sábado, 20 de maio de 2023

SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR – Mt 28,16-20

 


A liturgia da Igreja celebra neste domingo a solenidade da Ascensão do Senhor. Qual o significado desta solenidade para este grande e único domingo que é o tempo da páscoa? Confessar e professar que o Senhor ressuscitado, ao retornar para o âmbito (esfera e mundo) de Deus leva consigo a natureza humana. Jesus não volta sozinho para o Pai, mas leva a nossa humanidade com Ele e a reorienta para seu fim último e definitivo: a vida divina.

A perícope que solenidade da Ascensão nos apresenta é a conclusão do Evangelho segundo Mateus. Apenas uma advertência acerca deste texto. Para compreendê-lo, se faz necessário lançar um olhar para toda a catequese mateana. O Primeiro Evangelho tem por finalidade “fazer discípulos-missionários todos os povos”. Mas para que o discípulo possa vivenciar a missão recebida por Jesus, ao final do Evangelho, deverá percorrer o caminho trilhado por Ele. E não poderá furtar-se ao fato de que este é perpassado pela dinâmica da Cruz. O discípulo só poderá assumir a missão depois de percorrer a vida de Jesus e tê-la como seu modelo.

“Os onze discípulos foram para a Galiléia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado” (v.16). Uma constatação importante: a comunidade está incompleta. São onze. Alguém rompeu com ela. O evangelista não se envergonha de mostrar a comunidade fragmentada, imperfeita. O discípulo é considerado por Jesus tal como ele é. É com essa comunidade imperfeita e incompleta que o Ressuscitado conta! 

O indicativo da Galileia, mencionada por três vezes somente neste relato pascal, representa a ruptura com Jerusalém. Jesus não se manifesta ressuscitado na cidade santa, mas lá no lugar onde tudo começou. Uma oportunidade de releitura, ressignificação da vida e da história, e de retorno à experiência fontal com Deus, em Jesus. Na Galileia, o Senhor começou seu ministério. Boa parte de Sua vida se deu ao redor daquele lago. Ali, os discípulos fizeram sua primeira experiência com o mestre. O Mensageiro celestial, no começo do capítulo dissera às mulheres que o Ressuscitado esperava seus discípulos lá. É uma forma que o evangelista tem para dizer à sua comunidade que, se pessoa quiser mesmo fazer experiência com Jesus, o Vivente, deverá sempre revisitar, fazer memória, atualizar aquele primeiro encontro com o amor de Jesus.

Mateus informa que o lugar onde os discípulos se encontram com Jesus é “o monte”, na região da Galileia (v.16). Interessante, ele usa o artigo definido “o” para indicar que não é qualquer monte. Todavia, Jesus não havia indicado nenhum monte. Por que Mateus faz isto? Em primeiro lugar, a informação não tem significado geográfico, mas teológico. É importante recordar que, na teologia bíblica, a montanha/o monte  é um lugar para se fazer experiência com Deus. Local da manifestação (teofania) de YHWH. No AT Deus se manifestara muitas vezes sobre a montanha. A Lei foi dada a Moisés na montanha do Sinai.

“O monte”, neste evangelho, deve fazer recordar aos discípulos o das bem-aventuranças, onde Jesus inaugurou sua mensagem de salvação. Recorde-se que a versão mateana das bem-aventuranças compreende oito ditos de Jesus. O número oito é o número da ressurreição do Senhor. O evangelista pretende ensinar que só será possível experimentar a Jesus Ressuscitado e o dinamismo da vida ressuscitada, se o discípulo, novamente, situar-se sobre o monte das bem-aventuranças, e assumir em suas vidas o ensinamento nelas contido.

O autor informa que, ao verem o Senhor, os discípulos se prostraram. Aqui, o verbo ver não indica uma capacidade física e biológica que o termo grego Blepo (gr. Βλέπω) alude, mas “ver” como sendo uma experiência que se dá desde a profundidade do coração do homem. É a atitude do “ver” relacionado à Fé, por isso o emprego do verbo Orao (gr. ὁράω). Por isso, Mateus informa o gesto da prostração (gr. προσκυνέω/proskinêo). Prostrar-se é sinal de adoração e de convicção na ressurreição e na divindade de Jesus.

O v.17 informa que alguns duvidavam. Mas de que coisa duvidam? Não de que Jesus tenha ressuscitado, pois o veem. Nem que Ele esteja na condição divina, uma vez que se prostram. Esta dúvida que o evangelista menciona toca a consciência dos discípulos, porque agora eles sabem por quais dificuldades passou Jesus, a morte infame do mestre. E, por isso, duvidam de si mesmos. São convidados a assumirem a condição divina, mas não sabem se serão capazes de viver a vida de Jesus, afrontarem a perseguição e, também, a morte. 

A dúvida não faz mal à comunidade. Mesmo que Jesus os tenha reprovado na atitude de duvidar. Podemos dizer que o Jesus mateano apresenta uma característica necessária para a sua comunidade. Para a solidez da fé, a dúvida se faz necessária, pois o seu antídoto não é a certeza, mas a procura, a busca por uma vida carregada de sentido. Portanto, quanto mais se duvida, mais necessidade se tem de buscar o sentido para a vida. 

A dúvida não projeta para a morte, mas para uma plenitude de sentido para a vida. E qual é esta plenitude de vida para o discípulo? O amor de Jesus e do Pai. Ora, o amor, assim como a fé, é uma aposta, uma decisão. Quanto maiores forem as dúvidas, tanto maior a necessidade de apostar, de procurar e buscar. Até chegar à plenitude do amor. Podemos dizer que a dúvida e a fé são companheiras inseparáveis na vida da comunidade, porque engendram ao seu interno a capacidade de amar.

Jesus, então, diz-lhes: “Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra”. Aqui, o evangelista faz eco a Daniel, que retrata a personagem “Filho do Homem”, o qual recebeu de Deus todo o poder, no céu e na terra. Mas o poder/autoridade que Jesus recebe não é para servir-se a si mesmo, mas para colocar-se à serviço de todos. E ao interior da comunidade de Mateus, a autoridade é a de Jesus, e não mais a do legalismo da lei mosaica.

Jesus continua: “ide e fazei discípulos meus todos os povos”. O evangelista recupera o verbo "ir" no imperativo: “Ide”. É um verbo de movimento. Ou seja, coloca o discípulo e a comunidade em movimento. Será a partir deste dinamismo que se poderá fazer a experiência da Ressurreição de Jesus na vida, e transmiti-la às pessoas. Não se faz experiência de vida quem fica parado. Pelo contrário, só saboreará a morte.

“Fazer discípulos”, significa transmitir a todos (sem excessão) o novo modo de viver e de relacionar-se com Deus, através do modo de vida de Jesus. O discípulo não aprende somente teorias de seu mestre. Mas apreende o sentido e a forma da vida que ele vive. Por isso, fazer discípulos é muito mais do que ensinar doutrina, mas testemunhar, existencialmente, o sentido da vida do Senhor. Ensinar os outros a viverem a vida de Jesus!

Batizar “em nome do Pai, do Filho e do Espírito”. Jesus fala de Batizar, para além de um rito. O evangelista se serve do verbo Baptizo (gr. βαπτίζω) que significa essencialmente submergir, mergulhar. Ou seja, o discípulo-missionário de Jesus é enviado para inserir, mergulhar, submergir as pessoas na vida mesma de Deus, em seu mistério de amor trinitário. A palavra “Nome” indica a realidade e a identidade mais profunda do ser. Com o sentido de Sua vida, Jesus quer submergir, mergulhar, envolver o seu discípulo no mistério de amor e de vida de Deus, a fim de que eles realizem o mesmo na vida das pessoas.

“ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!” (v.20). O que Jesus havia ordenado aos discípulos? Ele os chamou para serem pescadores de homem. Pescar homens significa tirar da morte (símbolizada pela água), das situações nocivas, para colocá-los na vida! Com este mandamento, o Senhor lhes indica como se tornar pescador de homens, ou seja, realizar a missão: mergulhar, submergir, envolver as pessoas na plenitude do amor de Deus.

O evangelista pretende, com as últimas palavras de Jesus, “Estarei convosco todos os dias até que o tempo esteja pleno”, indicar uma qualidade da presença de Jesus, e não indicar um período cronológico ou determinado da presença. Na perspectiva de Mateus, o Senhor assegura à sua comunidade que, na medida que ela se ela viver as bem-aventuranças, fazendo experiência de Deus como fonte de vida e de Amor, a Sua presença, ao interno da comunidade, será garantida. O autor bíblico conclui sua catequese assumindo, novamente, o tema do Emanuel abraçado por Jesus, que, através do dom de Sua existência e missão, revela Deus presente a humanidade, caminhando com ela.

Em Jesus, o Vivente, e agora entronizado junto do Pai, Deus está conosco, e nós, em Deus.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.


sábado, 13 de maio de 2023

VI DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 14,15-21:


 

O sexto domingo do tempo pascal continua a meditação do capítulo catorze do evangelho segundo João, dos versículos 15 à 21. Ele se situa no segundo bloco do Quarto Evangelho, o Livro da Glória. É o discurso de despedida para os seus discípulos, o Seu testamento. O conteúdo deste testamento é o dom de Sua vida e o mandamento do amor. Trata-se do caminho através do qual o fiel discípulo deverá pautar a vida após a partida do mestre. Será esta vida do Mestre e Senhor que deverá se fazer presente na vida do Seu seguidor, de modo a continuar e atualizar a Sua vida ressuscitada na história.

“Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (v.15), declara Jesus. Pela primeira vez no evangelho joanino, Ele toca no tema do amor, mas direcionado a si mesmo. Não se trata de uma atitude egoísta ou narcísica, deixado transparecer algum tipo de carência. O amor do qual fala Jesus no Quarto Evangelho é muito mais superior, e, portanto, pleno. Ele é expressado pelo substantivo “agápe”, do verbo agapao (gr. ἀγαπάω). Ele aparece 259 vezes no novo testamento. E, só no evangelho joanino, nesta seção do testamento de Jesus, 26 vezes. Este amor, do qual fala o Senhor é a atitude da capacidade de oferecer-se ao outro; um amor oblativo que torna a pessoa capaz de doar a própria vida; de coloca-la em relação à vida do outro de forma livre e gratuita. O versículo poderia ser entendido desta maneira: “se estais em sintonia com o modo com o qual eu vivo minha vida, então sois capazes de agir e viver como eu”. Ora, o gesto realizado por Jesus no lava-pés (Jo 13), tornou os discípulos capazes de assimilarem esta forma de amar.

A quais mandamentos o Senhor se refere? O único: o mandamento do amor. Ele é novo na medida que supera os demais. Novidade significa, aqui, últimidade, perfeição, meta. Interessante, o mandamento de Jesus, ele o considera como seu. Não são os de Moisés. Estes encontram-se superados através da obra e da vida de Jesus. O mandamento do amor, na medida em que carregado de plenitude de sentido, ele abraça e sintetiza os dez mandamentos.

Jesus prossegue, “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará um outro Defensor” (v.16). O evangelista João usa um termo de difícil tradução. No original grego temos Parakletos (gr. Παρακλητον), o qual se tentou traduzir por consolador, não exprimindo ainda a profundidade da palavra. É preferível a transliteração do termo. Parakletos significa “aquele que foi chamado em socorro”, “em defesa”; talvez a tradução mais acertada seria “socorredor”. Este termo é exclusivo do Quarto Evangelho. Todavia, atentos: Parakletos não é o nome do Espírito de Jesus, mas a sua função, isto é, aquilo que ele realiza: a ação de socorrer, de estar ao lado para socorrer. Trata-se de um outro socorredor, porque segundo a intenção do evangelista, o primeiro a socorrer a humanidade é Jesus.

Jesus dá uma indicação importante e preciosa: “para que permaneça sempre convosco” (16b). O Seu Espírito doado não se trata de um dom passageiro ou temporário. Tampouco vem somente nos momentos de desespero ou de necessidade, quando invocado. Mas a Sua presença é permanente na comunidade e na vida do discípulo. O amor de Deus não vai ao encontro da pessoa e da comunidade quando necessitam somente, mas está já ali. Na verdade, os precede, permanece e acompanha!

Jesus o chama de “Espírito da Verdade (gr. το πνευμα της αληθειας / tô pneuma thes aletheias) (v.17)”. As vezes, se tem a intenção de relacionar o termo “verdade” à um conceito abstrato como a dos filósofos. Essa não é função do Espírito de Jesus, nem faz parte da intenção do autor do Quarto Evangelho. A bíblia não fala de conceitos ou de ideias abstratas. Mas de uma experiência concreta. Por isso, sempre se deve compreender o a palavra “verdade”, a partir de seu original hebraico, Hesed/emet, que significa “amor fiel” ou amor e fidelidade. É disso que Jesus está a falar aos seus.  Este Espírito da Verdade, enquanto amor  e fidelidade, revela quem é Deus: é amor que se doa e se mostra visível à humanidade. Um amor que está sempre em socorro e a favor do homem.

Todavia, diz Jesus, que “o mundo não é capaz de receber, porque não o vê nem o conhece” (v.17b). O termo “mundo”, utilizado muitas vezes no Quarto Evangelho, se refere ao ambiente hostil e antagonista (opositor) à Jesus e suas Palavras. Alude, ainda, aos sistemas injustos, e, em particular, ao poder religioso da época; o “mundo” das autoridades judaicas, que se opõem firme e decididamente a Ele.

Nem Jesus, nem o evangelista querem “demonizar” o mundo, como uma realidade maléfica e imperfeita. Ora, a missão discípulo, animado pelo Espírito, se dá na realidade histórica, na vida concreta que o rodeia. Por isso, o mundo deve ser iluminado e convertido pela ação do discípulo que é portador do Espírito da Verdade, o Socorredor, a vida mesma de Jesus e do Pai, a fim de reorienta-lo ao seu fim último e definitivo: o horizonte mesmo de Deus.

“Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós” (v.18). O órfão, no ambiente bíblico, é aquele que não goza de nenhuma proteção; que não tem ninguém que lhe possa vir aos cuidados. Jesus assegura que isso não acontecerá, reafirmando a sua presença em meio a comunidade. “Eu virei a vós” se torna, portanto, a segurança para os discípulos de todos os tempos de que a morte do Senhor não será uma ausência, mas presença; não será distanciamento, e, sim, proximidade.

“Pouco tempo ainda, e o mundo não mais me verá, mas vós me vereis, porque eu vivo e vós vivereis” (v.19). Jesus não está falando da capacidade biológica / física do sentido da visão. O “ver” bíblico indica a atitude da experiência com Deus. Ou seja, o Senhor assegura ao discípulo que, mesmo diante de Sua ausência física, será possível manter a relação existencial com o Ressuscitado através de Seu amor e de Seu Espírito que socorre e doa a vida divina. Por isso, na afirmação “eu vivo e vós vivereis”, o evangelista usa um termo que se refere à vida inextinguível, do âmbito de Deus.

“Naquele dia sabereis que eu estou no meu Pai e vós em mim e eu em vós” (v.20). A quê dia Jesus se refere? Ao de sua morte. O evangelista antecipa o que se desenvolverá nos capítulos seguintes acerca da comunhão plena entre Jesus e o Pai e Jesus e o discípulo e a comunidade. O que pretende dizer o autor do Quarto Evangelho para a sua comunidade? Na comunidade dos fiéis, Deus assume seu rosto humano, e, da sua parte, o homem e a comunidade assumem o rosto divino Dele, fazendo existir a comunhão entre Deus e o homem. A presença de Jesus no Pai e do Pai em Jesus se realiza também na vida dos discípulos, eliminando, assim, toda distância entre o humano e o divino. A comunidade cristã aberta ao Espírito da Verdade é, portanto, morada de Jesus e do Pai, tornando-se profeta capaz de expressar com sua vida aos fiéis, a verdadeira presença do Senhor.

No sentido existencial e salvífico da vida de Jesus, se revela um Deus que deseja ser acolhido na vida do indivíduo, de se fundir com ele, dilatando a sua capacidade de amar transformando a comunidade em espaço onde todos podem fazer a experiência do amor, da misericórdia e da compaixão.

“Quem acolheu os meus mandamentos e os observa, esse me ama. Ora, quem me ama, será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele” (v. 21). Literalmente, o evangelista escreve “Quem tem os meus mandamentos”. Ora, os mandamentos de Jesus não são as imposições da lei antiga, ou normas externas ao homem. Mas é o Seu dinamismo vital interior, que, quando se manifestam liberam toda a sua força vital. A observância do mandamento de Jesus, o amor, não diminui o homem, antes o potencializa para a vida. E o recoloca na mesma sintonia da vida do Senhor.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu / SP.

sábado, 6 de maio de 2023

V DOMINGO DA PÁSCOA - JO 14,1-12:


 

O quinto domingo da páscoa nos insere no horizonte do capítulo catorze do Evangelho segundo João. Os primeiros doze versículos são lidos neste tempo pascal a partir, agora, da experiência da ressurreição de Jesus, embora esteja o texto inserido na segunda parte do Quarto Evangelho, o livro da glória. Nesta seção literária, de Jo 13-17, se encontra o testamento do Senhor. O testamento, já refletíamos outras ocasiões, é a plenitude de todos os bens que uma pessoa deixa para aqueles a quem muito se ama. Qual o conteúdo deste, que Jesus entrega aos seus discípulos? O mandamento do amor, ilustrado através do gesto de lavar os pés dos discípulos, e a sua própria vida.

A liturgia bem poderia propor outro texto para a meditação nestes domingos do tempo pascal, por exemplo, os demais relatos dos encontros do Ressuscitado com sua comunidade de discípulos. Mas ela prefere tomar textos situados neste contexto de uma ceia de despedida (Jo 13 – 17). Qual o sentido? Como pedagoga, mostrar e ensinar ao discípulo de todos os tempos e lugares, o modo que eles poderão fazer a experiência com Jesus, o vivente, e, assim, continuar sua existência, vida e missão em meio a esta realidade. Como o discípulo deverá no viver, agora, sem a presença física de Jesus, ou seja, fazendo a Sua memória.

Ao fazer um caminho retrospecto neste tempo pascal, se pode perceber como a liturgia da Igreja ofereceu, através dos textos bíblicos, meios e pistas para que o fiel pudesse fazer esta experiência com o Senhor Ressuscitado, e, portanto, uma experiência de vida plena. Por exemplo, no segundo domingo, a experiência com o Ressuscitado se tornou uma nova criação, através do dom de Seu Espírito para realizar a sua missão (Jo 20,19-31); no domingo seguinte, o terceiro, ofereceu a experiência de reconhecer o Senhor através do caminho, escutando a Palavra e partindo o Pão (Lc 24,13-35); no quarto domingo, ao meditar a temática do pastoreio, se fez a memória do Cristo enquanto Bom Pastor, que conduz o ser humano, o discípulo e a discípula, para a vida plena, retirando-os dos recintos de morte para às verdes pastagens, isto é, para a vida. Através do texto de Jo 14,1-12, o discípulo é convidado a manter acesa e viva a experiência com Jesus Ressuscitado: acolhendo-o como morada do Pai, viver seu caminho de vida em amor, e realizar as suas mesmas obras.

O capítulo catorze inicia-se com Jesus encorajando os seus discípulos: “Não se perturbe o vosso coração. Tendes fé em Deus, tende fé em mim também” (v.1). Qual o sentido deste dito que o Senhor direciona aos seus discípulos? Se faz necessário recordar que a cena se desenvolve no contexto da última ceia. Jesus já lavou os pés deles. Um gesto desconcertante para o grupo. Talvez haja desconforto. E, ao final do capítulo, acrescentou a informação de que seria entregue nas mãos dos chefes religiosos do povo por alguém do grupo. Estes dois motivos fazem perturbar os corações dos Doze. A incompreensão e resistência diante da atitude de terem os pés lavados pelo mestre e Senhor, e o escândalo da iminente ruptura do grupo. Convida-os a uma resposta de vida: refazer a opção por Deus (“tendes fé em Deus”) e por Ele (“tende fé em mim também”), pois a fé é e sempre será uma relação em resposta a ser vivida com Deus e Jesus.

Jesus continua: “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós, e quando eu tiver ido preparar-vos um lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também vós” (v.2-3). João conseguiu captar bem os ditos do Senhor, e agora os transmite para a sua comunidade. Recuperando os ensinamentos e as palavras de Jesus, o evangelista trabalha com o tema da “morada/habitação” em seu evangelho. É um tema que já apareceu no prólogo, em 1,14 (“o verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós”). O termo casa (gr. οἰκίᾳ/oikia) é muito significativo, pois ele alude à plenitude de vida que se encontra ao interno de um lar; por isso “casa” não está aludindo a uma edificação de alvenaria, mas à realidade de vida plena e de amor representada pela imagem do lar que o Pai é. Jesus convida os discípulos a viverem na semelhança com Pai e com Ele, ou seja, a plenitude do amor e de vida na vida que é oferecida por Deus através de seu Filho. Quando o discípulo compreender isso, então será capaz de continuar a vida do Senhor Ressuscitado na história.

O termo “casa” varia para “morada”, no mesmo versículo, que, agora sim, assume sentido da habitação. Não é por acaso. Na perspectiva do evangelista, Deus constrói sua morada, sua habitação, em Jesus. Ele é e será o novo e definitivo Lugar de Deus. Através Dele, o Pai agirá e falará. Com isso, todos os sistemas e projetos antigos, a lei de Moisés, as práticas exteriores rituais encontram-se superadas e substituídas em Jesus. O lugar que o Senhor prepara é a vida divina, que se despontará no mistério da Sua entrega na cruz. Isso é que o discípulo precisará se esforçar para compreender. A vida de Jesus apresenta e oferece a vida mesma de Deus e, aquele que a acolhe torna-se morada de Jesus. “Está” em Jesus e no Pai. 

“E para onde eu vou, vós conheceis o caminho” (v.4). Evidentemente, esse dito só pode ser compreendido à luz do capítulo anterior. O caminho que Jesus deu a conhecer foi o do lavar os pés. O leitor/ouvinte do evangelho já sabe e compreende que a atitude profética do Senhor, no lava-pés, foi expressão de todo o sentido para o qual tendeu a Sua vida: o amor até o fim. O discípulo que reconhece este caminho que Jesus aponta, como seu próprio, transforma sua existência em habitação/morada do Pai e Dele, e, portanto, de seu amor.

O discípulo que sente dificuldades em acolher o sentido da vida e missão de Jesus apresenta ainda resistência. São simbolizados por Tomé e por Filipe. O primeiro manifesta sua dificuldade de compreensão: "Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?" (v.5) Com uma fina ironia, João mostra para seu fiel-leitor que os discípulos sabem, sim, qual é o caminho do Senhor. O problema é que eles não querem aceita-lo como modo de se viver a vida. Este é o equívoco e a resistência que o discípulo não pode ter.

Jesus faz, então, uma declaração em forma de revelação: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (v.6). Através do nome divino “Eu sou”, habitualmente utilizado por ele para revelar que Deus se faz presente em sua existência, ele se declara “o Caminho”. Na tradição religiosa de Israel, a Lei/Torá era considerada “o Caminho” através do qual o povo seria conduzido ao amor-fiel (verdade) de Deus, fonte e plenitude da vida divina. Mas, durante a sua história, o povo de Israel foi atrofiando esta mentalidade, a ponto de transformá-la em lei de Moisés, com suas 613 prescrições e proibições, tirando dela o Espírito e a Vida, restando apenas a letra. Esta, só poderá gerar morte e uma experiência equivocada com Deus.

Na intenção de João, Jesus, ao se proclamar “o Caminho”, está se revelando aos discípulos de todos os tempos e lugares como a superação do caminho antigo. O Senhor é o Caminho, porque toda a sua existência e obra revelam o novo caminho. Assim, o discípulo que assume a vida de Jesus para si, pauta a vida e as ações a partir do próprio mestre. O  Jesus joanino revela-se também como a verdade, e, conforme dito anteriormente, esta palavra deve ser entendida a partir de seu original hebraico, Hesed/emet: amor fiel ou amor e fidelidade.

Aquele que adere à existência e à obra de Jesus como “o Caminho” definitivo e pleno através do qual Deus se revela, e faz dele o seu sentido de caminhar, consegue reconhecer o Senhor como a expressão do amor-fiel (verdade) do Pai e se encaminha para o encontro com uma plenitude de sentido, a vida. E não é qualquer vida, mas a vida do âmbito de Deus, por isso o evangelista emprega o termo ζωή/Dzoé, uma vida abundante, carregada de força de sentido, e, por isso, indestrutível, ainda que passe pela morte.

Jesus, no v.12 faz uma nova afirmação: “Em verdade, em verdade vos digo, quem acredita em mim fará as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas. Pois eu vou para o Pai”. Com uma declaração solene (“amém, amém”) o Senhor transmite, então, o sentido de uma vida que se tornou morada do Pai e Dele, passando pelo Caminho do amor-fiel gerador de vida: realizar suas mesmas obras. Ser, portanto, sinal da presença do Senhor nesta realidade, vivendo Sua missão. 

Que o Senhor nos ajude a transformar a vida em Sua permanente morada, expressão de amor e de vida do Pai e Dele, e a realizar a Sua Obra: manifestar o Seu amor-fiel e Sua vida.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.