Misericórdia.
O termo compaixão é traduzido por
Misericórdia. Esta não consiste em sentimentos, mas na capacidade de agir em
favor do outro que sofre. Ele traduz o termo hebraico Hesed (amor), que significa
um amor visceral, entranhado. Deus, diante do sofrimento dos pequenos e pobres,
dos marginalizados e oprimidos, remexe-se no seu íntimo e intervém em favor
deles; tem “dor de barriga” pelo sofrimento do outro e só assim é capaz de agir
com misericórdia, com seu amor visceral. Lucas em sua catequese evangélica
identifica a misericórdia de Deus em Jesus. Ele é o rosto e a personificação da
Misericórdia de Deus. Jesus é a Misericórdia que se fez carne.
Entramos na pragmática do Texto, sua
intencionalidade e finalidade para a comunidade cristã daquela primeira hora, e
para nós, a geração posterior. Jesus, ao perguntar ao doutor a opinião dele
sobre quem agiu como próximo daquele ferido, faz com que o especialista da Lei
se posicione, e reconheça-se também neste relato. Lembre-se que quando as
personagens não recebem nome no texto, é porque o autor sugere que o leitor se
identifique com elas. Sinta-se questionado e provocado pela parábola, a qual
tem esta função, de modo a gerar uma mudança de comportamento e de vida no
leitor-ouvinte.
Para Jesus, não se deve questionar quem é
ou quem pode ser objeto do amor misericordioso, mas como alguém pode tornar-se
próximo do outro. O próximo é, então, todo aquele que se aproxima do outro com
um amor operativo, e não com teorias. É aquele que transcende os limites
socioculturais; que ultrapassa todo o senso de diferença (e socorre a
diversidade). O caminho para a vida eterna é o amor-misericórdia operativo para
com todos os homens e mulheres. E aqui é que se distingue quem é autêntico
discípulo-apóstolo de Jesus.
As comunidades cristãs, e de modo
particular, a de Lucas compreenderam a Jesus como o bom samaritano. Ele é o
estrangeiro galileu que leva a termo as tradições religiosas de seu povo até as
últimas consequências. Jesus é aquele que se moveu no íntimo de suas entranhas
devido aos sofrimentos dos outros, e por isso moveu-se exteriormente em
atitudes humanizadoras. Não se levou por preconceitos nem prescrições legais,
mas mostrou-se, na linguagem lucana, o grande Filantropo (amante da humanidade)
que resgata a mesma humanidade sofredora.
Uma bela interpretação alegórica nos é
proposta por Orígenes de Alexandria, escritor eclesiástico da virada do século
I para o II, que dirá que homem da parábola simboliza o velho Adão que desce do
paraíso (Jerusalém) para o mundo (Jericó), e o Samaritano é símbolo de Cristo.
A hospedaria é símbolo da Igreja, da comunidade dos discípulos de Jesus, que
tem por dever cuidar dos caídos pelo caminho. Ser verdadeiro hospital de
campanha no meio do mundo, como dirá o Papa Francisco, é missão da
Igreja-hospedaria. Deve ser ela casa da misericórdia, e cuidar para que todos e
todas tenham sua dignidade restituída.
No bom samaritano, Jesus não propõe apenas
um belo exemplo a ser imitado, mas também abre uma nova perspectiva na
organização das relações humanas. Esta já é uma realidade inaugurada em sua
maneira de falar e agir com os homens e mulheres de seu tempo (FABRIS, R. 1998.
p.127).
Será que sabemos, hoje, como comunidade
dos discípulos (Igreja), reconhecer os caídos e feridos nas vias deste mundo?
Sabemos acolhê-los, com suas feridas? Sabemos devolver-lhes a dignidade? Temos
tido a coragem de tocar-lhes as feridas, e nelas nos sujarmos? Ou preferimos
ainda uma espiritualidade estéril, desvinculada das relações humanizadoras,
desencarnadas da prática do amor-misericordia, que podem devolver a dignidade
de Filhos e Filhas de um único Pai, no Primogênito Irmão?
E
nós, discípulos de hoje, temos a parreisia (coragem) de andar na direção que
ele aponta, ao encontro do caído e ferido? Temos a coragem de nos tornarmos
próximos dos outros, em atitudes de amor?
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.
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