sexta-feira, 25 de setembro de 2020

HOMILIA PARA O XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 21,28-32:



O evangelho dominical nos insere na leitura do capítulo vinte e um do Evangelho segundo Mateus. O evangelista, neste capítulo recupera um ensino em parábolas de Jesus, que só aparece em seu evangelho, e, assim, o transmite para a sua comunidade: a parábola dos dois filhos (Mt 21,28-32). Para compreende-la, se faz necessário abrir o horizonte de visão para o contexto no qual ela se situa.

O capítulo vinte e um apresenta a entrada de Jesus em Jerusalém. Ali, passa a sofrer forte resistência e oposição por parte dos lideres do povo, os chefes do judaísmo. Então, Jesus conta lhes uma parábola, que ilustra as atitudes de dois irmãos em relação ao convite/ordem de seu pai para que fossem trabalhar na vinha. O mestre não a conta esmo. Ele tem uma finalidade, bem como a própria parábola, a qual tem a função de provocar o leitor/ouvinte, chamando-lhe a atenção, para que mude de atitude.

Mateus direciona a parábola às lideranças. Ele a insere, na ordem do texto, imediatamente após um confronto de Jesus com elas acerca de João, o Batista, que, em última análise, representa uma recusa em relação à autoridade de Jesus. Parece que o evangelista procura fazer uma panorâmica histórica para seus leitores/ouvintes acerca do pecado dos líderes do povo que mataram os profetas de Deus (21,34-36), não acreditaram em João (21,25 e 32) e, por fim, levarão à morte o Filho de Deus (21,39). Temos, portanto, duas audiências para as quais são direcionadas esta parábola: em seu tempo, Jesus as direciona para as lideranças do povo; no tempo da comunidade, Mateus se apropria da parábola para corrigir os rumos da comunidade leitora do Evangelho. Sempre é necessário unir (ou fundir) estes dois horizontes. Mai uma vez a parábola contada por Jesus serve-se do tema da vinha. Já nos é sabido que ela sempre foi tida na tradição de Israel como metáfora do Povo de Deus. Isto posto, podemos mergulhar no texto bíblico.

O texto bíblico começa com Jesus se dirigindo aos que o ouviam, e, dentre eles, os chefes do povo, com a seguinte pergunta, “Que vos parece?” (v.28), para narrar lhes a parábola de um pai de família, dono de uma vinha que convida os filhos a trabalharem na plantação. O primeiro protesta, mas depois vai. O segundo, prontamente responde de modo afirmativo, mas não cumpre o que diz. O relato é privado de colorido e de particulares, centrando-se sobre a contraposição dos dois filhos: contraposição de respostas e de comportamento.

Com a pergunta, “Que vos parece?”, Jesus começa a narrativa da parábola como que provocando seus ouvintes, cumprindo uma das funções do gênero parabólico, e a conclui fazendo-lhes outra pergunta: “Qual dos dois fez a vontade do pai?” (v.31). As duas perguntas têm a intenção de envolver e comprometer os ouvintes tornando-os participantes do ensino, e identificando-se com as personagens. Deste modo, Jesus conseguiu colocá-los contra a parede tirando deles um juízo de autocondenação.

As lideranças do povo – os anciãos e sacerdotes – são caricaturados pelo segundo filho, que contradisse com a atitude o sim dos lábios. Não podem iludir-se e pensar que estão obedecendo à vontade de Deus apenas porque dizem ter aderido a ele, ostentando um culto fetichista da lei. É esta postura e atitude que Jesus quer denunciar através desta parábola.

O primeiro filho, que se nega a trabalhar na vinha, mas que posteriormente vai é a metáfora para os publicanos e às prostitutas, símbolos dos marginalizados, excluídos; dos sem voz e nem vez no tempo de Jesus, os quais tanto a religião, como o poder vigente marginalizavam. os pecadores, os desprezados e excomungados são os que representam o filho que obedeceu de fato ao pai, porque acreditam em Jesus, diferentemente dos mestres da lei e dos fariseus, observantes da lei, que o rejeitaram. 

A pergunta de Jesus aos líderes é importante, além de os comprometer com a resposta que darão. “Qual dos dois fez a vontade do pai?” O pai é a figura de Deus, aqui, na parábola. Fazer a vontade de Deus era o eixo sobre o qual girava toda a religião do AT e do judaísmo. E a lei era sua expressão escrita e clara. Mas agora a revelação plena e perfeita da vontade divina acontece em Jesus, que anuncia a vinda do Reino e chama à conversão (4,17). Ela, a vontade de Deus, passa, agora, através da sua pessoa. O Pai quer que os homens acolham aquele que ele enviou. A obediência não é feita de palavras estéreis e descompromissadas, mas com fatos concretos e precisos. Os verdadeiros obedientes são exatamente os pecadores, porque creram. A obediência chama-se agora fé/adesão no Filho. Pois obediência da lei acrescida à rejeição a Jesus, conforme denunciado pela parábola equivale a um sim meramente verbal, desmentido pelos fatos; descomprometido da vida.

De agora em diante, os homens colocam em jogo seu destino último decidindo-se a favor ou contra aquele que Deus enviou ao mundo. Jesus separa com um corte bem claro a humanidade em admitidos ao Reino e em excluídos do Reino. Não há alternativa. Encontrar Deus prescindindo de Jesus é ilusório.

Jesus fez a amarga experiência da rejeição obstinada dos observantes da lei mosaica, isto é, dos mestres da lei e dos fariseus. Ao invés disso, encontrou boa acolhida nos excluídos da sociedade puritana do seu tempo, isto é, nas mulheres de rua, fraudulentos cobradores de impostos, excomungados pela sinagoga. Estes acolheram o seu anúncio do Reino e mudaram de vida, abrindo-se na esperança ao futuro de Deus (BARBAGLIO, 1998, p.322).

A parábola dos dois filhos se situa neste quadro como denúncia do comportamento dos adversários comparados ao filho que diz sim só com a boca, mas se desmente com os fatos. Os cobradores de impostos e as prostitutas são como o primeiro filho, dizendo inicialmente não para a vontade de Deus, mas logo se arrependendo com a vinda de Jesus preparada por João – em caminho de Justiça, ou seja, cumprindo o querer de Deus. A elite religiosa se assemelha ao segundo filho, dizendo inicialmente sim, mas não fazendo a vontade de Deus e não tirando proveito da oportunidade para mudar sua opinião (21,29). Jesus, com essa parábola só faz evidenciar que existe divisão dentro de Israel: a elite poderosa excludente e aqueles das margens que acreditam.

A parábola contada pelo mestre clarifica as faltas dos líderes e adverte aos discípulos para não repetir seus erros. Ora, se a parábola, no tempo de Jesus serve para denunciar a oposição e rejeição das lideranças do povo frente ao Projeto de Deus anunciado por Ele, para Mateus ela tem fins bem catequéticos. Apresentar dois tipos de cristãos: os que vivem segundo o projeto do Reino e os que só falam, sem praticar. A comunidade do Reino não deverá reproduzir as mesmas atitudes dos líderes antigos do povo de Jesus. O evangelista quer, ainda, coibir ao interno da comunidade que o discípulo/fiel caia na tentação de levar uma vida de aparências, descompromissada e incoerente, que, de tão descompassada com o querer de Deus em Jesus, assume facetas puritanas e excludente para se auto preservar. A coerência do discípulo de Jesus, bem como da inteira comunidade cristã está na sintonia entre o falar e o fazer. Não se torna discípulo de Jesus (e membro de sua comunidade) somente pelo belo – e ortodoxo – discurso que se verbaliza ou assimila, mas quando se faz a vontade de Deus, que passa pela opção por Jesus e pela decisão de assumir seu modo de viver, no acolhimento aos excluídos e marginalizados desta história – a ortopraxis.

Diante da parábola deste domingo cabe-nos sempre a pergunta qual tem sido nossa atitude/resposta ao querer de Deus manifestado por Jesus.

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.

HOMILIA PARA O XXV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 20,1-16

 


O evangelho significa Boa Notícia. A boa notícia de que o Pai de Jesus não é o Deus da religiosidade antiga. Este, retribui a cada um segundo seus méritos; premia os bons e castiga os malvados. Jesus apresenta um Deus totalmente distinto: fala de um pai bondoso que faz brilhar sobre maus e bons o mesmo sol; faz chover sobre justos e injustos. E isso, não porque possam merecer, mas porque possuem alguma necessidade. Tal atitude do Deus apresentado por Jesus parece não ter sido aceita pelos discípulos que o seguiam e, ainda, mais aos fariseus e escribas. Então, é para estes que ele dirige a parábola contida no evangelho deste domingo, Mt 20, 1-16.

 

O contexto próximo do texto situa-se na seção da subida de Jesus para Jerusalém, no Evangelho segundo Mateus. Encerra-se a missão na Galileia. Na cidade santa, a sua pregação passará pelo filtro do juízo dos homens e a fé dos discípulos será posta em xeque. Uma opção deverá ser feita: aceitação ou recusa do Messias Jesus e do Deus que ele chama de Pai. Os capítulos 19-23 narram essa longa viagem, durante a qual os discípulos são instruídos na sabedoria e pedagogia do Reino, contemplando as ações e as palavras do Mestre e pondo-se a refletir sobre elas.

 

O contexto imediato, corresponde ao capítulo vinte da catequese de Mateus. O qual inicia-se com uma parábola de Jesus direcionada ao grupo dos discípulos. As parábolas são recursos pedagógicos de ensino dos rabinos da época de Jesus. Elas pertencem ao gênero literário sapiencial dos meshalim.  A parábola (hbr. Mashal), serve-se de elementos conhecidos da realidade com a finalidade de transmitir um ensinamento. Por isso, ela se ocupa de três funções: 1) chamar a atenção do leitor-ouvinte (o discípulo); 2) provocar os ouvintes, a partir de elementos ou situações exuberantes (ou exageradas, no bom termo da palavra), e, 3) levar a audiência à mudar a atitude. Jesus nota que que existe algo muito importante a ser trabalhado nos discípulos: a imagem que possuem de Deus e modo de se relacionar com ele.

 

A parábola narrada no evangelho dominical serve-se de imagens conhecidas das pessoas do tempo de Jesus, bem como absorve elementos da tradição religiosa de Israel. A vinha, por exemplo, serve de imagem comparativa para o povo de Israel (Is 5,1-7; Jr 2,21; Ez 15,1-8; Os 10,1; SI 80[79]). Mais a diante, esta imagem retornará noutra parábola (mais forte ainda, a dos vinhateiros maus, em Mt 21,33-46). A vinha, por assim dizer, é o campo histórico da atuação de Deus.

 

Mas a parábola dos trabalhadores, contida no início do capítulo vinte, se liga à cena anterior, o diálogo-ensinamento de Jesus aos discípulos. Ao final da narrativa do jovem rico (Mt 19,16-30), Pedro, em nome dos doze, questiona Jesus acerca da recompensa que o discípulo, que deixou tudo pelo Reino, ganharia: “Eis que deixamos tudo e te seguimos. O que receberemos?” (Mt 19,27). Com a parábola a seguir, Jesus retoma o tema da recompensa dos discípulos. E ensina que a recompensa merecida, nada se identifica com as ações realizadas por alguém, e sim com a misericórdia desconcertante do Pai dos céus. Agora podemos vislumbrar o horizonte do texto.

 

Dos vv.1-7, Jesus ilustra aos discípulos as ações de um certo dono de vinha. Ele sai contratar trabalhadores para sua vinha, de manhã, bem cedo. Indo novamente às nove da manhã, ao meio-dia, às três, e, por fim, às cinco da tarde. Com os primeiros, combinou uma moeda de prata (gr. denárion), o equivalente a uma jornada inteira de trabalho, a qual começava às seis da manhã, terminando seis da tarde. Com os demais, ele combina “aquilo que for justo” pagar.

 

Algumas coisas devem chamar a atenção do leitor-ouvinte. A atitude do dono da vinha: é ele quem sai em busca dos trabalhadores, quando, na verdade, os feitores seriam encarregados disso. Essa atitude mostra a urgência que o dono tem. Em que consiste tal urgência? Satisfazer vontades próprias? Enriquecer? Não. Ele pensa nas necessidades dos outros. Se ele estivesse pensando nas necessidades próprias, bastariam os que foram chamados na primeira hora. Parece espantoso um proprietário que pense primeiro nos outros, que em suas necessidades. É o que Jesus quer demonstrar através da atitude do patrão que sai, novamente, às nove, ao meio-dia, às três e, por fim, às cinco: ele não pensa em seus ganhos, mas naqueles que não tem trabalho. Na realidade do tempo de Jesus, quem não tivesse trabalho, não teria chance de comer, de se sustentar e à sua família. Os que estavam nas praças desocupados não estavam ali porque queriam, mas porque não encontravam trabalho. A falta de emprego não significa preguiça! É sinal de uma realidade e contexto históricos injustos.

 

O patrão sai, última vez, às cinco. O leitor, aqui, já deve estar surpreso. Ele conhece o ambiente e o costume; sabe que é o último horário antes do sol se pôr, para iniciar a vigília do dia seguinte. Mas também a estes trabalhadores da última hora o patrão os chama. É mais uma forma de Jesus e de Mateus enfatizarem que a atitude do patrão não é pautada por suas próprias necessidades ou ganancias, mas está toda ela orientada para o bem-estar do outro.

 

Dos vv. 8-10, Jesus narra o acerto de contas, ao final da diária. O patrão (lit. O Senhor / gr. Kyrios, o que dá a entender que Jesus e Mateus identificam o dono à Deus), manda o chefe de pessoal chamar primeiro os últimos, conforme está escrito em Dt 24,15, onde se ordena pagar ao operário, no final do dia o equivalente a uma jornada de trabalho, antes do pôr-do-sol para que não passem necessidade. Chama-nos a atenção a postura dos trabalhadores da primeira hora, os quais murmuram contra o fato do patrão ter pagado a mesma quantia aos que chegaram por último. É logico – dentro dos esquemas humanos – pensar que os que trabalharam desde o primeiro momento, devessem ser mais bem recompensados. A generosidade e a solidariedade do patrão os deixavam desconcertados e estupefatos. Não esperavam tal coisa. Começam a protestar contra a injustiça do patrão.

 

Os vv.11-12 mostram a murmuração dos primeiros trabalhadores. Eles não aceitam a atitude do patrão. Murmurar é agir contra o projeto de Deus. Mas aqui no horizonte do texto ela representa o protesto dos privilegiados, contra a gratuidade / Graça outorgada aos que não tem nada.

 

A resposta do patrão soa corretiva e visa abrir lhes os olhos: “Amigo, eu não fui injusto contigo. Não combinamos uma moeda de prata? Toma o que é teu e volta para casa! Eu quero dar a este que foi contratado por último o mesmo que dei a ti. Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja, porque estou sendo bom?” (vv.13-15). Por três vezes, na catequese mateana, Jesus usa o vocativo “amigo”. Em todas elas, o termo é usado para mostrar que a pessoa está errada e precisa ser corrigida.

 

Na resposta do chefe da família, “Eu quero dar a este que foi contratado por último o mesmo que dei a ti” (v.14), Jesus enfoca o sentido da parábola. Ilustrar o agir de Deus em relação ao ser humano que ainda não foi alcançado pelo projeto de Deus, pela dinâmica do Reino. Este projeto não é para poucos, alguns ou privilegiados, mas para todos, indistintamente. A parábola se serve da realidade do trabalho agrário da época para desenhar o proceder de Deus em relação aos que estão dando o passo na fé e na salvação até mesmo na última hora da história humana. Diante desta realidade, o discípulo veterano deve tirar o olho mal de si, “estás com inveja, porque estou sendo bom?”. Inveja é a tradução para expressão contida no original grego “olho mal”.

 

Eis a novidade que Jesus transmite através desta parábola: Deus não trata o ser humano segundo seus méritos, religiosidade, assiduidade ou conduta do cristão de bem; mas o trata segundo Sua gratuidade e generosidade, levando em conta a necessidade daqueles. Não pelo mérito, mas pela necessidade. Necessidade de ter junto de si todos aqueles que ainda não foram alcançados pelo projeto do Reino, aberto a todos até na última hora da história humana e particular.

 

Ao terminar a parábola, Jesus faz uma consideração importante acerca do modo de agir de Deus: “Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (v.16). O modo de pensar e de agir de Deus é muito diferente do pensar e agir dos homens. Ele inverte os esquemas humanos. Estamos diante do tema da inversão escatológica realizada por Deus através de Jesus. Que é a reviravolta radical que Deus opera na história reinserindo últimos – pecadores, excluídos, marginalizados – no seu horizonte salvífico.

 

O discípulo do Reino é desafiado a se inspirar em Deus (Mt 5,48). Esta parábola pode ter sido dirigida tanto aos fariseus incapazes de imaginar que seriam recompensados por Deus como os recém-convertidos, quanto para os líderes da comunidade cristã que se sentiam superiores e mais dignos de recompensa do que os convertidos recentemente à fé. Tanto para o fariseu, quanto para o discípulo (cronologicamente veterano no projeto do Reino) não há nenhum privilégio em relação a quem aderiu recentemente à Fé em Jesus ao Reino. Isso vale para o discípulo e para a comunidade que se identifica como cristã.

 

Quem somos no horizonte deste evangelho? Em qual horário da nossa vida fomos chamados por Deus? Em que horário do discipulado estamos? Quais atitudes existem em nós, que não corresponde ao proceder de Deus diante dos últimos? Peçamos a Graça de um olhar sadio em relação ao irmão, tornando-nos capazes do acolhimento, da promoção da vida e da dignidade do irmão; e que nossas comunidades sejam espaço de vida e de acolhimento especialmente para os trabalhadores da última hora. Porque jamais podemos nos esquecer que talvez estejamos entre eles também.

 

Pe. João Paulo Sillio

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 12 de setembro de 2020

HOMILIA PARA O XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 18,21-35:

 


A leitura do capítulo dezoito do Evangelho segundo Mateus continua a partir dos vv.21-35. O discurso comunitário contido neste capítulo serve para iluminar e oferecer balizas para os discípulos de todos os tempos e lugares acerca do modo de se viver e crescer enquanto comunidade do Reino, dos seguidores e das seguidoras de Jesus de Nazaré. A comunidade deve ser espaço de acolhimento, de perdão e de promoção da vida das pessoas. Com a introdução que fora feita na meditação anterior, pode-se adentrar no horizonte do texto bíblico proposto e meditá-lo a partir do questionamento que Pedro faz a Jesus.

No v.21-22 temos o diálogo entre Pedro e Jesus acerca do Perdão: “Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?”. A pergunta pode soar intimista ao ser direcionada para eventualidade de o irmão pecar contra ele (contra a comunidade). A pergunta de Pedro deve ser compreendida da seguinte forma: quantas vezes se pode permitir ao irmão que pecou contra o projeto do reino, vivido pela comunidade, voltar para o seio da comunidade? Pedro pergunte se até 7 vezes, como que tentando induzir a resposta do Mestre. Este número de ocorrências, na verdade, é uma lembrança para a máxima vingança ocorrida no Antigo Testamento: a vingança de Lamec. O número sete é plenitude de ação.

Jesus responde: “Não te digo até sete vezes, mas setenta e sete vezes” (v.22). Sempre que a pessoa quiser voltar, deverá ser acolhida, mesmo que se anteveja sua queda. A resposta de Jesus não visa estabelecer uma quantidade, mas a qualidade da atitude do perdão e da acolhida fraterna, em relação ao irmão que errou. Perdoar sempre! Todavia, deve se fazer uso do recurso da fusão dos horizontes – o horizonte narrado e o tempo da comunidade mateana. A comunidade se depara com o problema dos “Lapsis”, aqueles que caíram na fé diante da perseguição do Império Romano e do Judaísmo formativo da época. Eles renegavam a fé por medo de morrer. Mais tarde voltavam arrependidos para comunidade e pedia-lhe acolhimento. Existiam correntes severas de cristãos que pensavam que, uma vez acontecida a queda da pessoa, esta seria definitiva, e não se admitiria o seu retorno à comunidade. O indivíduo renegou sua fé por medo, e não por convicção. Então, nesse caso, ao invés da máxima vingança, o máximo perdão deve tomar lugar na vida comunitária.

Jesus, do v.23-34 entabula uma parábola. Tomemos a primeira parte dela (23-27). Muitas vezes, as parábolas possuem alguns elementos que são demasiado exacerbados. É o que faz com que o leitor-ouvinte seja provocado e chamado sua atenção. Começa com a história de um rei a quem se lhe devia muito dinheiro. Ele manda chamar, primeiramente, a um servo que lhe devia dez mil talentos (de ouro ou prata). Um talento pesava em torno de 34,232kg. Multiplique-se por dez mil. Logo, uma soma impagável. Não tendo o servo condições de pagar, o rei sentenciou que o servo fosse vendido como escravo, juntamente com sua mulher e filhos. O empregado, se ajoelhando diante do soberano, pediu um prazo para o pagamento da dívida. O rei, por sua vez, compadecido (cheio de misericórdia), atende-o, perdoando a vida. Parece um absurdo: o sujeito deve uma enorme fortuna, está preste a ser penalizado, e o rei o perdoa.

A parábola continua no v.28. Jesus ressalta bem uma discrepância: o servo devedor devia uma quantia impagável. Ao passo que seu companheiro lhe devia cem denários (menos de 30g de ouro; ou equivalente a três meses de trabalho). O servo não compreende a dívida irrisória e pagável de seu companheiro. Ao ser agarrado pelo servo, o companheiro devedor suplicava-lhe um prazo para o pagamento. O servo cruel não deu ouvidos e o lançou na prisão. Interessante, o primeiro foi objeto de misericórdia. Mas ele mesmo não usou de misericórdia para com o companheiro devedor.

Os que ficaram sabendo da atitude do servo foram ao rei e o delataram. O rei chamou-o, e, interrogando, disse: “Servo malvado, eu te perdoei toda a tua dívida, porque me suplicaste. Não devias tu também ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?”. O rei irritado mandou entregá-lo aos carrascos e lançá-lo na prisão, ordenando que não saísse de lá até que pagasse toda a dívida. A partir da fala do rei, o que se esperava do servo? Ora, assim como ele foi perdoado, que desse também ele, o passo do perdão para com o companheiro que o suplicava. Dar o passo da misericórdia. Mateus, recuperando o ensino de Jesus propõe, para sua comunidade, que ela seja, constantemente, espaço de exercício da misericórdia.

Chegamos, pois, à conclusão do discurso eclesial, com o v.35: “É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão”. Em mt 6,9-13, Jesus ensinara seus discípulos a rezar. Na oração do discípulo do Reino contém o pedido do perdão de si: “perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”. É um perdão gratuito de Deus, mas que deve ser medido na vida do fiel a partir de seus atos.  Essa atitude do fiel é modelo para atitude (escatológica) de Deus. O discípulo oferece à Deus seu modo histórico, concreto e real de perdoar como parâmetro para que Deus possa agir em relação a ele, no perdão escatológico. Isto é profundamente comprometedor! Pois, na oração do Senhor, pede-se ao Pai, que, escatologicamente – na plenitude da vida do âmbito de Deus – tenha a mesma atitude que o fiel teve no decorrer de sua história e de seu discipulado-missionário.

A conclusão da parábola toca diretamente o modo de proceder da comunidade. Quem não perdoa o irmão de coração, será tratado pelo Pai do Céus como um devedor desumano. Em outras palavras, por maior que seja o perdão concedido ao irmão reincidente da comunidade, será menor que o perdão recebido diariamente do Pai do Céus. O perdão concedido aos irmãos “setenta e sete vezes” decorre do perdão provindo do Pai. Portanto, quando a comunidade se dispõe a perdoar irrestritamente, imita o modo de proceder de Deus, donde provem um perdão ilimitado.

A pessoa que foi destinatária do amor misericordioso de Deus deve ser instrumento desta mesma misericórdia na vida do outro. E, no âmbito da comunidade, existir espaço de acolhimento e reintegração; uma verdadeira casa de misericórdia. Questionemo-nos se nos identificamos com algumas destas personagens da parábola; se com Pedro, que tenta impor ao Mestre sua maneira de ser (pensar) e agir. Interroguemos se, enquanto discípulos, e como comunidade, temos agido segundo o proceder e o querer de Deus.

Pe. João Paulo Sillio.

Arquidiocese de Botucatu – SP.


sábado, 5 de setembro de 2020

HOMILIA PARA O XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 18,15-20:


A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum, introduz-nos na leitura do quarto discurso (ensinamento/catequese) do Evangelho segundo Mateus, o “Discurso Eclesial” contido em Mt 18,1-35. Esta catequese é dirigida aos discípulos, primeiramente; mas, no horizonte da catequese mateana, o autor sagrado, recuperando o ensinamento de Jesus, introjeta-o na vida e no contexto de sua comunidade, dados os desafios que começam a surgir ao seu interno. O discurso visa levar a comunidade dos discípulos a pautar sua ação pela justiça — modo de ser e de agir— própria do Reino. Através deste ensinamento, Jesus visa colocar para seus discípulos as balizas para serem reconhecidos como a comunidade do Reino. Mateus, de sua parte, apresenta o conteúdo dos ensinamentos contidos no Discurso para lançar luzes para a vida de sua comunidade.

Mt 18 toca alguns problemas vividos no interior da comunidade do Reino, causadores de mal-estar, contratestemunho, divisões, quando se exige a autenticidade de quem aderiu a Jesus e ao Reino anunciado por Ele. Jesus começou o ensinamento exortando os discípulos a assumirem a atitude exemplar dos pequeninos, com o gesto metafórico de colocar ao seu meio uma criança, visando coibir a mentalidade e a tentação da superioridade ao interno da comunidade (18,1-5). Em seguida, adverte para o perigo dos escândalos ao interno da comunidade, geradores de obstáculos aos pequeninos (os que davam os primeiros passos na Fé em Jesus e na vida comunitária, 18,6-9). Isso posto, pode-se situar o texto de hoje em seu contexto imediato. Mt 18,15-20 situa-se após a primeira parábola de Jesus ao interno do discurso, a da ovelha extraviada, Mt 18,10-14 (ela foi tornada assim pela intransigência das lideranças e dos escândalos ao interno da comunidade).

O trecho bíblico de hoje, apresenta o texto da chamada “correção fraterna”, que na verdade poderia ser “correção comunitária”, Mt 18,15-20. Como bom mestre, Jesus propõe uma situação. Mateus, se apropria dela porque algo semelhante deve estar acontecendo no seio de sua comunidade. A situação é a seguinte: “Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, à sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão” (v.15). O texto contido nos originais, em grego, omite o pronome oblíquo de segunda pessoa, “ti”, ficando assim: “se te irmão pecar”. Se o irmão começar a tomar atitudes incompatíveis com o projeto do Reino, levando uma vida que não condiz com o projeto de Jesus. Nesse sentido, o pecado reside no ato de se colocar contrário ao projeto prescrito em Mt 5 – 7, no discurso inaugural, o Sermão da Montanha. A pessoa deve ser chamada, e deve ser mostrado a ela que o ethos – modo de ser e de viver – que vive é incompatível com o projeto do Reino. Essa primeira advertência consiste a chamar o irmão consigo. Podendo, porém, haver dois resultados: positivo e negativo. Estes dois resultados acompanharão os próximos passos: o positivo, resulta na acolhida da correção e conversão (retomada do caminho do discipulado), enquanto o negativo resultará na redução do individuo à categoria de multidão.

Multidão, discípulos, apóstolos são três categorias com as quais Mateus trabalha. Elas apresentam o itinerário da pessoa que inicia seu processo discipular. A multidão é aquele grupo que ouve as palavras de Jesus só por ouvir, procura-o somente pelo que pode oferecer, e não se compromete com Ele. Os discípulos são aqueles que ouviram a Palavra de Jesus, deram o passo em direção à ele e se colocaram no seguimento, estabeleceram uma experiência relacional com o mestre, deixando-se formar pelo projeto do Reino. E o grupo dos apóstolos (missionários), que continuando o discipulado, assumem a missão, o projeto de vida de Jesus, vivendo-o na realidade histórica. Mas para estes dois grupos, nada está garantido. Sempre há possibilidade de ceder a alguma tentação e voltar para o grupo da multidão. Nesse caso, a missão da comunidade será sempre a de reintegrar a pessoa no caminho do discipulado-missionário. Nessa perspectiva é que se desenrola o texto de que meditamos. A comunidade, e não o arbítrio, o humor ou gostinho das lideranças, é a instância de decisão; ela deve ter os mecanismo para a integração da pessoa no horizonte do projeto de Deus, ainda que deva ela mesma encaminhar o individuo para a condição inicial, à multidão, para refazer, o processo do discipulado.

Lancemos um olhar mais aprofundado ao versículo 15. O termo irmão, utilizado nesta pericope, reflete uma relação comunitária. Outro elemento que nos chama a atenção é o fato de que não é o irmão culposo que deve vir pedir perdão. Mas o irmão ofendido que deve ir ao encontro do faltoso. O verbo utilizado na tradução litúrgica, “corrigir”, pode dar sempre a impressão de superioridade a quem corrige, e de inferioridade para aquele que é chamado a atenção. O verbo correto é convencer, isto é, fazer ver ao irmão o erro cometido. Não há espaço para superioridade e inferioridade ao interno da comunidade.

O texto de Mateus mostra que o aconselhamento deve ser feito mais duas vezes, em caso de reação negativa da outra parte, totalizando três vezes. O número três na teologia bíblica simboliza a condição humana. Representam as três dimensões constitutivas da pessoa: alma, espírito e corpo. Sua totalidade. Significa, aqui, a opção incondicional pelo ser humano que a comunidade, constantemente, deverá exercitar. Por isso, Jesus orienta, na segunda vez, a presença de mais duas testemunhas. De modo que o procedimento siga as orientações de Dt 19,15, onde as testemunhas dão veracidade ao ato, e, acima de tudo, a questão não seja decidida por uma só pessoa, evitando também o risco de que o procedimento ou a decisão viesse a ser fruto do autoritarismo do líder.

Nas três tentativas, Jesus deixa bem claro que existe a possibilidade da pessoa fechar-se diante do aconselhamento comunitário. A pessoa é livre em sua decisão. Jesus preserva a liberdade do outro. Não se impõe. Muito menos a comunidade deverá se colocar de modo impositivo diante do irmão que errou. Por isso, a atitude eclesial do aconselhamento não é uma sentença escatológica, isto é, a palavra final na vida da pessoa. A última palavra é sempre a de Deus. O recurso do aconselhamento (correção) comunitário é, acima de tudo, pastoral. Porque ele recoloca a pessoa no grupo da multidão, a fim de busca-la novamente e habilita-la para o seguimento. A atitude da comunidade não é, e não poderá ser, a da exclusão. É contra isso que a comunidade deve lutar, iluminada pelas palavras e atitude de Jesus. Por isso, as palavras de Jesus contidas no v.17, “Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador público”, devem ser entendidas nesta perspectiva. Jesus não está autorizando a comunidade a ignorar ou repudiar a pessoa. Tratar como pagão ou pecador público, o publicano, significa colocar estas duas condições como as destinatárias do projeto de Deus, em Jesus. Elas são, igualmente, símbolos para a categoria da multidão. Chamada a aderir ao discipulado.

O indivíduo que andou na contramão do projeto de Jesus e do Reino do Pai, mesmo sendo temporariamente afastado da comunidade, de modo pedagógico, não poderá ser marginalizado por uma sentença escatológica, por uma palavra final. A comunidade deverá sempre apostar nele e em sua conversão, favorecendo-o na retomada da caminhada discipular. Se trata de uma gestão de conflito interpessoal mediante um procedimento de reconciliação e não de uma arma à disposição do grupo eclesial para eliminar suas ovelhas negras. O convite a reconciliar-se com o irmão ressoa desde Mt 5,23-24 (MARGUERAT. 2013, p. 209).

“Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu” (v.18). Jesus, novamente, assume um tom rabínico. Tem um ensinamento importante a ser dado. Com a mesma expressão utilizada para Pedro (Mt 16,19), transmite à comunidade uma responsabilidade, e não um poder retentor, relacionado ao perdão. O que Jesus quer dizer? Que quem não perdoa retém o perdão de Deus. O perdão de Deus já foi dado, mas se torna eficaz e operativo somente se traduz-se e se transforma em perdão aos irmãos.

Os vv.19-20 concluem: “De novo, eu vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isto vos será concedido por meu Pai que está nos céus. Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estou ali, no meio deles”. Devem ser explicados dentro do contexto do chamado aconselhamento fraterno, evitando-se uma leitura voltada para a importância da oração comunitária. Mateus os inseriu nesta parte do discurso para dar ênfase ao contexto deste procedimento comunitário. Céu e Terra são duas imagens utilizadas pelo evangelista. A primeira, céu, refere-se ao âmbito do Pai. Já a terra refere-se ao âmbito da comunidade cristã. O evangelista quer ensinar que existe uma estreita relação entre o Pai e a comunidade. Em Segundo lugar, a comunidade deve estar sempre voltada para o querer do Pai. Quando ela se reúne para tomar uma decisão sobre o irmão faltoso, deve primeiramente buscar o discernimento a partir da vontade do Pai, e não o que o líder ou as lideranças pretendem. Quando a comunidade faz aquilo que corresponde ao querer do Pai, então poderá ter a convicção de que Deus chancelou a decisão comunitária. O pai só chancela e confirma aquilo que a comunidade deseja, quando discerniu a sua vontade.

A comunidade deve, então, fazer sua oração para discernir a respeito da decisão a ser tomada em relação ao irmão. Deve tomar a consciência de que no meio dela está Jesus. É uma oração que se faz na presença do ressuscitado, conduzida por seu Espírito.

Aqui, o evangelista utiliza o verbo grego synfoneo (gr. συμφωνηω / συμφωνησωσιν), “estar de acordo”, “agir segundo a mesma sinfonia”. Daqui se origina o termo sinfonia. O que é uma sinfonia? Uma mesma partitura sendo tocada por instrumentos diferentes, cada um usando seu próprio talento e capacidade que possuem (ainda que na diversidade dos instrumentos), mas todos juntos, com seus respectivos instrumentos encontram-se numa sinfonia. Nesse sentido, a comunidade cristã é uma sinfonia, e age como tal, quando toca sob a partitura do amor de Deus que perdoa, acolhe, recupera, integra e gera vida. Assim espera Jesus que a comunidade dos discípulos viva e atue na história.

Emerge do texto evangélico de hoje todo o esforço do evangelista em coibir, no interno de sua comunidade, qualquer postura leviana, vingativa, revanchista, autoritária, moralista. Quando essas mentalidades entram na vida comunitária, os indivíduos ficam completamente fragilizados e a comunidade se fragmenta. E passa a se submeter aos caprichos às vontades das lideranças e se distancia da sintonia e da sinfonia de Jesus. O Jesus de Mateus quer deixar bem claro que a comunidade é a comunidade do Reino. Por isso, as lideranças devem se submeter aos princípios (partitura) do Reino, e não impor suas vontades.

Nossas comunidades têm sido espaço de perdão e acolhida? Sob qual sinfonia as nossas comunidades têm se pautado? Tem ela sido fiel à partitura do Reino anunciado e vivido por Jesus, a Palavra de Deus, que alimenta, gera conversão, promove perdão e vida? Que estejamos sob a mesma partitura, sob um único maestro, executando a sinfonia do amor, do perdão e da vida.

Pe. João Paulo Sillio. Arquidiocese de Botucatu – SP.