quarta-feira, 15 de junho de 2022

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE CORPUS CHRISTI – Lc 9,11-17:



A Liturgia de hoje retoma a leitura do Evangelho segundo Lucas e, apropria-se, para esta Solenidade do Corpo e do Sangue do Senhor, do seu capítulo nono, a partir do v.11b, onde se narra o episódio do que ficou conhecido como multiplicação dos pães.

Para compreender esta perícope de Lc 9,11b-17, é preciso situar o capítulo desde o começo. Os vv.1-6 abrem o capítulo, narrando o envio do grupo dos Doze para a missão, por parte de Jesus. Os versículos seguintes (v.7-9) reinsere a figura de Herodes, que reconhece ter matado o Batista, e dando a sua impressão sobre a pessoa de Jesus. Lucas volta, novamente, o foco da narrativa para os discípulos no v.10, ao narrar o retorno dos Doze da missão. Do v.11 em diante, tem-se, pois a narrativa bíblica desta solenidade. 

Outro elemento que deve chamar a nossa atenção é a localização geográfica na qual se narra toda a ação de Jesus até o presente momento. Ele está percorrendo a Galileia: terra de gente simples, empobrecida pelo poder vigente e pela cultura social e religiosa da época; lugar de pessoas pagãs, segundo o raciocínio do povo do sul; recôndito da marginalização e da exclusão. A narrativa que temos diante de nós apresenta, pois, o ponto alto da missão de Jesus na Galileia, a ser demonstrado pelo gesto que ele realizará a seguir. Com este episódio, Lucas recupera o dito de Jesus na Sinagoga de Nazaré, que contém o seu discurso inaugural e programático: “ungiu-me para anunciar a Boa Nova aos pobres, aos cegos a recuperação da vista, a libertação aos cativos e aos oprimidos, e anunciar o ano favorável de YHWH” (Lc 4,16). Agora pode-se adentrar no horizonte do texto.

O v.11 inicia, informando que Jesus levou os Doze para um lugar próximo de Betsaida, deserto e afastado. Talvez para que pudessem restabelecer as energias depois de uma jornada intensa de trabalho e missão. Mas a multidão não alivia, e vai ao encontro de Jesus, que estava cuidando dos seus. Todavia, ele as acolhe e começa a ensinar e curar os que necessitavam.

Até aquele momento, os discípulos tiveram contato com a vida de Jesus para poderem, futuramente, assumir a missão confiada. Mas eles demonstram não terem compreendido ainda a dinâmica da vida e da existência do Mestre. Prova disso é o fato de se aproximarem e pedir que despedisse a multidão, dado o lugar deserto e a hora avançada. Lucas põe o acento na informação de ser ali um lugar deserto. Ele é mencionado, aqui, para relembrar a experiência do Êxodo dos hebreus.

Da mesma forma que YHWH interveio para libertar seu povo da opressão do Egito, e atraiu-os ao deserto para alimentá-lo, o Pai atrai para Jesus o povo faminto e oprimido para alimentá-los com sua Palavra (ensinamento) e com sua ternura e cuidado (as curas). O evangelista quer ensinar para sua comunidade que, a partir de Jesus, começa um novo e definitivo Êxodo.

No v.13, Jesus ordena: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Como inaugurador de um novo êxodo, Ele quer ensinar e orientar seus discípulos a saírem de si e romperem com a lógica do pensar em si mesmo somente, para abri-los em relação aos outros; a quebrar com o esquema do cada um por si, muito propagado através da ideologia do império romano e pela religiosidade individualista e intimista do judaísmo da época. Através desta ordem, Jesus ensina aos seus a se preocuparem e solidarizarem-se com os outros. Ele vence a tentação dos discípulos e os desafia a buscar uma alternativa.

Ainda no v.13, os discípulos respondem que só possuem cinco pães e dois peixes. Mas, para Jesus, isto é o suficiente. O resultado de 5 + 2 é 7, número que na teologia bíblica significa plenitude. O Jesus de Lucas quer ensinar para os seus (e para nós, hoje) que Deus dispõe tudo (da sua plenitude) para todos. Em seguida, no v.14, Jesus orienta os discípulos que façam sentar a multidão em grupos de 50 pessoas, perfazendo um total de 100 grupos. Cinquenta e cem são números perfeitos (completos), que também acenam para a completude.

Jesus dá o exemplo. “Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão” (v.16). Elevar os olhos para céu (âmbito da morada de Deus), significa orientar toda a sua ação para Deus; abençoa aqueles dons, parte e reparte-os entre os discípulos, para que fizessem o mesmo com a multidão. É Jesus quem inicia o gesto de condividir os alimentos e colocar em comum o que se tem, e este ecoa entre a multidão, que vendo o exemplo, faz o mesmo.  Por isso, esta perícope merece ser chamada de Condivisão dos pães. Pois o gesto de Jesus não é um ato mágico, senão, um forte e real chamado ao projeto de comunhão, solidariedade e partilha, que fazem parte do projeto criador e salvador de Deus. Ele está reorientando os seus discípulos para o projeto original de Deus, na criação.

Onde está, então, o “milagre” da multiplicação? Ele está no fato de Jesus qualificar aquele gesto de condividir (por em comum / partilhar) como sendo vontade de Deus, através da bênção que profere sobre os alimentos. Dito de outro modo, a Bênção que Jesus profere indica que a partilha e a condivisão representam a vontade e o querer de Deus, desde a criação.

“Todos comeram e ficaram satisfeitos. E ainda foram recolhidos doze cestos dos pedaços que sobraram” (v.17). Quando a comunidade partilha e coloca em comum o que tem, realiza, então a vontade de Deus; atualiza e assume a mesma vida, existência e missão de Jesus em seu meio; alimenta (cuida e acolhe) os irmãos (a todos, e, em especial, os pobres, excluídos e marginalizados), ninguém passa necessidade e ainda sobra. Nesse sentido, a comunidade assume uma vida eucarística no modo de Jesus.

Seria uma incoerência de nossa parte, partirmos o pão-corpo sacramental do Senhor em nossas Eucaristias, quando não partilhamos o pão cotidiano com o irmão. O que celebramos – enquanto um “nós eclesial” – em nossa liturgia deve ecoar na vida concreta. Ao nos alimentarmos do corpo e do Sangue do Senhor, somos eucaristizados em seu Corpo real e, portanto, eclesial, para sermos no mundo e na história suas mãos realizadoras de partilha, seus pés que vão ao encontro do irmão e seu coração, colocando-nos à serviço dos irmãos. Nisto consiste comungar: estabelecer comunhão (relação existencial, vital e sacramental) com o Corpo e com o Sangue do Senhor.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 11 de junho de 2022

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA Ssma. TRINDADE - Jo 16,12-15:

 


Celebra-se em toda a Igreja a solenidade da Santíssima Trindade, ao interno do tempo comum, já retomado após Pentecostes. Todavia, para este ciclo litúrgico, a liturgia ainda propõe a leitura do Quarto Evangelho para ajudar na meditação desta solenidade. Tendo se cumprido com a solenidade do pentecostes as celebrações máximas do Mistério Pascal do Senhor (paixão, morte, ressurreição-ascensão e pentecostes), a Liturgia católica achou por bem inserir a Solenidade da Santíssima Trindade para explicitar aos fiéis qual o destino, enquanto meta e finalidade, de todo o discípulo e discípula do Reino que decidiu-se por viver a vida de Jesus de Nazaré: ser habitação de Deus Uno e Trino. Ser morada da Trindade. O texto evangélico utilizado para nossa meditação se encontra no capítulo dezesseis do Evangelho segundo João.

O capítulo dezesseis encontra-se, como já estamos familiarizados, na segunda parte do evangelho joanino, no livro da Glória, precisamente no chamado testamento de Jesus; a grande catequese-ensino do Senhor que acontece ao redor da mesa naquela ceia de despedida às vésperas da páscoa judaica. Ali, Jesus revela o conteúdo do seu testamento: o dom da sua vida (simbolizado no gesto do Lava-pés, em Jo 13) e o mandamento novo do amor, através do qual a comunidade dos discípulos pautará o seu viver e agir animada pelo Dom do Espírito.

O texto proposto inicia-se a partir do v.12. Jesus afirma aos discípulos sentados ao seu redor, na ceia: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora”. O Espírito será o intérprete da vida de Jesus para a comunidade. Mas isso só será possível mediante o evento de Sua morte-ressurreição, porque será somente a partir do dom do Espírito, que a comunidade poderá compreender e interpretar o sentido da vida do Mestre, bem como de sua morte e ressurreição. A ressurreição de Jesus e o Dom de Seu Espírito permitirão à comunidade atualizar a vida e a presença do Senhor no meio deles. De fato, seria impossível compreender as coisas antes que elas aconteçam.

Mas, a incapacidade dos discípulos em compreender o que Jesus diz naquele exato momento se deve ao fato de que só pode compreender o que Ele diz quem já alcançou a capacidade de fazer o que ele faz, isto é, doar a própria vida. O discípulo só poderá entender as palavras e o sentido da vida do Senhor quando assimilar e realizar a mesma existência de Jesus. Enquanto isso ainda não é assimilado pelo discípulo, ele não compreenderá as Palavras do mestre. Ainda os discípulos não estão prontos, porque não passaram pela experiencia de Jesus.

Por cinco vezes, durante o discurso, Jesus promete enviar o Espírito Santo quando retornar para o mundo do Pai (cf. 14,16-17.26; 15,26; 16,7-8.13). Através do Espírito, a presença de Jesus se eternizará no meio deles. O Jesus joanino adjetiva o Seu Espírito como “Espírito da verdade”. Verdade no evangelho joanino significa “amor/fidelidade”. Não se trata de uma verdade abstrata, filosófica ou racional. A fidelidade/amor é o modo através do qual Jesus decide-se por viver em relação ao Pai que é amor fiel, e em relação às pessoas.

As “coisas futuras” significam a capacidade de ler os eventos futuros à luz da mensagem de Jesus. Não não novas revelações ou visões, tampouco uma nova relação com Deus mediante o Espírito. Mas a atualização da única e mesma mensagem de Jesus a toda a comunidade. A comunidade muda, cresce; surgem novas necessidades e problemas, e a relação com o Espírito, fará compreender, graças à mensagem de Jesus como ir ao encontro destes problemas e destas necessidades.

A comunidade cristã sempre encontrará situações novas e surpreendentes ao longo da história. Deverá ela sempre interpretá-las à luz da vida de Jesus. E quem garantirá a continuidade desta vida do Senhor na vida e na história do discípulo e da comunidade será o Espírito da Verdade, ou seja, do amor/fidelidade do Pai que conduziu a vida de Jesus.

A referência trinitária para o texto de hoje encontra-se no v.15: “Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos anunciará, é meu”. Emerge, aqui, o tema do amor (comunhão) e da unidade existentes entre Jesus e o Pai. É sob o mistério da comunhão, amor e unidade que o Deus uno e trino pauta o seu viver desde o interno de sua vida intra-divina. Esta vida, num mesmo mistério de amor, extrapola para fora de si mesma, e quem a revela é Jesus no Espírito.

Da vida da Trindade somos todos chamados a participar através do Batismo recebido, o qual nos dá o Dom do Espírito, que habilita a chamar Deus de Pai e Jesus de Senhor. Assim, o Espírito nos garante acesso a vida de Jesus e do Pai, porque nos leva para dentro de sua relação de comunhão e amor, para vivermos segundo a vida do mesmo Filho, inscrita em nós pelo Espírito. Ou seja, para vivermos uma vida segundo o modelo da Trindade, em amor, comunhão e unidade.

Que a vida da Santíssima Trindade, que já nos (in)habita desde o Batismo, possa ser vivida através de nossa existência e mediante o testemunho de fé da comunidade cristã, a qual é espelho da comunidade perfeita formada pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.