sábado, 5 de setembro de 2020

HOMILIA PARA O XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 18,15-20:


A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum, introduz-nos na leitura do quarto discurso (ensinamento/catequese) do Evangelho segundo Mateus, o “Discurso Eclesial” contido em Mt 18,1-35. Esta catequese é dirigida aos discípulos, primeiramente; mas, no horizonte da catequese mateana, o autor sagrado, recuperando o ensinamento de Jesus, introjeta-o na vida e no contexto de sua comunidade, dados os desafios que começam a surgir ao seu interno. O discurso visa levar a comunidade dos discípulos a pautar sua ação pela justiça — modo de ser e de agir— própria do Reino. Através deste ensinamento, Jesus visa colocar para seus discípulos as balizas para serem reconhecidos como a comunidade do Reino. Mateus, de sua parte, apresenta o conteúdo dos ensinamentos contidos no Discurso para lançar luzes para a vida de sua comunidade.

Mt 18 toca alguns problemas vividos no interior da comunidade do Reino, causadores de mal-estar, contratestemunho, divisões, quando se exige a autenticidade de quem aderiu a Jesus e ao Reino anunciado por Ele. Jesus começou o ensinamento exortando os discípulos a assumirem a atitude exemplar dos pequeninos, com o gesto metafórico de colocar ao seu meio uma criança, visando coibir a mentalidade e a tentação da superioridade ao interno da comunidade (18,1-5). Em seguida, adverte para o perigo dos escândalos ao interno da comunidade, geradores de obstáculos aos pequeninos (os que davam os primeiros passos na Fé em Jesus e na vida comunitária, 18,6-9). Isso posto, pode-se situar o texto de hoje em seu contexto imediato. Mt 18,15-20 situa-se após a primeira parábola de Jesus ao interno do discurso, a da ovelha extraviada, Mt 18,10-14 (ela foi tornada assim pela intransigência das lideranças e dos escândalos ao interno da comunidade).

O trecho bíblico de hoje, apresenta o texto da chamada “correção fraterna”, que na verdade poderia ser “correção comunitária”, Mt 18,15-20. Como bom mestre, Jesus propõe uma situação. Mateus, se apropria dela porque algo semelhante deve estar acontecendo no seio de sua comunidade. A situação é a seguinte: “Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, à sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão” (v.15). O texto contido nos originais, em grego, omite o pronome oblíquo de segunda pessoa, “ti”, ficando assim: “se te irmão pecar”. Se o irmão começar a tomar atitudes incompatíveis com o projeto do Reino, levando uma vida que não condiz com o projeto de Jesus. Nesse sentido, o pecado reside no ato de se colocar contrário ao projeto prescrito em Mt 5 – 7, no discurso inaugural, o Sermão da Montanha. A pessoa deve ser chamada, e deve ser mostrado a ela que o ethos – modo de ser e de viver – que vive é incompatível com o projeto do Reino. Essa primeira advertência consiste a chamar o irmão consigo. Podendo, porém, haver dois resultados: positivo e negativo. Estes dois resultados acompanharão os próximos passos: o positivo, resulta na acolhida da correção e conversão (retomada do caminho do discipulado), enquanto o negativo resultará na redução do individuo à categoria de multidão.

Multidão, discípulos, apóstolos são três categorias com as quais Mateus trabalha. Elas apresentam o itinerário da pessoa que inicia seu processo discipular. A multidão é aquele grupo que ouve as palavras de Jesus só por ouvir, procura-o somente pelo que pode oferecer, e não se compromete com Ele. Os discípulos são aqueles que ouviram a Palavra de Jesus, deram o passo em direção à ele e se colocaram no seguimento, estabeleceram uma experiência relacional com o mestre, deixando-se formar pelo projeto do Reino. E o grupo dos apóstolos (missionários), que continuando o discipulado, assumem a missão, o projeto de vida de Jesus, vivendo-o na realidade histórica. Mas para estes dois grupos, nada está garantido. Sempre há possibilidade de ceder a alguma tentação e voltar para o grupo da multidão. Nesse caso, a missão da comunidade será sempre a de reintegrar a pessoa no caminho do discipulado-missionário. Nessa perspectiva é que se desenrola o texto de que meditamos. A comunidade, e não o arbítrio, o humor ou gostinho das lideranças, é a instância de decisão; ela deve ter os mecanismo para a integração da pessoa no horizonte do projeto de Deus, ainda que deva ela mesma encaminhar o individuo para a condição inicial, à multidão, para refazer, o processo do discipulado.

Lancemos um olhar mais aprofundado ao versículo 15. O termo irmão, utilizado nesta pericope, reflete uma relação comunitária. Outro elemento que nos chama a atenção é o fato de que não é o irmão culposo que deve vir pedir perdão. Mas o irmão ofendido que deve ir ao encontro do faltoso. O verbo utilizado na tradução litúrgica, “corrigir”, pode dar sempre a impressão de superioridade a quem corrige, e de inferioridade para aquele que é chamado a atenção. O verbo correto é convencer, isto é, fazer ver ao irmão o erro cometido. Não há espaço para superioridade e inferioridade ao interno da comunidade.

O texto de Mateus mostra que o aconselhamento deve ser feito mais duas vezes, em caso de reação negativa da outra parte, totalizando três vezes. O número três na teologia bíblica simboliza a condição humana. Representam as três dimensões constitutivas da pessoa: alma, espírito e corpo. Sua totalidade. Significa, aqui, a opção incondicional pelo ser humano que a comunidade, constantemente, deverá exercitar. Por isso, Jesus orienta, na segunda vez, a presença de mais duas testemunhas. De modo que o procedimento siga as orientações de Dt 19,15, onde as testemunhas dão veracidade ao ato, e, acima de tudo, a questão não seja decidida por uma só pessoa, evitando também o risco de que o procedimento ou a decisão viesse a ser fruto do autoritarismo do líder.

Nas três tentativas, Jesus deixa bem claro que existe a possibilidade da pessoa fechar-se diante do aconselhamento comunitário. A pessoa é livre em sua decisão. Jesus preserva a liberdade do outro. Não se impõe. Muito menos a comunidade deverá se colocar de modo impositivo diante do irmão que errou. Por isso, a atitude eclesial do aconselhamento não é uma sentença escatológica, isto é, a palavra final na vida da pessoa. A última palavra é sempre a de Deus. O recurso do aconselhamento (correção) comunitário é, acima de tudo, pastoral. Porque ele recoloca a pessoa no grupo da multidão, a fim de busca-la novamente e habilita-la para o seguimento. A atitude da comunidade não é, e não poderá ser, a da exclusão. É contra isso que a comunidade deve lutar, iluminada pelas palavras e atitude de Jesus. Por isso, as palavras de Jesus contidas no v.17, “Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador público”, devem ser entendidas nesta perspectiva. Jesus não está autorizando a comunidade a ignorar ou repudiar a pessoa. Tratar como pagão ou pecador público, o publicano, significa colocar estas duas condições como as destinatárias do projeto de Deus, em Jesus. Elas são, igualmente, símbolos para a categoria da multidão. Chamada a aderir ao discipulado.

O indivíduo que andou na contramão do projeto de Jesus e do Reino do Pai, mesmo sendo temporariamente afastado da comunidade, de modo pedagógico, não poderá ser marginalizado por uma sentença escatológica, por uma palavra final. A comunidade deverá sempre apostar nele e em sua conversão, favorecendo-o na retomada da caminhada discipular. Se trata de uma gestão de conflito interpessoal mediante um procedimento de reconciliação e não de uma arma à disposição do grupo eclesial para eliminar suas ovelhas negras. O convite a reconciliar-se com o irmão ressoa desde Mt 5,23-24 (MARGUERAT. 2013, p. 209).

“Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu” (v.18). Jesus, novamente, assume um tom rabínico. Tem um ensinamento importante a ser dado. Com a mesma expressão utilizada para Pedro (Mt 16,19), transmite à comunidade uma responsabilidade, e não um poder retentor, relacionado ao perdão. O que Jesus quer dizer? Que quem não perdoa retém o perdão de Deus. O perdão de Deus já foi dado, mas se torna eficaz e operativo somente se traduz-se e se transforma em perdão aos irmãos.

Os vv.19-20 concluem: “De novo, eu vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isto vos será concedido por meu Pai que está nos céus. Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estou ali, no meio deles”. Devem ser explicados dentro do contexto do chamado aconselhamento fraterno, evitando-se uma leitura voltada para a importância da oração comunitária. Mateus os inseriu nesta parte do discurso para dar ênfase ao contexto deste procedimento comunitário. Céu e Terra são duas imagens utilizadas pelo evangelista. A primeira, céu, refere-se ao âmbito do Pai. Já a terra refere-se ao âmbito da comunidade cristã. O evangelista quer ensinar que existe uma estreita relação entre o Pai e a comunidade. Em Segundo lugar, a comunidade deve estar sempre voltada para o querer do Pai. Quando ela se reúne para tomar uma decisão sobre o irmão faltoso, deve primeiramente buscar o discernimento a partir da vontade do Pai, e não o que o líder ou as lideranças pretendem. Quando a comunidade faz aquilo que corresponde ao querer do Pai, então poderá ter a convicção de que Deus chancelou a decisão comunitária. O pai só chancela e confirma aquilo que a comunidade deseja, quando discerniu a sua vontade.

A comunidade deve, então, fazer sua oração para discernir a respeito da decisão a ser tomada em relação ao irmão. Deve tomar a consciência de que no meio dela está Jesus. É uma oração que se faz na presença do ressuscitado, conduzida por seu Espírito.

Aqui, o evangelista utiliza o verbo grego synfoneo (gr. συμφωνηω / συμφωνησωσιν), “estar de acordo”, “agir segundo a mesma sinfonia”. Daqui se origina o termo sinfonia. O que é uma sinfonia? Uma mesma partitura sendo tocada por instrumentos diferentes, cada um usando seu próprio talento e capacidade que possuem (ainda que na diversidade dos instrumentos), mas todos juntos, com seus respectivos instrumentos encontram-se numa sinfonia. Nesse sentido, a comunidade cristã é uma sinfonia, e age como tal, quando toca sob a partitura do amor de Deus que perdoa, acolhe, recupera, integra e gera vida. Assim espera Jesus que a comunidade dos discípulos viva e atue na história.

Emerge do texto evangélico de hoje todo o esforço do evangelista em coibir, no interno de sua comunidade, qualquer postura leviana, vingativa, revanchista, autoritária, moralista. Quando essas mentalidades entram na vida comunitária, os indivíduos ficam completamente fragilizados e a comunidade se fragmenta. E passa a se submeter aos caprichos às vontades das lideranças e se distancia da sintonia e da sinfonia de Jesus. O Jesus de Mateus quer deixar bem claro que a comunidade é a comunidade do Reino. Por isso, as lideranças devem se submeter aos princípios (partitura) do Reino, e não impor suas vontades.

Nossas comunidades têm sido espaço de perdão e acolhida? Sob qual sinfonia as nossas comunidades têm se pautado? Tem ela sido fiel à partitura do Reino anunciado e vivido por Jesus, a Palavra de Deus, que alimenta, gera conversão, promove perdão e vida? Que estejamos sob a mesma partitura, sob um único maestro, executando a sinfonia do amor, do perdão e da vida.

Pe. João Paulo Sillio. Arquidiocese de Botucatu – SP.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário