O evangelista
Marcos conclui seu evangelho com o anúncio da ressurreição de Jesus às
mulheres, incumbindo-as da missão de comunicar aos onze que se dirijam de
Jerusalém para a Galileia. O ressuscitado os encontrará lá. No entanto,
amedrontadas, as mulheres fogem. Abruptamente, o evangelista interrompe a
narrativa, pondo um ponto final em seu evangelho (Mc 16,1-8), o que chamamos de
final original. O que suscitou certo incômodo nas comunidades cristãs do
primeiro século. Por isso, a Igreja, no século II acrescentou um segundo final
ao primeiro evangelho, considerando-o como final canônico, oriundo da tradição
eclesial das comunidades pós-pascais. Trata-se do texto de Mc 16,9-20. A
solenidade da Ascensão, no entanto, serve-se dos versículos finais deste
capítulo dezesseis, Mc 16,15-20.
O Mistério da Ascensão, dentro dos acontecimentos pascais, tem a intenção de prolongar o tempo do Ressuscitado em meio aos discípulos, de modo a ajuda-los a viver e amadurecer a experiência da vida que venceu a morte. É verdade, que, quem periodiza o tempo dos eventos pós-pascais é o evangelista Lucas. Marcos – que é o evangelho a ser meditado – nem se preocupa em quantificar cronologicamente o evento. Mas o terceiro evangelista foi muito sábio ao estabelecer este período, que não é essencialmente cronológico, mas teológico. O número 40 marca “um tempo necessário”. É o período de uma geração. Nesse sentido, após este período teológico, de acordo com o evangelista, Jesus é entronizado (colocado à direita de Deus) no céu. Isso significa que a experiência dos discípulos feita com o Senhor Ressuscitado havia sido suficiente para se compreender a novidade da ressurreição.
No v.15, o evangelista recorda a ordem de Jesus: devem sair – andar – ir, e não ficarem parados e fechados num único lugar, a fim de proclamar a Boa Nova. Através deste mandato, Marcos recorda os primeiros capítulos de seu evangelho, a missão dada aos quatro primeiros: pescar homens. Devem ir aos homens e mulheres de seu tempo e retirar lhes das situações de morte e dar lhes vida (Mc 1,16-20). Iluminados pela Ressurreição/Ascensão de Jesus, os discípulos são convidados a ressignificar e reanimar a própria vida e a Missão recebidas. Mas em que consiste esta Boa Notícia? Consiste no Amor de Deus que atinge toda criatura. Importantíssimo este versículo. Em nenhuma parte dele se fala em converter as pessoas. Mas somente: proclamar/anunciar o Evangelho. Somente o Espírito e o Evangelho geram a conversão no indivíduo. Nunca o pregador. Este é apenas instrumento. E o conteúdo da pregação e da proclamação, isto é, o Evangelho é sempre oferta gratuita; uma proposta. Jamais uma imposição. Quem faz acontecer a obra é Cristo e Seu Espírito.
Dos v.16-18, o Jesus de Marcos elenca os efeitos do anúncio da Boa Noticia naqueles que aderiram a ela. “Quem foi batizado será salvo. Quem não foi já está condenado”. Este dito do Senhor merece atenção e deve ser compreendido, de modo a evitar qualquer mentalidade exclusivista e excludente. Aquele que confronta sua consciência com Jesus, e, percebendo seu significado vital, adere a Ele está salvo. A salvação não pode ser entendida como uma localização como paraíso, céu. Mas a realização plena da humanização da pessoa, a qual acontece unicamente por meio da humanidade de Jesus. Aquele que recusa e faz resistência a Jesus e seu modo de vida, se exclui da Salvação.
No v.17, o evangelista faz a memória dos sinais que acompanharão a vida do fiel, decorrentes da opção fundamental por Jesus e seu projeto. Eles serão os mesmos realizados pelo Senhor durante sua vida e ministério: expulsar demônios; falar novas línguas; pegar em animais peçonhentos e beber venenos; impor as mãos sobre os enfermos para fazer lhes bem. Eles devem ser compreendidos bem, e dentro do horizonte do texto.
1) Expulsar demônios consiste na atitude de libertar as pessoas de todas as forças e ideologias funestas, ou sistemas, anti-projetos e situações que impedem a acolhida do Reino de Deus anunciado por Jesus. Para fazer a experiência com Deus, se faz necessária a plena liberdade. E não se trata, aqui, de exorcismos rituais. A pesquisa teológica e exegética classifica os demônios do tempo e da cultura de Jesus como psicopatologias ou enfermidades estudadas e explicadas pela medicina e pela psicologia atual. Tudo o que era desconhecido na Palestina dos anos trinta era tido como algo sobrenatural.
A própria palavra “demônio” em grego é neutra, ou seja, não possui gênero e pode significar algo ruim ou bom. Por isso, se faz necessário compreender e interpretar esta figura do demônio como sendo as mesmas coisas contra as quais o Senhor enfrentou durante sua missão: a alienação da consciência, ainda que a fonte originária deste fosse a própria instituição religiosa; a exclusão gerada pelos poderes imperiais; a prepotência e autossuficiência dos líderes religiosos; a recusa; a resistência e a maldade. Com efeito, “expulsar demônios”, de acordo com o horizonte do texto, significa eliminar o mal do mundo e comprometer-se com o Bem. Aquele que aderiu, real e profundamente, ao Evangelho elimina o mal de sua vida, e da vida de seu próximo.
Quais são os demônios que precisam ser expulsos de nosso meio? A maldade, a violência, o ódio, a vingança, a indiferença, o desamor, a maledicência, a intolerância, a soberba e puritanismo, arrogância, a autossuficiência, a mentira e a inveja e a O amor é o antidoto frente ao mal.
Em relação ao 2) “falar novas línguas”, este sinal aponta, na verdade, para realidade da salvação e missão universal, onde o Evangelho encontra-se com a cultura, com a realidade, com homem concreto de todos os tempos e lugares. Uma boa noticia que não exclui, antes, inclui. Para bem compreender estes sinais importa recordar que eles não são dons extraordinários com os quais Jesus dota os discípulos, mas são símbolos de um compromisso: gerar e transformar vidas. Falar a língua do amor, da solidariedade, da fraternidade, da gratuidade, da fraternidade, da harmonia e da comunhão. Estas são as novas línguas faladas pelo próprio Jesus.
Ninguém deverá ser inconsequente ao manusear 3) animais selvagens e peçonhentos, tampouco beber, como tira-gosto, algum tipo de veneno; 4). Serpente e veneno simbolizam, no horizonte cultural da época, tudo o que pode causar mal e ferir. O discípulo que aderiu ao projeto de Jesus deverá ser aquele que se compromete em transformar situações de morte e de perigo em situações e condições de vida.
5) Impor as mãos sobre enfermos para fazer lhes bem: é interessante que o evangelista não use, no original em grego, o verbo “curar (Therapéuo)”, mas a expressão “fazer bem (gr. καλῶς ἕξουσιν / kalós éxousin)”, porque o gesto de impor as mãos, não necessariamente garante a cura. Ora, Jesus não curou a todos! Mas trata-se de um gesto de solidariedade, porque o enfermo, na cultura e na sociedade de seu tempo, era visto como pecador público. A enfermidade era concebida como fruto de um pecado cometido pela pessoa ou por seus antepassados. Quando o Senhor realiza um gesto terapêutico, mais do que a cura física, ele restaura a dignidade da pessoa, reinserindo-a na vida social, novamente. Impor as mãos para fazer-lhes o bem, significa, portanto, a capacidade que o discípulo e a comunidade possuem de se solidarizar, reintegrar e gerar vida.
Depois de comunicar lhes a missão, Jesus foi elevado aos Céus. É necessário compreender a cosmologia da época, isto é, a concepção de universo, espaço e tempo do povo da bíblia. O céu é o lugar da habitação de Deus, e expressa a condição divina. “E sentou-se à direita de Deus”. Jesus dissera aos discípulos que eles veriam o Filho do Homem sentado à direita do Poder. Esta condição acena para uma posição de honra. Aplicando essa imagem ao Cristo, o evangelista pretende afirmar que Ele cumpriu plenamente a missão de revelar a face misericordiosa do Pai. Por ter sido fiel a ela, isso foi levado em conta pelo Pai, que o enalteceu, ao entronizá-lo a sua direita.
Ação de elevar o Filho é realizada pelo Pai, assim como a ressurreição. A sua elevação não é outra coisa que retornar ao âmbito divino. Desse modo, Marcos visa responder aos assassinos de Jesus: aquele homem que havia sido condenado como blasfemo, e morto por eles, agora está à Direita de Deus, porque Ele mesmo assim o quis. É uma maneira que o evangelista encontra para dizer que o Crucificado pertence, agora, ao âmbito da vida inextinguível.
A ascensão de Jesus não é uma separação ou um distanciamento do mundo e dos homens. O mistério deste acontecimento pretende mostrar que Ele leva consigo a nossa humanidade, porque a fez sua, elevando e glorificando a Carne e a Natureza humana. E, mais ainda, desde a plenitude de sua divindade colabora com a atividade dos seus, como se lê no versículo seguinte: “Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (v.20). Subiu aos céus, mas permanece com eles, tornando esta presença ainda mais intensa, e com maior proximidade.
A ascensão do Senhor marca a plenitude (ou a consumação) da ressurreição. O ressuscitado penetra o mundo do Pai, conferindo a sua comunidade a continuidade de Sua missão, proclamando a Boa Nova a toda a criação.
Pe. João Paulo
Sillio.
Santuário São
Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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