sábado, 11 de maio de 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR - Mc 16,15-20

 

O evangelista Marcos conclui seu evangelho com o anúncio da ressurreição de Jesus às mulheres, incumbindo-as da missão de comunicar aos onze que se dirijam de Jerusalém para a Galileia. O ressuscitado os encontrará lá. No entanto, amedrontadas, as mulheres fogem. Abruptamente, o evangelista interrompe a narrativa, pondo um ponto final em seu evangelho (Mc 16,1-8), o que chamamos de final original. O que suscitou certo incômodo nas comunidades cristãs do primeiro século. Por isso, a Igreja, no século II acrescentou um segundo final ao primeiro evangelho, considerando-o como final canônico, oriundo da tradição eclesial das comunidades pós-pascais. Trata-se do texto de Mc 16,9-20. A solenidade da Ascensão, no entanto, serve-se dos versículos finais deste capítulo dezesseis, Mc 16,15-20.

O Mistério da Ascensão, dentro dos acontecimentos pascais, tem a intenção de prolongar o tempo do Ressuscitado em meio aos discípulos, de modo a ajuda-los a viver e amadurecer a experiência da vida que venceu a morte. É verdade, que, quem periodiza o tempo dos eventos pós-pascais é o evangelista Lucas. Marcos – que é o evangelho a ser meditado – nem se preocupa em quantificar cronologicamente o evento. Mas o terceiro evangelista foi muito sábio ao estabelecer este período, que não é essencialmente cronológico, mas teológico. O número 40 marca “um tempo necessário”. É o período de uma geração. Nesse sentido,  após este período teológico, de acordo com o evangelista, Jesus é entronizado (colocado à direita de Deus) no céu. Isso significa que a experiência dos discípulos feita com o Senhor Ressuscitado havia sido suficiente para se compreender a novidade da ressurreição.

No v.15, o evangelista recorda a ordem de Jesus: devem sair – andar – ir, e não ficarem parados e fechados num único lugar, a fim de proclamar a Boa Nova. Através deste mandato, Marcos recorda os primeiros capítulos de seu evangelho, a missão dada aos quatro primeiros: pescar homens. Devem ir aos homens e mulheres de seu tempo e retirar lhes das situações de morte e dar lhes vida (Mc 1,16-20). Iluminados pela Ressurreição/Ascensão de Jesus, os discípulos são convidados a ressignificar e reanimar a própria vida e a Missão recebidas. Mas em que consiste esta Boa Notícia? Consiste no Amor de Deus que atinge toda criatura. Importantíssimo este versículo. Em nenhuma parte dele se fala em converter as pessoas. Mas somente: proclamar/anunciar o Evangelho. Somente o Espírito e o Evangelho geram a conversão no indivíduo. Nunca o pregador. Este é apenas instrumento. E o conteúdo da pregação e da proclamação, isto é, o Evangelho é sempre oferta gratuita; uma proposta. Jamais uma imposição. Quem faz acontecer a obra é Cristo e Seu Espírito.

Dos v.16-18, o Jesus de Marcos elenca os efeitos do anúncio da Boa Noticia naqueles que aderiram a ela. “Quem foi batizado será salvo. Quem não foi já está condenado”. Este dito do Senhor merece atenção e deve ser compreendido, de modo a evitar qualquer mentalidade exclusivista e excludente. Aquele que confronta sua consciência com Jesus, e, percebendo seu significado vital, adere a Ele está salvo. A salvação não pode ser entendida como uma localização como paraíso, céu. Mas a realização plena da humanização da pessoa, a qual acontece unicamente por meio da humanidade de Jesus. Aquele que recusa e faz resistência a Jesus e seu modo de vida, se exclui da Salvação.

No v.17, o evangelista faz a memória dos sinais que acompanharão a vida do fiel, decorrentes da opção fundamental por Jesus e seu projeto. Eles serão os mesmos realizados pelo Senhor durante sua vida e ministério: expulsar demônios; falar novas línguas; pegar em animais peçonhentos e beber venenos; impor as mãos sobre os enfermos para fazer lhes bem. Eles devem ser compreendidos bem, e dentro do horizonte do texto.

1) Expulsar demônios consiste na atitude de libertar as pessoas de todas as forças e ideologias funestas, ou sistemas, anti-projetos e situações que impedem a acolhida do Reino de Deus anunciado por Jesus. Para fazer a experiência com Deus, se faz necessária a plena liberdade. E não se trata, aqui, de exorcismos rituais. A pesquisa teológica e exegética classifica os demônios do tempo e da cultura de Jesus como psicopatologias ou enfermidades estudadas e explicadas pela medicina e pela psicologia atual. Tudo o que era desconhecido na Palestina dos anos trinta era tido como algo sobrenatural.

A própria palavra “demônio” em grego é neutra, ou seja, não possui gênero e pode significar algo ruim ou bom. Por isso, se faz necessário compreender e interpretar esta figura do demônio como sendo as mesmas coisas contra as quais o Senhor enfrentou durante sua missão: a alienação da consciência, ainda que a fonte originária deste fosse a própria instituição religiosa; a exclusão gerada pelos poderes imperiais; a prepotência e autossuficiência dos líderes religiosos; a recusa; a resistência e a maldade. Com efeito, “expulsar demônios”, de acordo com o horizonte do texto, significa eliminar o mal do mundo e comprometer-se com o Bem. Aquele que aderiu, real e profundamente, ao Evangelho elimina o mal de sua vida, e da vida de seu próximo.

Quais são os demônios que precisam ser expulsos de nosso meio? A maldade, a violência, o ódio, a vingança, a indiferença, o desamor, a maledicência, a intolerância, a soberba e puritanismo, arrogância, a autossuficiência, a mentira e a inveja e a  O amor é o antidoto frente ao mal.

Em relação ao 2) “falar novas línguas”, este sinal aponta, na verdade, para realidade da salvação e missão universal, onde o Evangelho encontra-se com a cultura, com a realidade, com homem concreto de todos os tempos e lugares. Uma boa noticia que não exclui, antes, inclui. Para bem compreender estes sinais importa recordar que eles não são dons extraordinários com os quais Jesus dota os discípulos, mas são símbolos de um compromisso: gerar e transformar vidas. Falar a língua do amor, da solidariedade, da fraternidade, da gratuidade, da fraternidade, da harmonia e da comunhão. Estas são as novas línguas faladas pelo próprio Jesus.

Ninguém deverá ser inconsequente ao manusear 3) animais selvagens e peçonhentos, tampouco beber, como tira-gosto, algum tipo de veneno; 4). Serpente e veneno simbolizam, no horizonte cultural da época, tudo o que pode causar mal e ferir. O discípulo que aderiu ao projeto de Jesus deverá ser aquele que se compromete em transformar situações de morte e de perigo em situações e condições de vida.

5) Impor as mãos sobre enfermos para fazer lhes bem: é interessante que o evangelista não use, no original em grego, o verbo “curar (Therapéuo)”, mas a expressão “fazer bem (gr. καλῶς ἕξουσιν / kalós éxousin)”, porque o gesto de impor as mãos, não necessariamente garante a cura. Ora, Jesus não curou a todos! Mas trata-se de um gesto de solidariedade, porque o enfermo, na cultura e na sociedade de seu tempo, era visto como pecador público. A enfermidade era concebida como fruto de um pecado cometido pela pessoa ou por seus antepassados. Quando o Senhor realiza um gesto terapêutico, mais do que a cura física, ele restaura a dignidade da pessoa, reinserindo-a na vida social, novamente. Impor as mãos para fazer-lhes o bem, significa, portanto, a capacidade que o discípulo e a comunidade possuem de se solidarizar, reintegrar e gerar vida.

Depois de comunicar lhes a missão, Jesus foi elevado aos Céus. É necessário compreender a cosmologia da época, isto é, a concepção de universo, espaço e tempo do povo da bíblia. O céu é o lugar da habitação de Deus, e expressa a condição divina.  “E sentou-se à direita de Deus”. Jesus dissera aos discípulos que eles veriam o Filho do Homem sentado à direita do Poder. Esta condição acena para uma posição de honra. Aplicando essa imagem ao Cristo, o evangelista pretende afirmar que Ele cumpriu plenamente a missão de revelar a face misericordiosa do Pai. Por ter sido fiel a ela, isso foi levado em conta pelo Pai, que o enalteceu, ao entronizá-lo a sua direita.

Ação de elevar o Filho é realizada pelo Pai, assim como a ressurreição. A sua elevação não é outra coisa que retornar ao âmbito divino. Desse modo, Marcos visa responder aos assassinos de Jesus: aquele homem que havia sido condenado como blasfemo, e morto por eles, agora está à Direita de Deus, porque Ele mesmo assim o quis. É uma maneira que o evangelista encontra para dizer que o Crucificado pertence, agora, ao âmbito da vida inextinguível.

A ascensão de Jesus não é uma separação ou um distanciamento do mundo e dos homens. O mistério deste acontecimento pretende mostrar que Ele leva consigo a nossa humanidade, porque a fez sua, elevando e glorificando a Carne e a Natureza humana. E, mais ainda, desde a plenitude de sua divindade colabora com a atividade dos seus, como se lê no versículo seguinte: “Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (v.20). Subiu aos céus, mas permanece com eles, tornando esta presença ainda mais intensa, e com maior proximidade.

A ascensão do Senhor marca a plenitude (ou a consumação) da ressurreição. O ressuscitado penetra o mundo do Pai, conferindo a sua comunidade a continuidade de Sua missão, proclamando a Boa Nova a toda a criação.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 4 de maio de 2024

REFLEXÃO PARA O VI DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 15,9-17:

 


O texto proposto pela liturgia para este sexto domingo da páscoa é a continuidade da alegoria da videira, meditado no domingo anterior (Jo 15,1-8). Jo 15,9-17 toca no tema do amor: o bem mais precioso que Jesus entrega em seu testamento somado ao dom de sua existência. Com isso, chegamos ao coração deste discurso de despedida que o Quarto Evangelho faz memória.

O amor é o dinamismo de vida que o Espírito de Jesus e do Pai realizam na pessoa e na realidade. Amor, que gera uma nova condição relacional entre a humanidade e Deus (amigos; e não mais servos), e a alegria, o distintivo do discípulo e da comunidade cristã.

O Senhor, na continuidade de seu ensinamento iniciado no discurso da videira, declara: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor” (v.9). O modelo do amor de Jesus é a forma como o Pai O ama. O evangelista usa o adverbio “como” para expressar a unidade existente entre eles. A forma como o Pai ama só pode ser encontrada na existência do Filho. Ele revela através do dom de sua vida, com gestos, atitudes, opções e palavras – durante toda a Sua missão – em que consiste o amor de Deus. 

O leitor-discípulo do Quarto Evangelho não pode se esquecer de que este discurso de despedida se dá junto a mesa. Antes, porém, Jesus realiza o gesto que expressa, profeticamente, a doação da própria vida – a sua capacidade de amar – lavando os pés dos seus (Jo 13). Este, é paradigma – modelo, forma – para a sua vida. Ele expressa a radicalidade do Seu amor.

Mas que amor é este? É importante se deter sobre esta reflexão um pouco. Na antiguidade clássica havia duas formas muito comuns de se falar de amor: Eros (gr. Ἔρως) e Filía (gr. Φιλία). O primeiro, sempre relacionado à ideia da reciprocidade. Consistia na capacidade de nutrir-se daquilo que outro pode oferecer, e, nesse sentido, oferecer-lhe o que falta. Ele está na forma sentimental, buscando identifica-lo com coisas atrativas que suscitam tudo aquilo que é belo. É uma pulsão de vida, inerente à natureza humana criada e desejada por Deus. Interessante: é o próprio Deus que cria o ser humano também com o Eros. É a busca e o anseio por tudo aquilo que pode preencher de sentido e de plenitude a vida. Impulsiona a buscar pelo outro por aquilo que ele pode dar. Esta forma de amor era expressão da vida dos apaixonados. Todavia, este impulso – pulsão – de amor corre o risco de fechar a pessoa em si mesma, e passar a uma dimensão egoística. Não é deste amor sobre o qual fala Jesus.

Quase não utilizado na antiguidade clássica pelos gregos, o ágape é a forma utilizada por Jesus para descrever, expressar e realizar o Seu amor e do Pai. O verbo agapao (gr. αγαπαω) aparece só neste discurso de despedida vinte e cinco vezes, sendo que cinco, só neste capítulo quinze. O amor ágape é a forma do amor incondicional e gratuito; é puro dom. É desinteressado. Não exige nada em troca, muito menos ser amado. Ama, não porque o outro pode corresponder e, como que numa troca, encontrar força de sentido, mas sim porque percebe a falta existente no outro. O amor com que o Cristo ama é aquele que deseja ofertar tudo se si para que o outro tenha tudo; tenha vida. É a capacidade de amar inclusive aqueles que desejam o mal ao próximo; que persegue e odeia. Portanto, é gerador de vida. Ou seja, o Senhor estabelece como Sua forma de vida este modo de amar. Assim, o amor do discípulo deverá ser como aquele vivido existencialmente pelo Mestre. Porque este não é um sentimento, mas uma atitude: doar-se em serviço. Ele não se transmite através de uma doutrina, mas por meio de gestos que comunicam e geram vida.

“Permanecei no meu amor” (v.9b). O evangelista trabalha, uma vez mais, com o verbo “permanecer” (gr. μένω), o qual indica a capacidade e estabelecer comunhão. Como já sabemos, ele alude à temática da habitação de Deus na história e na realidade. Jesus de Nazaré é a habitação – morada – de Deus definitiva. Mas o Senhor instrui o discípulo para permanecer no Seu amor. Ou seja, tornar a forma do amor com o qual Ele vive, como sua morada/habitação. Residir no amor do mestre significa tornar-se Sua morada.

“Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor” (v.10). Jesus fala de “mandamentos” no plural. Mas na narrativa do lava-pés ele mencionou apenas um mandamento, ao qual chama de “novo”. Novo, porque supera em qualidade todos os outros mandamentos da lei de Moisés, e não por ser algo a se acrescentar ao decálogo. Existe um único mandamento: o amor. Quando este é vivido através das atitudes e gestos servidores pelo discípulo ele se torna um mandamento único, que tem a capacidade de superar os demais. Por isso, o amor transformado e vivido na dinâmica do serviço se torna a única garantia de comunhão com Jesus e o Pai. Aquele que acolhe em dom e resposta o mandamento de amor, faz a experiência da comunhão com Deus e se torna sua morada; sua habitação.

“Eu vos disse isto, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (v.11). Jesus insere um ensinamento novo na catequese acerca do amor: a alegria. O distintivo do fiel discípulo é a alegria. Esta, não depende das alternâncias da vida. A alegria provém da capacidade de sentir-se amado. Ela é a constante expressão daquele que encontrou o verdadeiro sentido da vida. Assim, a alegria consiste na capacidade de gerar vida e amor ao próximo. Não consiste numa vida sorridente, desconexa da realidade nua e crua que rodeia; não se trata de uma euforia entusiástica, ou mesmo, inconsequente. Uma pessoa/discípulo que tem em si a alegria do Seu Senhor é aquela que, mesmo diante das dificuldades e obstáculos de sua vida sabe e consegue transmitir a plenitude de vida de Jesus àquele que ainda não a tem ou à quem a perdeu. A alegria, mais do que um sentimento eufórico, é uma atitude de vida.

No versículo 13, emerge uma temática que perpassará os v.v.14-16. A amizade. “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos”. Jesus inaugura um novo modo de relação com Deus. Ele se serve do contexto da relação mestre-discípulo. Na sua época esta relação acontecia de modo muito distante. O discípulo era servo do seu mestre, e, este, por sua vez, lhe era superior, como um patrão. Todavia, a relação com Jesus (e com Deus) não se dá a partir dessa ótica. Ele chama seus discípulos de amigos. Este, é aquele que nutre proximidade, intimidade, constância, familiaridade. Sensível ao que o outro necessita e se põe a realizar, sem que lhe seja mandado ou pedido. Entre os amigos não existe maior e menor. Não há hierarquias. Há igualdade e horizontalidade. O Senhor não precisa de servos porque ele mesmo se põe a servir a humanidade. O que ele necessita é de pessoas que, como ele e com ele, colaborem com este serviço. Mas isso só é possível se o discípulo guardar, no sentido de observar, praticar, realizar o mandamento: viver a vida na dinâmica do amor gerador de vida.

“Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça” (v.16). O fruto que Jesus e o Pai desejam e esperam do discípulo é o amor. A comunidade dos discípulos não pode ser uma comunidade imóvel. Pelo contrário, ela deve ir. O evangelista usa um verbo de movimento, a fim de indicar para os discípulos que a comunidade deve viver e frutificar esse amor indo ao encontro das pessoas.

O texto de hoje propõe algumas perguntas: como temos vivido nossa relação com Jesus, na condição de servos, ou temos ousado viver na condição de amigos? Em nossa vida e em nossa comunidade a alegria tem sido o distintivo de que somos discípulos e comunidade de Jesus? Como temos vivido na prática o mandamento do amor?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.