sábado, 29 de abril de 2023

IV DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 10,1-10:

 


A liturgia deste quarto domingo da páscoa apresenta sempre a temática do Bom Pastor aplicada a Jesus. O texto evangélico é tomado do capítulo décimo do Evangelho segundo João, variando os versículos deste capítulo. Para o ciclo litúrgico A, o qual a Igreja este ano vivencia, os versículos propostos são os iniciais, de 1-10. Infelizmente, a tradução litúrgica omite o versículo essencial para a temática deste domingo pascal, o v.11, onde Jesus se declara “Bom Pastor”. Todavia, os anteriores servem como preparação à esta autorrevelação que o Senhor faz, ficando implícito ao leitor-ouvinte este tema. Mas, qual a função deste capítulo décimo para a catequese deste tempo pascal? A de ensinar o discípulo a passar pela porta da vida que é Jesus ressuscitado, deixando para trás os recintos de morte. Ouvir a palavra do pastor Ressuscitado a fim de ter a vida plena. Para melhor compreender a mensagem evangélica deste domingo pascal, se faz necessário algumas constatações.

O contexto amplo do texto precisa ser levado em consideração. O capítulo décimo, que apresenta a alegoria do pastor e o discurso de Jesus acerca do pastor ideal é precedido pelo capítulo nono. Se poderia pensar e facilmente afirmar que o tema do pastoreio-rebanho-pastor emerge no Quarto Evangelho precisamente em virtude do sinal realizado pelo Senhor no capítulo precedente, a cura do cego de nascença. Estes acontecimentos narrados em Jo 9 – 10 possuem como pano de fundo a festa das cabanas, uma das grandes festas de peregrinação do povo de Israel, na qual se fazia a memória do tempo em que o povo não havia conquistado a terra, vivendo em tendas. Após a dominação dos Selêucidas, no período dos Macabeus (1Mc 4), o templo destruído foi recuperado e dedicado. Por isso, à festa das tendas foi associada à da dedicação do templo, como um prolongamento da primeira. Nestas festas solenes de peregrinação, o povo esperava a manifestação pública do Messias. Importa fazer esta constatação porque é devido a este contexto de festa religiosa que Jesus se encontra na cidade santa, e faz lá suas declarações mais bombásticas: declara-se como Luz do mundo e Bom Pastor.

Jo 10,1-10, situa-se imediatamente após o sinal realizado por Jesus devolvendo a visão ao cego de nascença. O Sinal em Jo 9 consiste na Sua revelação como sendo o enviado (hbr. siloé) para trazer a Luz para o mundo. O cego de nascença se torna metáfora para as lideranças do povo, cegas pelo poder, pelos privilégios e pela mentalidade mundana, que recusam conscientemente ver a Luz de Deus que se manifestava em Jesus de Nazaré. O capítulo décimo surge, então, como advertência à postura destas lideranças judaicas. Ao invés de cuidar, acolher, promover-lhes a vida e a dignidade, acabavam expulsando de seu meio as pessoas simples do povo; aqueles que lhes representavam alguma ameaça (entre estes, os seguidores do Nazareno), ou, porque, simplesmente viviam fora de seus padrões, como o ex-cego. Sabendo disso, Jesus vai ao seu encontro (Jo 9,35-37), e o discurso acerca do Bom Pastor é desencadeado. O Senhor se apresentará, portanto, como contraponto às lideranças religiosas do povo, que deveriam pastorear, tarefa que não estavam cumprindo, segundo o coração de Deus, o pastor supremo de Israel.

O tema do pastoreio era muito presente na vida do povo de Israel. É importante, primeiramente, saber que o rebanho/ovelha foi um símbolo aplicado ao povo de Israel. Já a imagem do pastor era atribuída ao próprio Deus. Mas, no decorrer da história do povo, foi deslocada para as lideranças do povo: os reis e sacerdotes. Após estas constatações, o texto pode ser meditado.

“Em verdade, em verdade vos digo, quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante. Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas” (vv.1-2). Declara Jesus. João inicia o discurso com um solene “Em verdade, em verdade”, literalmente, “amém, amém” (“o que será dito é verdadeiro, é seguro; te digo com firmeza”). O autor quer mostrar ao discípulo leitor do evangelho que as palavras que se seguirão são ensinamentos importante, e, que, por isso, devem estar atentos. Qual é o conteúdo desta declaração? “Quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante. Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas”. Acontece que estas palavras são direcionadas aos fariseus, aos líderes do povo, os quais não exerciam esta função corretamente.

O evangelista usa o termo recinto (gr. αὐλή/aulé) – e não redil, como a tradução litúrgica sugere. Com esta palavra, ele se refere ao átrio do templo, um pátio em que se situava a casa dos sumos sacerdotes. O Senhor, na perspectiva de João, mesmo estando no ambiente religioso judaico deseja, na verdade colocar-se como alternativa àquele recinto, isto é, ao Templo e a todo o sistema religioso, que já não eram capazes de colocar a pessoa na relação com Deus. E apontando para a superação de todo esse sistema de escravidão, opressão, domínio e morte em que a religião de Israel havia se transformado.

O evangelista pretende ensinar aos seus que as instituições religiosas do judaísmo são superadas e substituídas pelo dom da vida Jesus, o qual será o novo lugar, o pasto seguro e viçoso em que o homem encontrará vida e poderá se relacionar com Deus. Serão com os recintos/espaços de morte que o discípulo deverá romper!

“Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. A esse o porteiro abre, e as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora” (v.2-3). Por que as ovelhas escutam Sua voz? Reconhecem e encontram Nela em Sua pessoa, a resposta para os seus anseios de vida. É bonito notar o nível da relação que o Senhor estabelece com os seus. Não se trata de uma relação massiva e superficial. Para Ele ninguém é um número, e sim uma pessoa bem concreta. Tal nível de relação faz com que a ovelha-discípulo seja “conduzida para fora”. O verbo utilizado pelo evangelista é exagei (gr. εξαγει, levar para fora, sair), o mesmo usado no livro do Êxodo para indicar a libertação Egito para a terra da liberdade e da vida nova. O discípulo, que rompe com os esquemas de morte (recinto/redil) é convidado a trilhar um caminho novo de libertação e vida.

“E, depois de fazer sair todas as que são suas, caminha à sua frente, e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz. Mas não seguem um estranho, antes fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos” (v.4-5). Jesus, depois de fazer sair suas ovelhas do interno da instituição religiosa, não as aprisiona em outro recinto, mas as conduz para a plena liberdade. Uma característica toda peculiar deste pastor joanino é a de caminhar com suas ovelhas. Não as deixa solta, sem qualquer compromisso com elas, mas vaia frente, conduzindo e caminhando junto. No v. 5 (“Mas não seguem um estranho”), o mestre não faz uma constatação. Na verdade, ele dá um conselho. É necessário fugir daqueles que se apresentam como pretensos pastores, que, como se verá mais adiante, serão lobos disfarçados. O Jesus joanino afirma que as ovelhas só escutam e reconhecem a voz Daquele que as ama, e não dos que desfrutam e usufruem de suas vidas. Só pode ser verdadeiro e exemplar pastor aquele que dá a vida, e não quem a tira.

Continua o versículo 6, “Jesus contou-lhes essa parábola, mas eles não entenderam o que ele queria dizer”. Qual o motivo da incompreensão dos fariseus? Não pertencerem ao rebanho do Senhor. Antes, fazem-Lhe uma firme oposição. Angariam, no entanto, seus próprios rebanhos; seu próprio gado, para aproveitarem-se de sua lã e de seu couro. Não entendem porque não querem; são resistentes. É impensável, para eles, reconhecer o erro e sair da zona de conforto, de domínio e de poder.

No v.7, “Então Jesus continuou: “Em verdade, em verdade vos digo, eu sou a porta das ovelhas (gr. εγω ειμι η θυρα των προβατων)”. εγω ειμι / Egô eimî, O evangelista usa uma formula de revelação, “Eu sou”, que alude à revelação de Deus no Êxodo, e ao seu nome divino “YHWH”. A intenção de Jesus é de revelar aos seus discípulos a presença de Deus através de sua vida e existência. Já a do autor do Quarto Evangelho é a de revelar à sua comunidade a condição divina de Jesus.  O tom solene do “amém, amém” retorna mais uma vez, o que indica que um ensinamento importante será transmitido aos ouvintes-leitores. Qual o conteúdo deste? A declaração que faz, “Eu sou a porta das ovelhas”. Ele se revela a porta através da qual as ovelhas devem passar, saindo do recinto da dominação e da impossibilidade de vida. Ao passar por Jesus tudo o que é antigo encontra-se superado. Ele não quer ninguém preso dentro das estruturas ultrapassadas.

“Todos aqueles que vieram antes de mim são ladrões e assaltantes, mas as ovelhas não os escutaram (v.8). Jesus, radical em sua fala, direciona a acusação “ladrões e assaltantes” às lideranças do povo, os fariseus e os sacerdotes (os quais vieram antes Dele). Por que o Senhor os chama de ladrões e assaltantes? Porque as autoridades religiosas daquele tempo se serviam da religião para saquear a dignidade e da plenitude da vida das pessoas. Assaltar e roubar a dignidade, a liberdade e a vida equivale, para o mestre, a gerar morte. Isto, Ele não admite.

“Eu sou a porta. Quem entrar por mim será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem” (v.9). Jesus declara-se, novamente, como a porta através da qual se adentra e se pode tomar parte do novo rebanho de Deus. O evangelista usa dois verbos, “entrar” e “sair” para enfatizar que o mestre não encerra – encarcera – suas ovelhas, mas as conduz para a liberdade. A porta, que é Jesus, não se encontra fechada. Somente pessoas maduras são livres. Por isso, é tarefa do pastor criar na ovelha/discípulo a maturidade. Esta, só pode crescer quando se cria a consciência no discípulo. Assim, a porta (que é Jesus) sempre estará aberta, indicando o caminho da liberdade. Este é o segundo critério do autêntico pastor.

Ora, somente seguindo ao Senhor se encontra plenitude de vida e liberdade, simbolizadas pela imagem da pastagem. O evangelista realiza um jogo de palavras com no original grego através do termo pastagem e lei. Ambas possuem o mesmo radical “nom”: nomén (gr.νομην) significa pasto, e Nômos (gr. νόμος), Lei. Em Jesus, o ser humano não se encontra com uma Lei a ser cumprida, mas com uma pastagem, ou seja, um alimento que dá vida.

Neste sentido é que Jesus declara: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (v.10). Trata-se de um convite de Jesus às pessoas para que tenham vida plena, ou seja, a emancipar-se das relações de poder e domínio; a libertarem-se dos pastores que impõem e obrigam; a deixarem os antigos recintos e ambientes de morte, contrários ao projeto de Deus, e a acolherem o dom da vida plena e inextinguível que Ele, em Jesus, oferece incondicionalmente a todos que escutam sua voz.

Nesta alegoria do Bom Pastor, o evangelista opera um contraste entre as lideranças do povo e Jesus. Os primeiros, agiam na contramão do projeto de Deus. Já, o Senhor, agia segundo o coração (de pastor) de Deus, mostrando-se exemplar, ao realizar aquilo que as lideranças do povo deveriam fazer e não faziam: apontar e conduzir para a vida que Deus dá, agora, através do dom da existência de seu Filho, o pastor ideal. 

Nesse sentido, o papel do verdadeiro pastor, de acordo com o evangelho joanino, não consistirá em carregar ninguém ao colo – símbolo da dependência, domínio, paternalismos infantilizadores, que não geram vida nem fazem crescer – mas apontar caminhos, conduzir (ir com) e caminhar junto (ou em meio) aos seus; fazê-los caminhar para a vida e para a liberdade, sem medo.

De quais recintos precisamos sair ou romper? Jesus aponta a pastagem, o alimento e o cuidado que só Ele dá; temos comido do alimento que ele nos oferece? Tenho ouvido a voz do Senhor, ou outras vozes dissonantes tem falado mais alto em minha vida? Nos caminhos da vida, Jesus está à frente e caminhando conosco, tenho ido após Ele, ou insisto em tomar-lhe o lugar? Permitamos que o Senhor nos conduza da morte para a vida, qual pastor conduz suas ovelhas, a fim de que possamos colaborar com Ele na missão de pastorear, isto é, apontar caminhos, trilhá-los juntos, criar e formar consciências, e oferecer vida plena aos irmãos.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 22 de abril de 2023

III DOMINGO DA PÁSCOA - Lc 24,13-35:

 

A liturgia deste Terceiro Domingo da Páscoa nos apresenta o relato conhecido por todos como os discípulos de Emaús. Lucas conserva os dados comuns a Marcos, Mateus e João, mas transmite a experiência com o ressuscitado a seu modo para a sua comunidade. Tomemos o texto.

“Naquele mesmo dia, o primeiro da semana, dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém” (v.13). Lucas situa a cena ao redor dos acontecimentos do dia da ressurreição. Mas revela que a comunidade ainda encontra dificuldades para fazer a experiência da vida com o ressuscitado. Prova disso são os dois discípulos, um de nome Cléofas, e outro, anônimo, que pertenciam ao grupo dos Doze, dirigindo-se para o povoado de Emaús. O fato de irem para a direção contrária à do grupo revela que os discípulos estavam de fato perdidos após a morte do mestre. Por que seguem para lá? Para responder a essa indagação, se faz importante compreender a teologia da obra lucana e os expedientes literários dos quais ele se serve para transmitir sua catequese para uma comunidade também em crise.

O projeto teológico de Lucas revela como meta e centro da missão de Jesus Jerusalém. Desde o capítulo nono, se narra a viagem do Senhor para a cidade santa. Lá Ele revelará a ação de Deus, através de sua entronização a partir da morte de Cruz e da ressurreição. Por isso, Jerusalém se torna a meta de Jesus, e, consequentemente, a do discípulo. O evangelista se apropria da profecia de Isaias, que “de Jerusalém vem a Palavra de Deus”, para ensinar à sua comunidade que a vida, missão e obra (paixão-morte-ressurreição) de Jesus, se torna a Palavra a ser revelada e anunciada a todas as nações, até os confins do mundo (habitado), a partir de Jerusalém.

Os discípulos se deslocam em direção a Emaús, caminho oposto à Jerusalém. Caminham na contramão da vida e da missão de Jesus. Eles não conseguem assumir como meta para si o sentido da vida de seu mestre. Emaús, significa, portanto, o estado de ânimo do discípulo e da comunidade: frustrados e fracassados. Isso se deve ao fato de possuírem uma noção equivocada acerca da identidade de Jesus. Nutriam falsas esperanças em relação ao mestre. Almejavam a restauração de um reino terreno, e por isso, concebiam um messias triunfante, dominador, guerreiro, revolucionário. No entanto, se deparavam com um crucificado, que, sob hipótese alguma poderia ser o ungido, da descendência davídica.

Não é sem sentido que Lucas se serve da cidade de Emaús para situar o relato, pois o povoado rememora um episódio marcante para a história de Israel: a vitória do povo, liderado por Judas Macabeu, que, com o exército israelita venceu a dominação dos dominadores selêucidas, pagãos. O relato da vitória do exército de Israel se afirma com a declaração contida em 1Mc 4,11: “Todas as nações saberão que Israel possui um libertador e um salvador”. Ou seja, o messias esperado seria aquele que resgataria e salvaria o povo de Israel. Jesus, por causa de sua morte frustrou essas expectativas, tornando-se uma grande desilusão para os discípulos.

Lucas pretende, através do relato, revelar que, quanto mais os discípulos nutrirem ideias equivocadas acerca da vida, missão, obra e todo o acontecido com Jesus (sua paixão, morte) e minimizarem a boa notícia da ressurreição, se distanciarão, tomando o caminho contrário ao do Senhor, e não conseguirão fazer a experiência com ele, o vivente. Só farão experiência de morte, de desolação, de frustração e fracasso.

“Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles” (v.15). Aqui, o evangelista se apropria daquela imagem de Jesus, enquanto pastor ideal (pertencente ao Quarto Evangelho), que não abandona suas ovelhas. Antes, caminha com elas. Mas Lucas insiste na dificuldade dos discípulos em reconhecer o peregrino que caminhava com eles, “Os discípulos, porém, estavam como que cegos, e não o reconheceram” (v.16). Estão impedidos de ver/reconhecer a Jesus porque estão ainda com os olhos voltados ao passado e na direção contrária, por isso não conseguem ver o presente, no qual Jesus está, tampouco vislumbrar o futuro para o qual o mestre conduz. 

Diante da pergunta do peregrino acerca do conteúdo da conversa deles durante a viagem, eles o colocam a par dos últimos acontecimentos. Note-se, eles não abandonam o adjetivo nazareno, o qual aludia a condição de revolucionário. Ainda se prendem a essa expectativa. Não bastou o testemunho das mulheres. A resposta de Jesus a eles soa como reprovação: “Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória? (vv.25-26).

O verbo utilizado por Lucas, “dever/necessidade” precisa ser bem entendido: a necessidade deste sofrimento só pode ser compreendida diante da liberdade de Jesus ao assumi-lo, não enquanto predestinação ou determinismo, mas como consequência de uma vida inteira vivida na fidelidade ao Pai.

O que Jesus faz, em seguida, é emblemático: lhes interpreta as escrituras, “E, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele” (v.27). Mais do que explicar (conforme faz uso a tradução litúrgica) Lucas usa o verbo “interpretar” (Gr. διηρμηνευεν / dihermhenêuesen), verbo do qual provem o termo técnico hermenêutica, a arte ou a técnica de interpretar o texto. Jesus não se limita a narrar, dizer ou explicar lhes os textos das Escrituras, mas a interpretá-los. Ou seja, ler toda a sua vida e missão à luz das Escrituras, e vice-versa. Mas, para ler e compreender as Escrituras é necessário lê-la e interpretá-la com o mesmo Espírito que as inspirou, o amor criador e gerador de vida de Deus-Pai, por toda a obra da criação. E este será um critério que permitirá aos discípulos compreender as Escrituras sob o signo da vida de Jesus.

Um critério a mais é necessário ao discípulo, para compreender o sentido (caminho, direção) da vida de Jesus. O qual emerge da cena, a seguir. O evangelista recorda a última ceia do Senhor através do gesto do sentar-se à mesa com os discípulos e partir o pão com (e para) eles: “Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles” (v.30-31). A forma como o autor organiza a cena no relato é interessante: sentados à mesa estão Jesus, Cléofas e o outro, anônimo. Estas personagens são sempre um convite a colocar o nosso nome nelas. O discípulo anônimo pode ser cada um de nós. Pois, diante dos limites que trazemos conosco, há também lugar na mesa; podemos tomar parte dos gestos e dos ensinamentos do Senhor que, ao redor da mesa tudo  refaz.

Os mesmos gestos, a mesma ação que Jesus realizara com os discípulos na ceia pascal. Lucas é o único evangelista que faz memória das palavras do Senhor naquela ceia, e, que, após narra a ordem de iteração “Fazei isto em memória de mim”. Assim, Jesus, realizando os mesmos gestos da Ceia da Nova Aliança atualiza  para eles a sua presença. Isso faz com que os olhos dos discípulos se abram e possam reconhecê-lo. 

Ao realizar a sua memória diante dos discípulos à mesa, Jesus tornou-se invisível aos olhos deles. O texto litúrgico diz que Ele desapareceu, o que não expressa bem o sentido dado pelo evangelista. A melhor tradução é “ficou invisível”. Desparecer significa não estar mais presente, alude ao perigo de conceber o Senhor como ausente, o que não é verdade. “Ficar invisível” significa permanecer presente sem ser visto, acenando para a certeza da sua presença, mesmo sem vê-lo. Esta é a mensagem que o Evangelista quer transmitir para sua comunidade: Jesus se torna visível todas as vezes que a comunidade se reúne para partir o pão, ainda que invisível, porque será a vida do discípulo e da comunidade a torna-la visível, atual e, portanto, presente.

Somado à Palavra de Deus reinterpretada por Jesus (à luz de sua vida), o pão repartido se torna critério para experimentá-lo como Ressuscitado. Ele é uma realidade que o Cristo se serviu para expressar e visibilizar o que aconteceria com sua vida e história. Mas será sempre o sinal distintivo, através do qual a comunidade poderá fazer memória da sua vida vencedora e indestrutível. Assimilando seu gesto de entrega-em-amor, a comunidade poderá fazer o que Ele fez e viver como Ele vive. Poderá experimentar a força ressignificadora de Sua ressurreição ao ouvir Sua palavra e sentar-se à mesa, a fim de retomar o caminho certo.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São  Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.


domingo, 16 de abril de 2023

II DOMINGO DA PÁSCOA - In Albis - Jo 20,19-31:

 


A oitava pascal compreende o grande domingo da Ressurreição do Senhor. Por oito dias, a comunidade dos discípulos de todos os tempos se reúne entorno da novidade da ressurreição e dos encontros com Jesus, o vivente. E a narrativa proposta pela liturgia para a nossa meditação, que coroa estes grande dia memorial da Ressurreição, é tomada da conclusão original do Quarto Evangelho, Jo 20,19-31.

O texto é, sem sombra de dúvidas, uma narrativa de recriação, tanto do ponto de vista da comunidade, como do discípulo. Nesta seção o autor nos convida a tomar parte da experiência da comunidade dos discípulos com o Ressuscitado. De imediato se faz necessário esclarecer: estas cenas não tratam de mostrar aparições. Mas são encontros entre Jesus e a comunidade dos discípulos. Isto posto, podemos tomar o texto e meditá-lo.

“Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores: domingo de Páscoa. Mas a variação temporal revela que a comunidade dos discípulos já deu passos significativos: ela transitou da “madrugada” para o entardecer. O catequista bíblico está recuperando a memória do primeiro dia da criação, em Gn 1 – 2,25. Ele deseja transmitir para a sua comunidade que o acontecido contido nesta narrativa é uma nova criação. Fundindo os horizontes do tempo narrado (30 d.C) com o tempo da comunidade (90 d.C), a indicação temporal “primeiro dia” pode acenar para a prática de dedicar aquele dia para celebrar a Memória do Senhor Ressuscitado. Na verdade, o primeiro dia da semana, é, ao mesmo tempo, o oitavo. O número oito é a cifra do Ressuscitado e, portanto, da Criação levada à plenitude. 

Ocorre, igualmente, a transição de cenário. O espaço já não é o mesmo; a comunidade dos discípulos não se situa mais no sepulcro, mas na casa, o ambiente da própria comunidade. Sinal de que ela saiu do sepulcro.

“Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v.19). Mas, mesmo se distanciando da escuridão e dos esquemas de morte e, tendo dado passos no processo da experiência da ressurreição, ainda estava bloqueada pelo medo. Não é sem razão. As horas e os dias anteriores respiravam ameaças e morte, pois se o mestre foi morto pelas autoridades do judaísmo, também suas vidas perigavam. Mas à atitude do medo, o evangelista deposita um motivo teológico: ele torna-se oposição à Fé. Ou seja, impede a experiência relacional com Deus. O medo preocupa, impede a missão e gera fechamento; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a ausência do Senhor.

“Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: A paz esteja convosco" (v.19b). É importante a informação dada pelo evangelista. Nos relatos do Ressuscitado, os evangelistas não o mostram manifestando aos discípulos de forma distante. Não se trata de um Jesus acima de tudo e de todos. Ele se encontra em meio! O ressuscitado é o centro orientador da existência do discípulo e da vida da comunidade. Mas também é o núcleo gerador de vida para a comunidade.  O indicativo de que o Senhor se encontra ao centro também serve para que se elimine da vida dela e dos discípulos toda a concepção de superioridade. Não pode haver espaço para inferiorização. Não pode existir maior ou menor. Todos possuem a mesma relação com o Senhor. Por isso, a comunidade e o discípulo que vão se abrindo a experiência da ressurreição devem-se permitir serem recriados como comunidade igualitária, livre de estruturas de domínio, de poder e de submissão; fraterna, tendo um único centro: Jesus Ressuscitado. Estando o Senhor ao centro, João quer ensinar que a ninguém é permitido tomar o lugar de Jesus; nenhum discípulo poderá ocupar a centralidade da comunidade pois ela pertence ao Senhor.

“A paz esteja convosco (gr. ειρηνη υμιν / Eiréne ymín)” (v.19). Esta saudação se repete por três vezes, o que indica completude, e, ao mesmo tempo a plenitude do ser humano. O número três, na bíblia indica plenitude do homem. É o número do ser humano. Por isso, esta primeira palavra dirigida por Jesus aos seus possui conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da vida que Deus dá. É a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). Esta, não é semelhante a do mundo, a qual pertence e provém das estruturas desta realidade. João quer ensinar para a sua comunidade que através do dom da vida de Jesus, o vivente, se obtém a plenitude da vida que Deus oferece.

O v.20 é importante para a continuidade do relato, porque a paz comunicada acima só se tornou possível por conta das mãos e do lado de Jesus. Ele mostra-lhes as mãos e o lado traspassados pelos pregos e pela lança. As mãos são sinais do serviço, do agir, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração. Os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. A atitude de dar a própria vida no lugar dos seus e, portanto, salvá-los, não foi uma ação heroica, que ficou no passado, mas continua para sempre. Ressuscitado, Jesus carrega consigo todo o sentido de sua vida crucificada. Como se Jesus, com este gesto, estivesse a dizer: “Por que vocês estão preocupados? Olhai e vede: aquele amor que me impulsionou a doar minha vida por vós não foi apenas um momento, mas continua para sempre!” A nível de informação, o v.20 também representa a intenção de João em mostrar a continuidade existente entre Jesus Crucificado e sua condição ressuscitada.

“Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio” (v. 21). A missão de Jesus estava fundamentada na tarefa recebida do Pai e na Sua fidelidade ao realiza-la; a dos discípulos, na de Jesus. Aqui, encontramos três termos importantes: os verbos apostellein e pempein (enviar, gr. ἀποστέλλω; mas aqui απεσταλκεν (apestalkén), cujo tempo verbal encontra-se no perfeito, que indica ação contínua) e a conjunção kathôs (gr. καθως, como). Os verbos e a conjunção têm a intenção de exprimir semelhança e a causa, isto é, a missão dos discípulos é continuação daquela que Jesus recebeu do Pai. O agir do discípulo e da comunidade manifestarão e prolongarão a missão do Senhor.

Os vv.22-23 são profundamente importantes para a finalidade do relato. Ao enviar os discípulos, Jesus sopra sobre os discípulos o seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. O Gesto de Jesus remete à Criação, e por isso, na Sua ressurreição acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo.

O Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Atenção! Jesus não está dando um poder reservado somente aos discípulos, mas uma responsabilidade que toca a todos: reconciliar o mundo; transformar as realidades. O que perdoa os pecados é o amor de Jesus; logo, ficam sem a experiência do perdão, o discípulo que recusa amar como Ele amou.

A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem. Ora, ele não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilhasse da mesma mentalidade.  Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo, era seu nome. Mas quem seria o seu outro irmão gêmeo? Teríamos um personagem anônimo na narrativa? Os personagens anônimos têm, no Quarto Evangelho (e em toda a Sagrada Escritura), a função de espelhos para a comunidade e os leitores. Ou seja, eles servem para que os leitores assumam aquela identidade; se identifiquem com ele. Um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a assimilar a Tomé como seu gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades. A sua coragem – atestada pelo fato de não estar no ambiente fechado da comunidade amedrontada – foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo. O seu erro foi o de não aceitar o testemunho da comunidade. Por isso pediu os mesmos privilégios dos dez, ver, e, também, tocar o Senhor.

Oito dias depois (v.26), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a executar o gesto que havia pedido como prova. Ele, ao invés de tocar o Senhor formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” (v.28). O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. A Tomé, e a todo o discípulo, Jesus concede participar do dom de sua vida ressuscitada, Seu Espírito, e com sua Pessoa, quando se reúne com a comunidade. Sempre que a comunidade completa-se ao redor do ressuscitado, através da celebração de sua memória, o Senhor renova a efusão do Espírito e se pode fazer experiência com Ele, o vivente, e com sua ressurreição.

O relato encerrasse com uma bem-aventurança dirigida aos discípulos de todos os tempos e lugares: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28). Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, muito questionadores chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado, através do dom de deu amor e de sua misericórdia e viver da missão do Senhor. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado.

 

Pe. João Paulo Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu, Avaré-SP / Arquidiocese de Botucatu.


sábado, 8 de abril de 2023

SOLENE VIGÍLIA PASCAL DO SÁBADO SANTO – Mt 28,1-10:

 


A liturgia desta noite santa, Mãe de todas as vigílias, nos convida a tomar o texto mateano que narra a experiência da ressurreição, Mt 28,1-10, o último capítulo da catequese do evangelista, o qual amarra de modo magnifico todo este evangelho eclesial. Mas qual a finalidade deste relato? Mostrar uma forma de se fazer experiência com Jesus ressuscitado. Lembrar as Palavras de Jesus e refazer o sentido de sua vida, acolhendo o convite de retornar à Galileia.

 

Nenhum evangelho descreveu a ressurreição de Jesus. A imagem clássica e tradicional do Cristo triunfante, de fato, não pertence ao evangelho, mas a um escrito apócrifo do Século II, chamado “evangelho de Pedro”. Contudo, os quatro evangelistas dão indicações, através de seus escritos e das experiências comunitárias com o ressuscitado, de como puderam encontrar com o Senhor vivente. Ela não foi um privilégio concedido a um pequeno grupo dois mil anos atrás, mas se torna uma possibilidade aos crentes de todos os tempos. Apropriemo-nos também nós desta experiência, meditando o texto.

 

“Depois do sábado, ao amanhecer do primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro” (v.1). O evangelista inicia o relato com uma observação temporal, “Depois do sábado”. O sábado era dia a ser observado rigorosamente pelo judeu do tempo de Jesus. Violá-lo significava falta gravíssima. Mateus coloca esta referência cronológica para transmitir uma mensagem teológica: a observância deste preceito faz com que a comunidade dos discípulos retarde a sua experiência com o Ressuscitado. Enquanto existirem esquemas antigos, ainda não rompidos, não se conseguirá fazer experiência de vida. O evangelista utiliza o verbo “ver” para descrever a atitude das mulheres. Este verbo não traduz apenas o sentido da visão física, mas também a atitude de se fazer experiência com algo ou alguém. Elas se dirigiram ao sepulcro para vê-lo, ou seja, para fazer a experiência com a realidade da morte, apenas.

 

“Ao amanhecer do primeiro dia da semana”, o evangelista faz memória do primeiro dia da criação. Mas, conforme a mentalidade judaica, representava o oitavo dia, dado que o sábado é o sétimo dia. O número oito, na Igreja primitiva foi associado ao Cristo ressuscitado. E, se recordarmos bem o discurso inaugural de Jesus em Mt 5 – 7, é o número das bem-aventuranças. Este primeiro ensinamento dado por Jesus atinge sua plenitude através do relato pascal contido em Mt 28. O evangelista pretende ensinar à sua comunidade que aquele oitavo/primeiro dia é, agora, o novo e definitivo dia da Nova Criação. Que o projeto de vida proclamado e anunciado por Jesus, no sermão da montanha transmite a vida definitiva e plena.

 

“Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro”, mas falta uma mulher. Recorde-se que, próximo à cruz de Jesus estavam Maria, mãe de Jesus, Maria de Magdala, e a mãe dos filhos de Zebedeu. Ela não está no grupo que vai ao sepulcro. Por quê? Era ela uma mulher ambiciosa, lembremos que ela havia pedido os lugares de honra para seus filhos, mas quando se deu conta de que aquele Jesus fracassou no seu projeto de messias, perdeu toda a sua esperança e não se tornou testemunha da ressurreição. Mateus pretende dar um sinal claro para seus discípulos e para nós: se quisermos fazer a experiência com Jesus, o vivente, é importante que todo o caminho do Senhor seja passado a limpo em nossas vidas, a fim de se crescer na consciência de que a vida do mestre é perpassada pela via da cruz. Sabendo que esta não teve a última palavra; que a vida e morte vergonhosa a se submeteu o Senhor não foram fracassadas e frustradas. É o que a narrativa nos mostrará a seguir. 

 

“De repente, houve um grande tremor de terra: o anjo do Senhor desceu do céu e, aproximando-se, retirou a pedra e sentou-se nela” (v.2). O terremoto, na teologia bíblica é um sinal simbólico da manifestação divina. Acontece, ali, portanto, uma teofania reveladora. Ela já ocorreu uma vez, no calvário, quando Jesus entregou o seu espírito nas mãos do Pai. O terremoto é um indicativo da presença divina. Ora, se na morte de Cruz de seu Filho, Deus se revelou presente, tanto mais agora, na ressurreição, a fim de revelar que toda a vida deste Jesus recebe do Pai a aprovação. Se no Crucificado Deus revelou-se presente, ainda mais no Ressuscitado.

 

“o anjo do Senhor desceu do céu”, a personagem angelical aqui presente não pode ser tomada ao pé da letra; não é uma criatura intermediária ou etérea. O anjo, na bíblia, simboliza a atuação de Deus, ao entrar em contato com o ser humano. No evangelho de Mateus, esta figura simbólica aparece por três vezes: para anunciar o nascimento de Jesus; para protege-lo do olhar homicida de Heródes; e, por fim, para anunciar àquelas primeiras testemunhas a novidade da vida indestrutível de Jesus de Nazaré.

 

Interessante é fato de que não é o terremoto que faz rolar a pedra, desobstruindo o sepulcro, mas o anjo de Deus, que é o próprio Deus. O Pai mesmo confirma a vida do Filho Jesus. Ele é soberano na vida de seu Cristo. O anjo senta-se sobre a pedra retirada do sepulcro: sentar-se sobre algo, na antiguidade era símbolo da conquista. Ali, naquele sepulcro, Deus realiza sua soberania sobre a morte e a vida. A diferença das mulheres que, no capítulo precedente, ficaram sentadas diante do sepulcro fechado, o mensageiro celeste – que é o próprio Deus, senta-se sobre a pedra, sinal da vitória. Sua aparência e vestimentas são descritas por Mateus, com os mesmos tons e cores da cena da transfiguração, em 17,1-13: “Sua aparência era como um relâmpago, e suas vestes eram brancas como a neve” (v.3). São as cores da glória de Deus, por assim dizer.

 

“Os guardas ficaram com tanto medo do anjo, que tremeram, e ficaram como mortos” (v.4), nos informa Mateus. Diante de uma experiência que pertence ao âmbito da vida, qualquer um que pertença aos sistemas e realidades de morte, como os soldados do império, fazem apenas uma experiência de morte. O evangelista é irônico. Aqueles que pensavam estar morto, está vivo; e aqueles que pensavam-se vivos, ficam, agora, como mortos.

 

“Então o anjo disse às mulheres: 'Não tenhais medo!” (v.5). O medo, na bíblia, é o contrário da fé. E continua, “Sei que procurais Jesus, que foi crucificado” (v.5b), isto é, o maldito perante a Lei (Dt 21,22), e lhes faz uma revelação; lhes dá uma boa notícia: Ele não está aqui! Ressuscitou, como havia dito! Vinde ver o lugar em que ele estava” (v.6). Atenção! anjo não diz “ele não está mais aqui”, mas, “Ele não está aqui”, pois o sepulcro nunca foi lugar para Jesus, por isso ele não pode conter o vivente! Ele lhes apresenta uma prova, as palavras de Jesus: “como havia dito”. Elas são o critério para que os discípulos e a comunidade consigam realizar a memória de Sua vida e experimentar a ressurreição.

As mulheres são chamadas a fazerem primeiro esta memória, e, com isso, a experimentar o triunfo da vida. Às mulheres são destinadas as palavras de Jesus como chave de compreensão para o acontecido com o mestre. Esta é a uma profunda inversão dos esquemas e das lógicas humanas daquele tempo, pois elas não eram consideradas. A força de vida que contém a vida vitoriosa de Jesus é doada a todos, sem exclusão. Por isso, esta experiência não deve ficar “sepultada”, guardada unicamente para elas; antes, devem “ir de pressa contar aos discípulos que Jesus ressuscitou dos mortos”.

 

Mas o mensageiro estabelece mais um critério pedagógico para as mulheres, além das palavras de Jesus (da experiência da memória): retornar para a Galileia. Porque o mestre “vai à vossa frente para a Galiléia. Lá vós o vereis” (v.7). A localidade da Galileia parece ser importante para o evangelista, porque ela aparece três vezes. Lá a comunidade dos discípulos poderá ver o ressuscitado. É importante o verbo “ver” de que Mateus faz uso. Ele aparece também nas Bem-aventuranças (Mt 5,8, “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”). Este verbo não indica apenas uma capacidade física atrelada aos sentidos do ser humano, mas uma profunda experiência interior com Deus; ver, significa, na bíblia, fazer experiência com Deus. Ligada a esta ordem divina, é o mesmo que afirmar, “na Galileia da realidade da vida é que vocês poderão fazer experiência com o ressuscitado”. Note-se, que Mateus diz que Jesus ressuscitado não se manifestará em Jerusalém, sede do poder e da dominação (cidade assassina dos enviados de Deus), mas na Galileia, lugar das primeiras experiências que os discípulos fizeram com Jesus; lugar de sua pregação e primeiro anúncio do Reino.

 

“As mulheres partiram depressa do sepulcro. Estavam com medo, mas correram com grande alegria, para dar a notícia aos discípulos” (v.8). A medida que as mulheres vão se afastando do sepulcro, que remete à impossibilidade de vida, vão recuperando a alegria, e se preparando para transmitirem o anúncio.

 

No meio do caminho acontece algo: “Jesus foi ao encontro delas, e disse: 'Alegrai-vos!” (v.9). Enquanto estão indo pelo caminho para anunciar a vida, aparece o Senhor e lhes vem ao encontro, para com Sua presença reforçar o anúncio. Alegrai-vos, dito por Jesus, liga-se ao convite feito por ele na última bem-aventurança, “Alegrai-vos e exultai, pois será grande a vossa recompensa nos céus (Mt 5,9). Eis a recompensa: uma vida indestrutível, capaz de superar a morte. Então as mulheres se aproximaram, prostraram-se e beijaram os pés de Jesus. A menção dos pés indica e confirma que as mulheres tiveram um encontro real com Jesus; indica a realidade física de alguém. Não com um espírito ou fantasma. O gesto da prostração recorda o reconhecimento e a reverência do ser humano diante da glória divina. Na medida em que elas estão indo levar a alegria e a força da vida para os discípulos, elas fazem a experiência com o vivente Jesus, no caminho.

 

De fato, trata-se do encontro com alguém que está vivo. Jesus fala com elas, e lhes recomenda, mais uma vez, a não terem medo. E confirma as palavras do mensageiro celeste: “Ide anunciar aos meus irmãos que se dirijam para a Galiléia. Lá eles me verão” (v.10). Agora, elas são encorajadas a cumprirem a função do anjo: elas devem se tornar as anunciadoras da vitória do Mestre; devem ser as mensageiras da grande notícia do triunfo da vida sobre a morte. Devem fazê-lo, primeiramente aos discípulos, os quais são chamados de “irmãos”, por Jesus. Repete, novamente, a ordem de se dirigirem para a Galileia. Por quê esta insistência de Jesus, que Mateus recupera?

 

Porque somente refazendo os passos de Jesus, de sua vida, de seu ensinamento se pode fazer experiência com o ressuscitado. Esta indicação cumpre o propósito catequético-teológico do evangelista, que narrará mais adiante que os discípulos seguirão para a Galileia, sobre o monte que Jesus havia indicado. Mas até este momento, Jesus não tinha indicado nenhum monte. O monte do qual se refere Mateus é a montanha das Bem-aventuranças, onde o mestre iniciou o seu programa de vida e seu ensinamento. Com isso, é possível captar a mensagem central deste relato pascal: acolhendo e vivendo as bem-aventuranças, manifestando em plenitude a Boa Nova de Jesus, se tem a possibilidade de encontrar na própria vida Aquele que é o vivente!

 

Feliz e santa Páscoa.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

SEXTA-FEIRA SANTA DA PAIXÃO DO SENHOR - Jo 18,1 - 19,42:


 

A glorificação de Jesus chegou. Durante toda a primeira parte do Quarto Evangelho – o livro dos sinais – os gestos proféticos, e, portanto, simbólicos realizados pelo Senhor tiveram a finalidade de revela-lo como enviado do Pai, e aprontar o discípulo para a plenitude da revelação do Amor fiel de Deus: a Hora da Glória (seu enaltecimento/elevação). Na ceia, o evangelista João afirmou o dinamismo deste amor: ele torna-se pleno na vida Jesus, e o faz ir até o fim. O gesto do lava pés, durante a refeição, são a antecipação profética do amor que o leva até a realidade última da existência: doar a vida, ou seja, a experiência redentora da cruz.

A narrativa da paixão no evangelho joanino é diferente das contidas nos sinótcos (Mc, Mt e Lc). O evangelista segue um fio narrativo de Mc (o primeiro evangelho escrito), porém distancia-se e muito na forma de narrar e de apresentar a personagem principal, Jesus. Trata-se de um relato que vai a fundo ao apresentar e revelar a Realeza de Deus em Jesus. Pode-se dizer com toda a segurança que, ao interno da narrativa da paixão joanina, e somente nesta seção narrativa, o Senhor é mostrado como rei, como senhor de si, livre e soberano nas suas ações, no falar e no entregar-se. Devido à extensão do relato joanino da paixão, opto por refletir e meditá-lo a partir de elementos que funcionam como chaves interpretativas, das personagens Jesus e Pilatos, e do sentido que a morte cruz tem. São estes pontos que nortearão nossa experiência com o texto, a fim de recolher dele a mensagem para este dia solene.

O primeiro elemento que funciona como chave de interpretação e compreensão do texto é o tema da Glória, que, mesmo que não seja mencionado textualmente, é o pano de fundo da narrativa da paixão em João. É para esta hora da glória, que o evangelho aponta, desde o seu começo. Mas que Hora e que Glória são estas? A hora, é o acontecimento da cruz. A Glória da qual fala o evangelista deve ser muito bem compreendida. No vocabulário da tradição bíblica do Antigo Testamento, a palavra “glória” (hbr. Kabod) é traduzida por “presença”. Logo, ao se falar da “Glória de Deus” (Ez 10; Ez 43,1-27), está se referindo à presença (ao peso) de Deus. Assim, a glória, no evangelho de João não se trata de um brilho, ou do esplendor, daquilo que é símbolo para o triunfo.

A glória, portanto, da qual o Jesus joanino fala é a realidade da presença de Deus através Sua vida, existência e obra. Assim, a Hora da Glória, de que nos fala o evangelho, desde a noite santa da Ceia, é o evento da cruz, a partir de onde Deus, nosso Pai revela todo o seu poder, que é amor fiel e vida no Crucificado. Como veremos mais adiante.

Outros elementos interpretativos são as técnicas de contrastes utilizadas pelo evangelista. Contraste entre as personagens e os ambientes, como também a oposição escuridão(trevas)/luz. Um exemplo: logo no começo da narrativa, sabemos que é noite, logo, símbolo da escuridão e das trevas. Jesus está no horto. João não nos fala que eles traziam consigo lanternas. Imagine-se, pois, horto, com arvores muito próximas, num ambiente noturno. Mas naquele lugar está Jesus. Ele não leva lamparinas ou lanternas, precisamente porque o evangelista deseja afirma-lo como a verdadeira Luz que ilumina o mundo e quem adere à sua pessoa. Contrasta a ele, a figura de Judas e dos soldados do templo, os quais chegam com tochas e lamparinas para poderem ver, ou seja, estavam envoltos com luzes artificiais, e não com a verdadeira luz. Eles precisam se iluminar porque estão na noite, nas trevas da escuridão: não acolheram a Jesus, como Luz. E não querem ser iluminados por Ele. O mesmo se diga na alternância dos ambientes em que a narrativa se desenvolve: a casa de Anás e Caifás, o palácio de Heródes utilizado por Pilatos. São ambientes escuros, que contrastam com a claridade da pessoa de Jesus. O evangelista quer apresentar aos seus que as autoridades religiosas e politicas também estão da parte da escuridão, enquanto que naqueles ambientes de sombra, brilha e resplandece Jesus, como luz a iluminar e mudar as mentalidades. João revela para sua comunidade e para seus leitores que a única luz ali presente é Jesus.

Agora podemos tomar o texto a partir das personagens Jesus e Pilatos: Jo 18, 28-42:

Jesus é apresentado como soberano, senhor de si, livre. Que não se deixa pegar de surpresa. Sua vida e existência não escapam de suas mãos. Ele não é vítima das situações. Prova disso é a sua atitude ainda no início da narrativa, ao identificar-se diante da polícia do templo. Apresenta-se como sendo ele mesmo “o procurado” (Jo 18,1-10). O evangelista quer mostrar aos discípulos leitores que é Jesus quem vai livremente doar sua vida e que ninguém tem poder sobre ela. A atitude de dar a vida é Dele. Ninguém a tira. Muito menos as circunstâncias injustas que lhe deram morte. Neste sentido, é este homem, Senhor e rei de si. Tudo o que realiza é por inteira e plena liberdade e gratuidade, movidas pela fidelidade ao projeto do Pai: seu amor-fiel.

O evangelista apresenta uma personagem confusa. Um camaleão. Um amedrontado Pilatos. Soma-se a isso a alternância dos cenários externos e internos que influenciam bastante sua personagem. Nesse vai-e-vem, o procurador romano vai mudando e assimilando as imagens de seus ambientes. Ao interno do palácio ocorre a alternância entre luz (externo) e trevas (interno). Na maneira como João dispõe a narrativa, o inquérito acontece ao interno do palácio, para revelar esta oposição típica de seu evangelho: luz / trevas. A intenção (ainda que através de sua ironia) é revelar Jesus, mesmo solitário e recluso no palácio, como Luz diante de Pilatos, envolvido em dúvidas e trevas.

O diálogo entre eles revela muito e é ponto alto da cena. O processo romano contra Jesus começa, conforme o evangelista nos relata. Mas não é qualquer processo. Na intenção dele está para começar o processo de Jesus contra o Mundo, representado pelo Império. João disse no prólogo do evangelho que “O mundo não o conheceu (Jesus), e os seus não O acolheram”. Jesus está diante do procurador romano, que o interroga com base naquilo que ouviu. “Tu és o rei dos judeus?” A resposta de Jesus soa desafiadora: “Estas dizendo isso por ti mesmo, ou outros te disseram isso de mim?” Jesus não responde nem que sim, nem que não. Ele deixa que o próprio Pilatos tome sua decisão e tire suas conclusões. Ao insistir na culpabilidade de Jesus, emerge, pois, uma declaração muito importante acerca de Jesus, de sua vida e obra. Ele responde: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui”. O que o Jesus joanino quer dizer com essa reposta?

Se faz necessário tomar o texto dos originais, em grego, para captar o sentido da resposta de Jesus, que se expressa literalmente assim: “o meu reino não vem deste mundo”. A realeza, a autonomia, autoridade, liberdade e gratuidade de Jesus não provém das realidades mundanas, das estruturas de poder, domínio, opressão. Vem do alto. A autoridade que ele exerce, só a faz porque é da vontade do Pai. Aderir ao reino de Jesus é aderir ao amor fiel de Deus Pai que neste Jesus encontra sua expressão e realização. Em tudo o que faz, é Ele palavra de Deus que liberta de toda escravidão, que ilumina e que restaura o mundo, enquanto realidade criada pelo Pai.

Mas neste diálogo emerge mais uma novidade muito profunda e marcante. Pensemos: Pela lógica do inquérito, Pilatos faz as vezes do juiz que interroga, questiona e apura os fatos para sentenciar. Entretanto, a partir das respostas eloquentes que Jesus dá, o evangelista aponta para uma revelação importante: o juiz não é Pilatos. No inquérito, quem assume a figura do juiz é Jesus, deixando para Pilatos o papel de réu. Mais uma vez, a finalidade é mostrar Jesus superior a realidade e a trama que o circundam, porque só quem possui autoridade sobre sua vida é o Pai. Porque este Abá não exige do seu Filho qualquer sacrifício de sangue, ou mesmo uma morte expiatória. Assim, o julgamento que começou é, na verdade, o julgamento do mundo, no qual Jesus é o juiz.

A morte de Cruz (19,28-37):

O ponto máximo da narrativa é a cena que se desenrola nestes versículos: a hora da glorificação de Jesus, através da Cruz, na qual o Pai revela todo o seu amor mediante a vida crucificada do Filho. Por isso, sempre que nos deparamos com as narrativas do acontecimento pascal de Cristo, devemos logo afastar qualquer ideia equivocada acerca da morte de Sua morte de Cruz. Deve-se perguntar, em primeiro lugar, o que não representa a morte de cruz, ou seja, o que ela não significa (nem pode significar mesmo, a ponte de se transformar ou, ainda, implodir, a imagem amorosa e misericordiosa de Deus como Pai; ora, a que Pai agrada a morte de um filho. Nem do filho culpado; muito menos a do inocente e justo.

A morte de cruz sofrida por Jesus não é castigo. Ela não foi da vontade e do agrado de Deus. Tampouco se pode admiti-la como parte de um plano predeterminado pelo Pai, como que se o filho tivesse que assumir a carne da história dos homens para padecer e os salvar. Estas ideias não podem mais estar no horizonte das respostas de qualquer pessoa de fé.

O que foi a morte de Jesus na cruz? Foi a consequência de toda a sua vida. Daquilo que ele, no decorrer de sua missão e obra decidiu-se por viver, enquanto projeto. Foi o preço pago pela sua fidelidade ao Deus que ensina a chamar de Pai. A cruz é a injustiça sofrida em vista da vida justa que Jesus viveu. Sem amor a cruz é delírio e morte. Com amor, a cruz se torna redenção e salvação.

Há uma cruz que se deve admirar e carregar: a daquele que fez com que outro não tenha nem carregue mais cruzes. A daquele que ajuda o outro a carregar a sua. A daquele que se mortifica para não mortificar o outro. A cruz daquele que sofre simplesmente porque Ama, até o fim.

Após um caminho longo, Jesus chega ao lugar da crucifixão. Depois de tomar o vinho azedo, Jesus exclama: “Tudo está consumado” (mesma expressão do v. 28), inclina a cabeça e “entrega o espírito”. Nestes versículos 28-30 ocorre duas vezes o verbo teléo, “consumar/levar ao fim” (vv. 28 e 30). Ele acena para toda a vida de Jesus levada à termo, que através de suas obras e Palavra refletem a vontade e o amor salvífico de Deus.

Mas também revela a superação dos sistemas antigos dos sacrifícios levítico-cultuais. João faz coincidir a morte de Jesus no calvário com o exato momento em que se imolavam os cordeiros no templo, por ocasião da festa da pascoa. Jesus supera, com o dom de sua vida em amor, os antigos sacrifícios e se torna, pois, o único mediador entre a humanidade e Deus. Não são mais a observância da Lei, nem das prescrições cultuais os meios necessários para se ter acesso a Deus, mas a humanidade, a vida e a obra de Jesus. Esta vida, Ele a entrega nas mãos do Pai.

O relato de hoje nos deixa diante de duas perguntas: 1) Com quais personagens me identifico? 2) Como tenho vivido minha existência cristã e meu discipulado? A chave e o modo para viver o discipulado é a forma da Paixão. Não existe discipulado que não seja perpassado pela Cruz. Mas Ela não será a última palavra.


Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu (Avaré-SP) / Arquidiocese de Botucatu - SP

quinta-feira, 6 de abril de 2023

QUINTA-FEIRA SANTA, DA CEIA DO SENHOR - Jo 13,1-15:

 


A Quinta-feira Santa da Ceia do Senhor, inicia o solene tríduo pascal, inserindo-nos nas celebrações do Mistério Pascal de Cristo. É a pascoa começando. Nesta noite santa, somos convidados a meditar nos gestos de Jesus na ceia com os seus, o que ele realizará na oferta da própria vida na Cruz. Ceia carregada de profecia e testemunho.

 

Profecia, porque ela se torna um gesto simbólico da entrega de Jesus mediante o gesto de lavar os pés dos seus. Testemunho, porque convida, interpela e questiona a conduta e a atitude do discípulo e da discípula, provocando-os a “seguirem o exemplo” do mestre e Senhor. O “fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24), alcança sua plenitude histórico-salvífica quando estreitamente vinculado ao “dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz” (Jo 13,15). Mais ainda: só conseguirá fazer a experiência com o Ressuscitado, aquele e aquela que conseguir entender o gesto profético de Jesus, o lava pés.   Isto posto, podemos meditar o texto desta noite santa retirado do Quarto Evangelho, Jo 13,1-15.

 

O leitor-discípulo é convidado, agora, neste capítulo 13, a tomar parte do Ensinamento Final de Jesus; chamado a entrar na dinâmica da sua Glória, através dos sinais realizados por Ele na primeira parte do evangelho Joanino, os quais preparam para esta Hora, a revelação da Glória de Deus em Jesus. Estes últimos ensinamentos constituem, ao interno do Quarto Evangelho, o bloco literário que contém o chamado Testamento Senhor (Jo 13 – 17). Trata-se de um discurso de despedida, o qual traz consigo o núcleo da mensagem do mestre.

 

Um testamento é o bem mais precioso deixado ou dado para quem se ama. Trata-se da expressão da última vontade de uma pessoa querida que, os destinatários, ao receberem, deverão empenhar-se por fazer. O que Jesus deixará para seus amigos constitui o coração de todo o seu ensinamento, isto é, o mandamento do amor, e a doação da própria vida. O testamento do Senhor inicia-se ao interno da Ceia. Os bens preciosos que ele transmitirá aos seus encontram-se sintonizados com ela. Mas, diferentemente dos outros evangelista, João não narra a instituição da eucaristia, o que não quer dizer que ela não tenha importância para ele e para sua comunidade (uma vez que ele já dedicou um capítulo inteiro a ela, Jo 6, o discurso sobre o pão da vida). O evangelista pretende ensinar para sua comunidade o nexo existente entre lava pés (serviço) e Ceia (eucaristia). Isso ficará melhor compreendido mais adiante.

 

João oferece um dado cronológico no início do capítulo: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). Não é sem motivo. Diferentemente da tradição sinótica (Mc, Mt e Lc), o evangelista situa a ceia de Jesus na véspera da solenidade pascal. De modo que a ceia pascal seja celebrada no dia seguinte (coincidentemente no Sábado, aquele ano). Por que? O evangelista não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas diferenciar para mostrar a superação dela: a páscoa celebrada por Jesus já não é mais a mesma do templo. A sua não exige ofertas e sacrifícios, pois será ele mesmo a se oferecer e doar-se.

 

Jesus, ao celebrar antes, supera e dá um novo sentido. Por isso, o evangelista não se refere à páscoa como festa dos Judeus, como em outras duas ocasiões de seu evangelho. Na Páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto que na de Jesus com sua comunidade, se celebra o triunfo da vida na forma do serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor; nessa, não há triunfo da morte sobre a vítima/oferta do sacrifício, há doação de vida por amor. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma páscoa subversiva; é essa que a comunidade cristã deve celebrar.

 

O v.1 inicia a sessão com uma solenidade ímpar. Anuncia a chegada da hora que vinha sendo preparada desde os primeiros sinais realizados por Jesus, e, que, agora, começa a ser levada a termo. É a hora de Jesus glorificar ao Pai, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. Esta forma solene com a qual João inicia o versículo primeiro, aponta para a finalidade da missão de Jesus: manifestar o amor do Pai até o fim para os seus, que estavam no mundo. A expressão “Amou-os até o fim” pretende indicar a plenitude e a intensidade do gesto de Jesus.

 

Jesus levanta-se da mesa. João narra a cena num ritmo bem pausado, descrevendo cada gesto do Senhor: “Jesus, sabendo que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos e que de Deus tinha saído e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido (v.3-5)”. Ao todo, são oito verbos que compões a cena. É uma técnica muito refinada do autor, de modo a prender a atenção do leitor/ouvinte do evangelho, a fim de que absorva e assimile a magnitude do gesto. 

 

Uma consideração importante acerca da atitude de levantar-se da mesa: na antiguidade anterior a Jesus, as refeições eram tomadas em mesas muito próximas do piso, colocando os comensais quase que deitados ou apoiados sobre um dos braços. Quase recostando-se uns nos outros. Esse costume foi assimilado e mantido na vida do povo de Israel. Acontece, que esta forma de se colocar à mesa era própria somente das pessoas livres e que possuíssem status social. Sentar-se à mesa era direito de poucos e de gente de prestígio e de possibilidades. É importante que o leitor/ouvinte do evangelho se coloque no realismo da cena. Imagine, o fato de Jesus ter se levantado durante uma refeição simplesmente deve ter gerado muitos questionamentos por parte de seus discípulos, principalmente devido ao lugar em que ele possivelmente estivesse sentado. Ao contrário do que se pode pensar (devido às obras de arte que assim retratam a ceia do Senhor), é muito possível que Jesus não estivesse ocupando o lugar central da mesa, e sim a extremidade, a “quina”, o que facilitaria realizar o gesto. Acontece, que este lugar ocupado por ele era o último. Era o posto que quase ninguém ocupava. Imagine-se o silêncio que deve ter pairado sobre os demais ao verem-no se levantar da mesa.

 

Jesus, após levantar-se, depôs o manto. Há uma imprecisão na tradução e é necessária a compreensão de alguns termos. Ao traduzir a palavra manto, Jerônimo pode ter se confundido com a palavra túnica. Manto, no grego, é “imátio”, e túnica, “imátia”. Então Jesus teria retirado também a túnica e não só o manto. Todavia, no texto joanino é a palavra imátia (túnica), que aparece. Claro, para poder tirar a túnica era preciso tirar o manto primeiro. Mas feita esta constatação, o leitor discípulo precisa confrontar-se com a forma na qual Jesus está: vestido como um escravo. Ao retirar o manto (imátio) e a túnica (imátia), ele ficou com a roupa mais inapropriada, surrada, sem acabamento que se usava por baixo daquelas outras, que recebia o nome de perisôma. Esta veste era própria do empregado, do escravo e dos noivos, na ocasião das núpcias. Mais uma vez, tomemos o realismo da cena e intenção da informação transmitida pelo evangelista.

Um gesto carregado de força de sentido: ao depor o manto e a vesta está, na verdade, despojando-se da imagem de mestre e de sua dignidade enquanto pessoa, pois eram estas características que as vestes ressaltavam. Cinge-se com uma toalha à cintura, ao redor da perisôma. Em seguida derrama água na bacia e começa a lavar os pés dos discípulos. Esta purificação, geralmente, era feita por um escravo, em relação aos patrões, pelos filhos para com os pais, ou pela esposa ao marido; e, numa demonstração de profunda estima por alguém, pelo próprio anfitrião. Todavia, continuava sendo um gesto de muita humilhação. Certos rabinos até orientavam escravos judeus a não realizarem este gesto para com seus patrões. O mestre não veste os paramentos sagrados dos sumos sacerdotes, mas os do serviço; não as alfaias da casta sacerdotal, mas o avental dos servos. Outro detalhe é que o gesto devia ser realizado antes da refeição. Era impróprio e incomum durante o banquete.

 

Chega a vez de Pedro. Desloquemos o olhar para esta personagem que emerge na narrativa. Ele é tratado pelo segundo nome. É consenso que, nas narrativas evangélicas, quando esta personagem é apresentada apenas pelo segundo nome é para indicar que ela não está agindo bem, tem dificuldades e resistências, e, sempre coloca-se em oposição a Jesus. Consciente da conotação humilhante daquele gesto, ele protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?”(v.6). Para si e seus companheiros, aquela atitude era inconcebível. E, de fato, o é para aqueles que ainda não conheceram em profundidade o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma, que, por hora, eles não sabem o significado daquele gesto (isto só acontecerá à luz do enaltecimento na cruz e mediante o dom do Espírito de Jesus Ressuscitado). Para aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar quando o superior se torna inferior! “Tu não me lavarás os pés, nunca!” (v.8), declara o discípulo. Mas Jesus responde, dizendo “que não terá parte com ele, caso não deixe lavar os pés” (v.8b). O que Pedro não quer aceitar e, demora a assimilar, é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão de que o mestre se faça servo; que o senhor se torne escravo. Impensável que um mestre, um rabino, um líder fizesse algo assim. Mas Jesus inverte as lógicas. Ele não veio para ser servido, mas para servir. Ele não veio para ser senhor da vida dos outros, mas para fazer-se servo da vida de todos. Ele não veio impor sua lei, mas para doar a sua vida.

 

Atentos: quando Pedro se recusa a ter os pés lavado por Jesus, ele está mostrando que ainda não entendeu nada  e se recusa a assimilar a forma da vida exemplar do mestre. Ainda pensa que é ele que deve levar o mundo nas mãos. Que tem que fazer tudo sozinho. Que é ele que tem que ser forte, e o Senhor lhe mostra que não é assim, pois é necessário ser primeiro lavado por Jesus, para poder lavar os pés dos outros.

 

Em termos joaninos, “não ter parte” com Jesus significa não participar da plenitude e inteireza de Sua vida. Ter parte com Jesus, significaria, por outro lado, ter em si a vida de Jesus, e torná-la existencialmente vivida de novo, através da vida do discípulo e da comunidade. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical. Se Pedro (e qualquer outro discípulo) não aceitar o gesto de Jesus, não participará do efeito da obra messiânica de Jesus. A profundidade de seu gesto reside no fato de que ele é símbolo e profecia da entrega / doação da própria vida. O gesto de lavar os pés acena para o que Ele realizará mais adiante: sua vida consumada na cruz.

 

O Jesus joanino, depois da incompreensão demonstrada por Pedro, volta à mesa, retoma sua condição de mestre e explica-lhes, então, o gesto. De fato, os discípulos reconhecem-no como Mestre e Senhor. Mas se Ele, nesta condição lhes lava os pés, devem também eles fazer a mesma coisa: lavar os pés uns dos outros, tornando-se escravos uns dos outros pelo amor fraterno. Aqui se encontra, pois, o nexo entre eucaristia e lava pés. O gesto profético que realiza Jesus é colocado durante a ceia pelo evangelista João. Isso é muito significativo. Mesmo não narrando as palavras sobre o pão e sobre o cálice, como fazem os sinóticos, o Quarto Evangelho se insere nesta lógica. A ceia, contém os gestos de comer do pão e beber do cálice. Jesus interpreta e identifica o sentido de sua vida e missão à semelhança do que acontece com o pão e o vinho: da mesma forma que o pão é partido, espedaçado, aniquilado, ao ser comido, e a uva, pisoteada aniquilada para produzir o vinho, sua carne (simbolizada pelo pão) e sua vida existencialmente histórica (vinho) terão o mesmo sentido. É, precisamente, neste contexto, que o gesto do lavar os pés encontra sua mesma força de significado. Por isso, não há “fazei isto em minha memória” (ceia do Senhor, com o Seu corpo e sangue) desconectado do “dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz” (lava pés). Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical.  Não há Eucaristia sem lava-pés!

 

O amor é sempre um caminho de descida, de humildade, de serviço. E é por isso que se faz caminho de grandeza. Ora, só pode se tornar servidor quem de fato compreendeu o que significou ser Senhor. Assim, para Jesus, ser Senhor não se opõe a ser servidor. Porque, seu poder e autoridade residem no servir. Quem lava os pés não impõe nada, não obriga a nada, não condena a nada. Simplesmente oferece sua presença, sua humildade, seu amor. Oferece a possibilidade de uma vida nova. O amor que o Senhor nos convida a viver é um amor que se encontra nos gestos mais simples, na capacidade de fazer o bem aos outros. Amando-os até o fim.

 

Pe. João Paulo Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu  / Arquidiocese de Botucatu – SP.


sábado, 1 de abril de 2023

DOMINGO DE RAMOS E DA PAIXÃO DO SENHOR - Mt 27,11-54:


 

A Igreja inicia a Semana Santa, a qual terá seu ponto alto com o Tríduo Pascal – centro e ápice da fé cristã – com a celebração do Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor. Neste domingo, os fiéis cristãos são interpelados através da liturgia, pelo tema da Paixão de Jesus. O padecimento do Mestre e Senhor é antecipado liturgicamente para visibilizar ao discípulo, caminho que o Cristo percorrerá, chegando à vergonha da cruz, mas na certeza da reviravolta da ressurreição. Soa como uma advertência: “é por aqui que o Senhor passará”.

A paixão do Senhor é um tema que precisa ser profunda e constantemente refletido. Ela não pode ser compreendida como sendo apenas horas de sofrimento após sua prisão, tortura, sofrimento, até chegar à morte ignominiosa da cruz. Jesus viveu apaixonadamente; viveu uma pura e intensa paixão no decurso de sua vida e missão. Por isso, é importante sempre recorrer ao significado das palavras e contemplar-lhes a significação. A saber, paixão vem do grego pathos, que, traduzida significa “sentir”. Ora, a paixão de Jesus é a sua vida marcada por uma força de sentir e de sentido. Toda ela foi um constante sentir orientada para uma direção (sentido): a fidelidade ao Pai ao anunciar o Seu Reinado.

A fidelidade ao Pai e o anúncio do Reino foi, durante toda a vida e missão de Jesus colocada em relação às pessoas. A elas, o Senhor revelou a face de Deus esquecida pela religião (e pelos religiosos de seu tempo), mostrando-lhes o sentido de uma vida pautada pelo amor, pelo serviço e pela entrega que o Pai através dele realiza. Em simples palavras, através de Sua vida e missão, Jesus revela o amor de Deus às pessoas, aos marginalizados, ao excluídos e aos pecadores. Mostra-lhes que o Pai é fiel à elas e, para elas, destina sua fidelidade, seu amor e sua salvação, abrindo-lhes uma nova modalidade na relação com o Deus de Israel.

O Reino ou Reinado do Deus que Jesus chama de Pai é um projeto alternativo à realidade na qual vive o ser humano. Ele, no decorrer de sua existência em paixão (com o sentir e com a força de sentido, orientação, direção), se encarregou de mostrar a todos a lógica, o esquema e a ética deste Reino, desta sociedade e realidade alternativa, pautadas pelo amor, pela fraternidade, pela igualdade e equidade, revelavam o agir soberano do Pai concretizando-se. Foi por causa desta Paixão, com toda sua força de sentido, que a vida deste Filho de Deus se deparou com o caminho do padecimento e da entrega voluntária da vida. Toda a vida existencialmente vivida de Jesus foi uma constante e salvífica paixão. Por isso, a cruz se torna consequência das opções, das ações e do sentido que o Senhor mesmo decidiu dar a sua vida, e não destino fatalista, predeterminação ou vontade divina (pois a um pai não lhe agrada a morte de nenhum filho seu). Assim, com toda a segurança se pode afirmar que Jesus morreu da forma como viveu.

A morte religiosa e politicamente maldita de Jesus, foi consequência de toda a sua existência marcada pela opção livre e enraizada nas causas do Pai, a quem foi fiel e obediente até às últimas consequências. Para não haver equívocos, tampouco interpretações superficiais, se faz necessário meditar/contemplar (refletir, como preferir) o significado destas duas causas. Jesus sofreu a morte digna de um maldito perante a Lei de Israel, pois morrer suspenso era declaração sumária de que era um transgressor dos preceitos, conforme Dt 22,22, e, por morrer desse modo, recebia o rótulo de maldito. Qual foi o motivo religioso de sua acusação? Falar contra o Templo, sede do poder religioso da elite sacerdotal de Jerusalém. A isto, acrescentaram as autoridades judaicas do Sinédrio uma falsa acusação de blasfêmia, por ter, hipoteticamente, chamado a si mesmo de filho de Deus. Já, o motivo político de sua morte, foi a forjada acusação, também por parte das lideranças de seu povo, de ser um pretenso rei. Roma, através de seu procurador fantoche, Pilatos, não deixaria passar impune uma acusação como esta, sob risco de sedição interna na Palestina, pois não poderia haver outro rei que não fosse Cesar.  Durante seu ministério na Galileia, houve conflitos doutrinais com os fariseus e mestres da Lei. Todavia, foi em Jerusalém que as disputas passaram do campo doutrinal para a esfera do poder. Contudo, diante deste cenário, a fidelidade, o amor e a liberdade falaram mais alto em Jesus. Ele, livre e decididamente segue a vida, tendo muito presente a eventualidade de um fim trágico.

As narrativas concernentes à paixão, morte e ressurreição de Jesus constituem o núcleo fundante da Fé eclesial. Ao redor delas é que a pregação apostólica se desenvolveu. O anúncio fundamental consistia na pregação acerca do “acontecido” com Jesus, isto é, seu mistério pascal: sua morte e ressurreição. Diante desta novidade do messias ressuscitado, as comunidades começaram a se questionar também sobre as causas de Sua morte, os motivos que conduziram a ela. Disso, resultam as catequeses narrativas, os evangelhos. Eles têm seu ponto de partida e núcleo fundante nas narrativas da paixão, morte e ressurreição do Senhor. Portanto, nestes dias que se sucederão seremos colocados diante dos textos fundantes da fé Cristã. A começar por hoje, onde somos colocados diante da narrativa da Paixão segundo Mateus (o Proprium da paixão em Mateus).

Os evangelistas são muito hábeis e unanimes ao mostrarem a liberdade e a voluntariedade do Senhor, diante da eventualidade da morte.  Para eles, em especial para Mateus, que é o evangelho proposto para a meditação eclesial neste domingo de ramos, Jesus não se permite ser pego de surpresa, tampouco se deixa ser um fantoche, muito menos vítima da situação. Ao contrário, é um homem livre, consciente de si e da realidade que o rodeia. Por isso, texto da narrativa da paixão segundo Mateus possui uma tônica absolutamente cristológica.

Após as considerações acima, somos convidados a tomar alguns pontos da narrativa mateana da Paixão de Jesus – três, precisamente – dada a extensão do texto litúrgico, que, mesmo adotando a forma breve (Mt 27,11-54), ainda é demasiado longo para uma interpretação completa. Haja visto que esta forma litúrgica breve ainda se encontra no grande bloco literário da paixão segundo Mateus, que começa em 26,14, que totalizam 128 versículos. Meditaremos a cena do processo romano contra Jesus (v.11), saltando para o v.38-44, onde temos a cena dos insultos dirigidos à Jesus (multidão, autoridades religiosas, e malfeitores), e, por fim, a manifestação divina que culmina na proclamação de fé, ao final do relato, feita pelos oficiais romanos (50-54). Estas três cenas ajudarão a fixar em nossa mente o modo através do qual Jesus decide-se por viver seu messianismo até o fim: a forma do servo e justo sofredor, reconhecido como Filho de Deus.

 

Processo romano, v.11:

“Jesus foi posto diante do governador, e este o interrogou: ‘Tu és o rei dos judeus?’ Jesus declarou: ‘É como dizes’”. A cena do interrogatório judaico foi omitida do texto litúrgico breve. Mas, diante do Sinédrio, Jesus foi falsamente acusado de blasfemo. Como aquele órgão máximo das autoridades judaicas não podia, naquele período do contexto da dominação romana sentenciar o culpado à pena de morte, decidem-se apelar para os dominadores. Levam o acusado para o procurador romano. Entra em cena Pilatos. Figura estranha. Cioso do poder. Não quer perder o prestigio diante do imperador. E, segundo Flavio Josefo (historiador judeu-romano do século II), já avisado de antemão por Roma que não seriam mais toleradas as revoltas naquela província da Palestina, fica assombrado com hipótese de uma revolução que lhe possa custar o mandato e a vida. Percebe o jogo das autoridades do Sinédrio e, por isso, trata Jesus com frieza e rapidez. Interroga-o somente pelo que ouviu falar a respeito. O Senhor, de sua parte, responde: “é como dizes”. Ao responder dessa maneira, Jesus coloca o procurador numa sutil saia justa. Através desta resposta, o Senhor não está confirmando a ideia da autoridade romana, mas afirmar que quem está dizendo isto são as autoridades judaicas e ele. Jesus está dizendo assim: “é você que está dizendo. Eu, de minha parte, nunca disse isso”. De fato, ao contrário, Jesus sempre procurou se afastar desta ideologia real, pois ela estava absolutamente contaminada pela imagem do messias guerreiro, rei, dominador. Imagem incompatível com quem só pregou a lógica do amor e do serviço. De sua parte, Jesus não tem mais nada a responder. Pilatos que tire suas conclusões. O discípulo-leitor do evangelho, que já está em contato com o sentido da vida do mestre e Senhor, que faça o mesmo.

O interrogatório continua. Jesus nada diz. Pilatos não encontra culpa, mas também não inocenta. Deixa-se levar. E põe-se a lavar as mãos. Prefere que a água escorra por entre os dedos ao invés de seu poder. A narrativa se desenvolve. Levam o prisioneiro para a tortura e zombaria. Colocam-no no caminho para o Golgota.

 

Os insultos: a última tentação (38-44):

Jesus é insultado por três vezes, por três grupos de pessoas diferentes: as pessoas que passavam por ali (multidões), os mestres da lei e os sacerdotes (os líderes religiosos) e, por fim, os malfeitores que eram crucificados com ele. Os insultos são ritmados por um refrão que se repete, “desça da cruz”, por parte da multidão e dos chefes religiosos do povo (v.40.42). Os insultos e as provocações para descer da cruz podem ser entendidas quando se retrocede para o capitulo quarto do evangelho mateano. Ali, o evangelista narrou o episódio das tentações sofridas por Jesus, no deserto, durante quarenta dias. Estas tentações tinham a intenção de seduzi-lo a um caminho oposto ao querer do Pai: um messianismo voltado somente para seu bem-estar, utilizado de seu poder e autoridade como Filho de Deus para vantagens próprias. Fazer com que Jesus tomasse o caminho do messianismo espetacular e inconsequente. Tira-lo da condição de Filho e faze-lo tomar o lugar do Pai. A estas tentações, Jesus permanece firme durante toda a sua vida e missão. 

Ainda mais agora. Estes insultos e provocações revelam-se, então, na última tentação pela qual o Senhor passa. O convite provocador a “descer da cruz”, é, na verdade, a reprodução da tentação de usar de sua condição e autoridade de ungido do Pai, em benefício próprio. Esta sedução volta pela última vez, no Golgota. A ela, o Senhor responde: “Eli, Eli, lamá sabactâni? que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Responde com um grito de confiança, e não de desespero e sofrimento, como pode sugerir a cena. Este grito é o salmo 21, a oração do justo que confia em Deus, mesmo diante da injustiça sofrida, do desespero e da angustia sentida. Não é atoa que o salmista conclui sua oração expressando sua confiança em Deus. Do mesmo modo, Jesus vence a última tentação exclamando sua confiança no Deus de Israel. Ele sabe e confia que o Pai está com ele ali. Definitivamente, nada pode tirar Jesus do caminho da fidelidade ao Pai. Não desce da cruz. Mas deposita-se nas mãos do Pai.


“Ele era mesmo Filho de Deus!”: identidade revelada e confirmada.

Dos versículos 50-54, ao redor de Jesus morto na cruz, Mateus compõe uma teofania, que culmina na proclamação por parte dos oficiais romanos. A manifestação divina se dá após a entrega que Jesus faz de seu espírito. Ocorre um terremoto em toda a cidade. No templo, a cortina/véu do santuário, que separava o templo do chamado Santo dos Santos, lugar em que somente o Sumo Sacerdote podia entrar, é rasgada. Os túmulos se abrem e os santos voltam a vida. Este tremor de terra, era, no A.T a manifestação divina que indicava que Deus se fazia presente naquele lugar e naquele acontecimento. Por exemplo, quando Moisés se encontrava com YHWH, no Sinai, havia este fenômeno. A literatura apocalíptica servia-se também do simbólico do terremoto para acenar o surgimento do novo tempo  estabelecido por Deus.

O evangelista se serviu do terremoto para transmitir uma mensagem importante para seus discípulos e sua comunidade: Deus se revela e se faz presente naquele homem fiel, que fora crucificado. Por isso, não há mais nenhum obstáculo ou separação que impeçam as pessoas de se relacionarem com Deus, pois a cortina da separação, simbolizada pelo véu do santuário do templo foi rasgada. Os verbos da frase estão na voz passiva, o que indica que o realizador da ação é o próprio Deus. 

Assim, o terremoto, enquanto fenômeno simbólico, indica a presença de Deus. Assim, Deus se faz presente definitivamente em Seu Cristo crucificado. E, a partir dele, começa uma nova história. Um novo tempo e uma nova ordem é, agora, estabelecida, e fica restabelecida, através de Jesus crucificado, a relação com o Pai. Onde Deus coloca sua presença, precisamente dali emerge e começa uma história absolutamente nova.

Diante disso, informa-nos Mateus, que “O oficial e os soldados que estavam com ele guardando Jesus, ao notarem o terremoto e tudo que havia acontecido, ficaram com muito medo e disseram: Ele era mesmo Filho de Deus!” (v.54). A revelação da identidade de Jesus se dá através dos soldados romanos. Ora, aos olhos do judaísmo da época e das comunidades cristãs às quais o evangelista escreve, aquelas pessoas eram pagãs. Eram de fora! Mas são estes, que, precisamente, reconhecem a vida de Jesus como a vida de Filho de Deus. O catequista bíblico quer revelar também o alcance da salvação que Deus realiza em Jesus: ela é universal, e, portanto, se estende a todos, não fazendo acepção a ninguém. No Crucificado, todos são abraçados pelo amor salvador e redentor de Deus. A vida e existência em paixão deste que foi crucificado é a forma da vida do Filho de Deus. 

É com este Jesus que somos convidados a iniciar a nossa caminhada. Qual será nossa escolha? Qual personagem tenho sido: tenho identificado minha vida com a forma da vida do Senhor? Ou tenho assimilado as atitudes de Pilatos e dos chefes religiosos, escondidos nas aparências e nas cortinas que impedem uma relação autêntica com Deus? Oxalá possamos nos identificar aos soldados, os quais souberam reconhecer o modo da existência de Jesus, o crucificado, como lugar da presença de Deus, e ponto de partida para uma nova história.

Ousemos assimilar a forma da vida do Filho de Deus.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.