A Igreja inicia a Semana Santa, a qual terá seu ponto alto com o Tríduo Pascal – centro e ápice da fé cristã – com a celebração do Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor. Neste domingo, os fiéis cristãos são interpelados através da liturgia, pelo tema da Paixão de Jesus. O padecimento do Mestre e Senhor é antecipado liturgicamente para visibilizar ao discípulo, caminho que o Cristo percorrerá, chegando à vergonha da cruz, mas na certeza da reviravolta da ressurreição. Soa como uma advertência: “é por aqui que o Senhor passará”.
A paixão do Senhor é um tema que precisa ser profunda e constantemente refletido. Ela não pode ser compreendida como sendo apenas horas de sofrimento após sua prisão, tortura, sofrimento, até chegar à morte ignominiosa da cruz. Jesus viveu apaixonadamente; viveu uma pura e intensa paixão no decurso de sua vida e missão. Por isso, é importante sempre recorrer ao significado das palavras e contemplar-lhes a significação. A saber, paixão vem do grego pathos, que, traduzida significa “sentir”. Ora, a paixão de Jesus é a sua vida marcada por uma força de sentir e de sentido. Toda ela foi um constante sentir orientada para uma direção (sentido): a fidelidade ao Pai ao anunciar o Seu Reinado.
A fidelidade ao Pai e o anúncio do Reino foi, durante toda a vida e missão de Jesus colocada em relação às pessoas. A elas, o Senhor revelou a face de Deus esquecida pela religião (e pelos religiosos de seu tempo), mostrando-lhes o sentido de uma vida pautada pelo amor, pelo serviço e pela entrega que o Pai através dele realiza. Em simples palavras, através de Sua vida e missão, Jesus revela o amor de Deus às pessoas, aos marginalizados, ao excluídos e aos pecadores. Mostra-lhes que o Pai é fiel à elas e, para elas, destina sua fidelidade, seu amor e sua salvação, abrindo-lhes uma nova modalidade na relação com o Deus de Israel.
O Reino ou Reinado do Deus que Jesus chama de Pai é um projeto alternativo à realidade na qual vive o ser humano. Ele, no decorrer de sua existência em paixão (com o sentir e com a força de sentido, orientação, direção), se encarregou de mostrar a todos a lógica, o esquema e a ética deste Reino, desta sociedade e realidade alternativa, pautadas pelo amor, pela fraternidade, pela igualdade e equidade, revelavam o agir soberano do Pai concretizando-se. Foi por causa desta Paixão, com toda sua força de sentido, que a vida deste Filho de Deus se deparou com o caminho do padecimento e da entrega voluntária da vida. Toda a vida existencialmente vivida de Jesus foi uma constante e salvífica paixão. Por isso, a cruz se torna consequência das opções, das ações e do sentido que o Senhor mesmo decidiu dar a sua vida, e não destino fatalista, predeterminação ou vontade divina (pois a um pai não lhe agrada a morte de nenhum filho seu). Assim, com toda a segurança se pode afirmar que Jesus morreu da forma como viveu.
A morte religiosa e politicamente maldita de Jesus, foi consequência de toda a sua existência marcada pela opção livre e enraizada nas causas do Pai, a quem foi fiel e obediente até às últimas consequências. Para não haver equívocos, tampouco interpretações superficiais, se faz necessário meditar/contemplar (refletir, como preferir) o significado destas duas causas. Jesus sofreu a morte digna de um maldito perante a Lei de Israel, pois morrer suspenso era declaração sumária de que era um transgressor dos preceitos, conforme Dt 22,22, e, por morrer desse modo, recebia o rótulo de maldito. Qual foi o motivo religioso de sua acusação? Falar contra o Templo, sede do poder religioso da elite sacerdotal de Jerusalém. A isto, acrescentaram as autoridades judaicas do Sinédrio uma falsa acusação de blasfêmia, por ter, hipoteticamente, chamado a si mesmo de filho de Deus. Já, o motivo político de sua morte, foi a forjada acusação, também por parte das lideranças de seu povo, de ser um pretenso rei. Roma, através de seu procurador fantoche, Pilatos, não deixaria passar impune uma acusação como esta, sob risco de sedição interna na Palestina, pois não poderia haver outro rei que não fosse Cesar. Durante seu ministério na Galileia, houve conflitos doutrinais com os fariseus e mestres da Lei. Todavia, foi em Jerusalém que as disputas passaram do campo doutrinal para a esfera do poder. Contudo, diante deste cenário, a fidelidade, o amor e a liberdade falaram mais alto em Jesus. Ele, livre e decididamente segue a vida, tendo muito presente a eventualidade de um fim trágico.
As narrativas concernentes à paixão, morte e ressurreição de Jesus constituem o núcleo fundante da Fé eclesial. Ao redor delas é que a pregação apostólica se desenvolveu. O anúncio fundamental consistia na pregação acerca do “acontecido” com Jesus, isto é, seu mistério pascal: sua morte e ressurreição. Diante desta novidade do messias ressuscitado, as comunidades começaram a se questionar também sobre as causas de Sua morte, os motivos que conduziram a ela. Disso, resultam as catequeses narrativas, os evangelhos. Eles têm seu ponto de partida e núcleo fundante nas narrativas da paixão, morte e ressurreição do Senhor. Portanto, nestes dias que se sucederão seremos colocados diante dos textos fundantes da fé Cristã. A começar por hoje, onde somos colocados diante da narrativa da Paixão segundo Mateus (o Proprium da paixão em Mateus).
Os evangelistas são muito hábeis e unanimes ao mostrarem a liberdade e a voluntariedade do Senhor, diante da eventualidade da morte. Para eles, em especial para Mateus, que é o evangelho proposto para a meditação eclesial neste domingo de ramos, Jesus não se permite ser pego de surpresa, tampouco se deixa ser um fantoche, muito menos vítima da situação. Ao contrário, é um homem livre, consciente de si e da realidade que o rodeia. Por isso, texto da narrativa da paixão segundo Mateus possui uma tônica absolutamente cristológica.
Após as considerações acima, somos
convidados a tomar alguns pontos da narrativa mateana da Paixão de Jesus –
três, precisamente – dada a extensão do texto litúrgico, que, mesmo adotando a
forma breve (Mt 27,11-54), ainda é demasiado longo para uma interpretação
completa. Haja visto que esta forma litúrgica breve ainda se encontra no grande
bloco literário da paixão segundo Mateus, que começa em 26,14, que totalizam
128 versículos. Meditaremos a cena do processo romano contra Jesus (v.11),
saltando para o v.38-44, onde temos a cena dos insultos dirigidos à Jesus (multidão,
autoridades religiosas, e malfeitores), e, por fim, a manifestação divina que
culmina na proclamação de fé, ao final do relato, feita pelos oficiais romanos
(50-54). Estas três cenas ajudarão a fixar em nossa mente o modo através do
qual Jesus decide-se por viver seu messianismo até o fim: a forma do servo e
justo sofredor, reconhecido como Filho de Deus.
Processo romano, v.11:
“Jesus foi posto diante do governador, e este o interrogou: ‘Tu és o rei dos judeus?’ Jesus declarou: ‘É como dizes’”. A cena do interrogatório judaico foi omitida do texto litúrgico breve. Mas, diante do Sinédrio, Jesus foi falsamente acusado de blasfemo. Como aquele órgão máximo das autoridades judaicas não podia, naquele período do contexto da dominação romana sentenciar o culpado à pena de morte, decidem-se apelar para os dominadores. Levam o acusado para o procurador romano. Entra em cena Pilatos. Figura estranha. Cioso do poder. Não quer perder o prestigio diante do imperador. E, segundo Flavio Josefo (historiador judeu-romano do século II), já avisado de antemão por Roma que não seriam mais toleradas as revoltas naquela província da Palestina, fica assombrado com hipótese de uma revolução que lhe possa custar o mandato e a vida. Percebe o jogo das autoridades do Sinédrio e, por isso, trata Jesus com frieza e rapidez. Interroga-o somente pelo que ouviu falar a respeito. O Senhor, de sua parte, responde: “é como dizes”. Ao responder dessa maneira, Jesus coloca o procurador numa sutil saia justa. Através desta resposta, o Senhor não está confirmando a ideia da autoridade romana, mas afirmar que quem está dizendo isto são as autoridades judaicas e ele. Jesus está dizendo assim: “é você que está dizendo. Eu, de minha parte, nunca disse isso”. De fato, ao contrário, Jesus sempre procurou se afastar desta ideologia real, pois ela estava absolutamente contaminada pela imagem do messias guerreiro, rei, dominador. Imagem incompatível com quem só pregou a lógica do amor e do serviço. De sua parte, Jesus não tem mais nada a responder. Pilatos que tire suas conclusões. O discípulo-leitor do evangelho, que já está em contato com o sentido da vida do mestre e Senhor, que faça o mesmo.
O interrogatório continua. Jesus nada diz.
Pilatos não encontra culpa, mas também não inocenta. Deixa-se levar. E põe-se a
lavar as mãos. Prefere que a água escorra por entre os dedos ao invés de seu
poder. A narrativa se desenvolve. Levam o prisioneiro para a tortura e
zombaria. Colocam-no no caminho para o Golgota.
Os insultos: a última tentação (38-44):
Jesus é insultado por três vezes, por três grupos de pessoas diferentes: as pessoas que passavam por ali (multidões), os mestres da lei e os sacerdotes (os líderes religiosos) e, por fim, os malfeitores que eram crucificados com ele. Os insultos são ritmados por um refrão que se repete, “desça da cruz”, por parte da multidão e dos chefes religiosos do povo (v.40.42). Os insultos e as provocações para descer da cruz podem ser entendidas quando se retrocede para o capitulo quarto do evangelho mateano. Ali, o evangelista narrou o episódio das tentações sofridas por Jesus, no deserto, durante quarenta dias. Estas tentações tinham a intenção de seduzi-lo a um caminho oposto ao querer do Pai: um messianismo voltado somente para seu bem-estar, utilizado de seu poder e autoridade como Filho de Deus para vantagens próprias. Fazer com que Jesus tomasse o caminho do messianismo espetacular e inconsequente. Tira-lo da condição de Filho e faze-lo tomar o lugar do Pai. A estas tentações, Jesus permanece firme durante toda a sua vida e missão.
Ainda mais agora. Estes insultos e provocações revelam-se, então, na última tentação pela qual o Senhor passa. O convite provocador a “descer da cruz”, é, na verdade, a reprodução da tentação de usar de sua condição e autoridade de ungido do Pai, em benefício próprio. Esta sedução volta pela última vez, no Golgota. A ela, o Senhor responde: “Eli, Eli, lamá sabactâni? que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Responde com um grito de confiança, e não de desespero e sofrimento, como pode sugerir a cena. Este grito é o salmo 21, a oração do justo que confia em Deus, mesmo diante da injustiça sofrida, do desespero e da angustia sentida. Não é atoa que o salmista conclui sua oração expressando sua confiança em Deus. Do mesmo modo, Jesus vence a última tentação exclamando sua confiança no Deus de Israel. Ele sabe e confia que o Pai está com ele ali. Definitivamente, nada pode tirar Jesus do caminho da fidelidade ao Pai. Não desce da cruz. Mas deposita-se nas mãos do Pai.
“Ele era mesmo Filho de Deus!”: identidade revelada e confirmada.
Dos versículos 50-54, ao redor de Jesus morto na cruz, Mateus compõe uma teofania, que culmina na proclamação por parte dos oficiais romanos. A manifestação divina se dá após a entrega que Jesus faz de seu espírito. Ocorre um terremoto em toda a cidade. No templo, a cortina/véu do santuário, que separava o templo do chamado Santo dos Santos, lugar em que somente o Sumo Sacerdote podia entrar, é rasgada. Os túmulos se abrem e os santos voltam a vida. Este tremor de terra, era, no A.T a manifestação divina que indicava que Deus se fazia presente naquele lugar e naquele acontecimento. Por exemplo, quando Moisés se encontrava com YHWH, no Sinai, havia este fenômeno. A literatura apocalíptica servia-se também do simbólico do terremoto para acenar o surgimento do novo tempo estabelecido por Deus.
O evangelista se serviu do terremoto para transmitir uma mensagem importante para seus discípulos e sua comunidade: Deus se revela e se faz presente naquele homem fiel, que fora crucificado. Por isso, não há mais nenhum obstáculo ou separação que impeçam as pessoas de se relacionarem com Deus, pois a cortina da separação, simbolizada pelo véu do santuário do templo foi rasgada. Os verbos da frase estão na voz passiva, o que indica que o realizador da ação é o próprio Deus.
Assim, o terremoto, enquanto fenômeno simbólico, indica a presença de Deus. Assim, Deus se faz presente definitivamente em Seu Cristo crucificado. E, a partir dele, começa uma nova história. Um novo tempo e uma nova ordem é, agora, estabelecida, e fica restabelecida, através de Jesus crucificado, a relação com o Pai. Onde Deus coloca sua presença, precisamente dali emerge e começa uma história absolutamente nova.
Diante disso, informa-nos Mateus, que “O oficial e os soldados que estavam com ele guardando Jesus, ao notarem o terremoto e tudo que havia acontecido, ficaram com muito medo e disseram: Ele era mesmo Filho de Deus!” (v.54). A revelação da identidade de Jesus se dá através dos soldados romanos. Ora, aos olhos do judaísmo da época e das comunidades cristãs às quais o evangelista escreve, aquelas pessoas eram pagãs. Eram de fora! Mas são estes, que, precisamente, reconhecem a vida de Jesus como a vida de Filho de Deus. O catequista bíblico quer revelar também o alcance da salvação que Deus realiza em Jesus: ela é universal, e, portanto, se estende a todos, não fazendo acepção a ninguém. No Crucificado, todos são abraçados pelo amor salvador e redentor de Deus. A vida e existência em paixão deste que foi crucificado é a forma da vida do Filho de Deus.
É com este Jesus que somos convidados a
iniciar a nossa caminhada. Qual será nossa escolha? Qual personagem tenho sido:
tenho identificado minha vida com a forma da vida do Senhor? Ou tenho assimilado
as atitudes de Pilatos e dos chefes religiosos, escondidos nas aparências e nas
cortinas que impedem uma relação autêntica com Deus? Oxalá possamos nos identificar
aos soldados, os quais souberam reconhecer o modo da existência de Jesus, o
crucificado, como lugar da presença de Deus, e ponto de partida para uma nova
história.
Ousemos assimilar a forma da vida do Filho de Deus.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu,
Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário