O quinto domingo da páscoa nos insere no horizonte do capítulo catorze do Evangelho segundo João. Os primeiros doze versículos são lidos neste tempo pascal a partir, agora, da experiência da ressurreição de Jesus, embora esteja o texto inserido na segunda parte do Quarto Evangelho, o livro da glória. Nesta seção literária, de Jo 13-17, se encontra o testamento do Senhor. O testamento, já refletíamos outras ocasiões, é a plenitude de todos os bens que uma pessoa deixa para aqueles a quem muito se ama. Qual o conteúdo deste, que Jesus entrega aos seus discípulos? O mandamento do amor, ilustrado através do gesto de lavar os pés dos discípulos, e a sua própria vida.
A liturgia bem poderia propor outro texto para a meditação nestes domingos do tempo pascal, por exemplo, os demais relatos dos encontros do Ressuscitado com sua comunidade de discípulos. Mas ela prefere tomar textos situados neste contexto de uma ceia de despedida (Jo 13 – 17). Qual o sentido? Como pedagoga, mostrar e ensinar ao discípulo de todos os tempos e lugares, o modo que eles poderão fazer a experiência com Jesus, o vivente, e, assim, continuar sua existência, vida e missão em meio a esta realidade. Como o discípulo deverá no viver, agora, sem a presença física de Jesus, ou seja, fazendo a Sua memória.
Ao fazer um caminho retrospecto neste tempo pascal, se pode perceber como a liturgia da Igreja ofereceu, através dos textos bíblicos, meios e pistas para que o fiel pudesse fazer esta experiência com o Senhor Ressuscitado, e, portanto, uma experiência de vida plena. Por exemplo, no segundo domingo, a experiência com o Ressuscitado se tornou uma nova criação, através do dom de Seu Espírito para realizar a sua missão (Jo 20,19-31); no domingo seguinte, o terceiro, ofereceu a experiência de reconhecer o Senhor através do caminho, escutando a Palavra e partindo o Pão (Lc 24,13-35); no quarto domingo, ao meditar a temática do pastoreio, se fez a memória do Cristo enquanto Bom Pastor, que conduz o ser humano, o discípulo e a discípula, para a vida plena, retirando-os dos recintos de morte para às verdes pastagens, isto é, para a vida. Através do texto de Jo 14,1-12, o discípulo é convidado a manter acesa e viva a experiência com Jesus Ressuscitado: acolhendo-o como morada do Pai, viver seu caminho de vida em amor, e realizar as suas mesmas obras.
O capítulo catorze inicia-se com Jesus encorajando os seus discípulos: “Não se perturbe o vosso coração. Tendes fé em Deus, tende fé em mim também” (v.1). Qual o sentido deste dito que o Senhor direciona aos seus discípulos? Se faz necessário recordar que a cena se desenvolve no contexto da última ceia. Jesus já lavou os pés deles. Um gesto desconcertante para o grupo. Talvez haja desconforto. E, ao final do capítulo, acrescentou a informação de que seria entregue nas mãos dos chefes religiosos do povo por alguém do grupo. Estes dois motivos fazem perturbar os corações dos Doze. A incompreensão e resistência diante da atitude de terem os pés lavados pelo mestre e Senhor, e o escândalo da iminente ruptura do grupo. Convida-os a uma resposta de vida: refazer a opção por Deus (“tendes fé em Deus”) e por Ele (“tende fé em mim também”), pois a fé é e sempre será uma relação em resposta a ser vivida com Deus e Jesus.
Jesus continua: “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós, e quando eu tiver ido preparar-vos um lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também vós” (v.2-3). João conseguiu captar bem os ditos do Senhor, e agora os transmite para a sua comunidade. Recuperando os ensinamentos e as palavras de Jesus, o evangelista trabalha com o tema da “morada/habitação” em seu evangelho. É um tema que já apareceu no prólogo, em 1,14 (“o verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós”). O termo casa (gr. οἰκίᾳ/oikia) é muito significativo, pois ele alude à plenitude de vida que se encontra ao interno de um lar; por isso “casa” não está aludindo a uma edificação de alvenaria, mas à realidade de vida plena e de amor representada pela imagem do lar que o Pai é. Jesus convida os discípulos a viverem na semelhança com Pai e com Ele, ou seja, a plenitude do amor e de vida na vida que é oferecida por Deus através de seu Filho. Quando o discípulo compreender isso, então será capaz de continuar a vida do Senhor Ressuscitado na história.
O termo “casa” varia para “morada”, no mesmo versículo, que, agora sim, assume sentido da habitação. Não é por acaso. Na perspectiva do evangelista, Deus constrói sua morada, sua habitação, em Jesus. Ele é e será o novo e definitivo Lugar de Deus. Através Dele, o Pai agirá e falará. Com isso, todos os sistemas e projetos antigos, a lei de Moisés, as práticas exteriores rituais encontram-se superadas e substituídas em Jesus. O lugar que o Senhor prepara é a vida divina, que se despontará no mistério da Sua entrega na cruz. Isso é que o discípulo precisará se esforçar para compreender. A vida de Jesus apresenta e oferece a vida mesma de Deus e, aquele que a acolhe torna-se morada de Jesus. “Está” em Jesus e no Pai.
“E
para onde eu vou, vós conheceis o caminho” (v.4). Evidentemente, esse dito só
pode ser compreendido à luz do capítulo anterior. O caminho que Jesus deu a conhecer
foi o do lavar os pés. O leitor/ouvinte do evangelho já sabe e compreende que a
atitude profética do Senhor, no lava-pés, foi expressão de todo o sentido para
o qual tendeu a Sua vida: o amor até o fim. O discípulo que reconhece este
caminho que Jesus aponta, como seu próprio, transforma sua existência em
habitação/morada do Pai e Dele, e, portanto, de seu amor.
O discípulo que sente dificuldades em acolher o sentido da vida e missão de Jesus apresenta ainda resistência. São simbolizados por Tomé e por Filipe. O primeiro manifesta sua dificuldade de compreensão: "Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?" (v.5) Com uma fina ironia, João mostra para seu fiel-leitor que os discípulos sabem, sim, qual é o caminho do Senhor. O problema é que eles não querem aceita-lo como modo de se viver a vida. Este é o equívoco e a resistência que o discípulo não pode ter.
Jesus faz, então, uma declaração em forma de revelação: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (v.6). Através do nome divino “Eu sou”, habitualmente utilizado por ele para revelar que Deus se faz presente em sua existência, ele se declara “o Caminho”. Na tradição religiosa de Israel, a Lei/Torá era considerada “o Caminho” através do qual o povo seria conduzido ao amor-fiel (verdade) de Deus, fonte e plenitude da vida divina. Mas, durante a sua história, o povo de Israel foi atrofiando esta mentalidade, a ponto de transformá-la em lei de Moisés, com suas 613 prescrições e proibições, tirando dela o Espírito e a Vida, restando apenas a letra. Esta, só poderá gerar morte e uma experiência equivocada com Deus.
Na intenção de João, Jesus, ao se proclamar “o Caminho”, está se revelando aos discípulos de todos os tempos e lugares como a superação do caminho antigo. O Senhor é o Caminho, porque toda a sua existência e obra revelam o novo caminho. Assim, o discípulo que assume a vida de Jesus para si, pauta a vida e as ações a partir do próprio mestre. O Jesus joanino revela-se também como a verdade, e, conforme dito anteriormente, esta palavra deve ser entendida a partir de seu original hebraico, Hesed/emet: amor fiel ou amor e fidelidade.
Aquele que adere à existência e à obra de Jesus como “o Caminho” definitivo e pleno através do qual Deus se revela, e faz dele o seu sentido de caminhar, consegue reconhecer o Senhor como a expressão do amor-fiel (verdade) do Pai e se encaminha para o encontro com uma plenitude de sentido, a vida. E não é qualquer vida, mas a vida do âmbito de Deus, por isso o evangelista emprega o termo ζωή/Dzoé, uma vida abundante, carregada de força de sentido, e, por isso, indestrutível, ainda que passe pela morte.
Jesus, no v.12 faz uma nova afirmação: “Em verdade, em verdade vos digo, quem acredita em mim fará as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas. Pois eu vou para o Pai”. Com uma declaração solene (“amém, amém”) o Senhor transmite, então, o sentido de uma vida que se tornou morada do Pai e Dele, passando pelo Caminho do amor-fiel gerador de vida: realizar suas mesmas obras. Ser, portanto, sinal da presença do Senhor nesta realidade, vivendo Sua missão.
Que
o Senhor nos ajude a transformar a vida em Sua permanente morada, expressão de amor
e de vida do Pai e Dele, e a realizar a Sua Obra: manifestar o Seu amor-fiel e
Sua vida.
Pe.
João Paulo Góes Sillio.
Santuário
São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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