quinta-feira, 6 de abril de 2023

QUINTA-FEIRA SANTA, DA CEIA DO SENHOR - Jo 13,1-15:

 


A Quinta-feira Santa da Ceia do Senhor, inicia o solene tríduo pascal, inserindo-nos nas celebrações do Mistério Pascal de Cristo. É a pascoa começando. Nesta noite santa, somos convidados a meditar nos gestos de Jesus na ceia com os seus, o que ele realizará na oferta da própria vida na Cruz. Ceia carregada de profecia e testemunho.

 

Profecia, porque ela se torna um gesto simbólico da entrega de Jesus mediante o gesto de lavar os pés dos seus. Testemunho, porque convida, interpela e questiona a conduta e a atitude do discípulo e da discípula, provocando-os a “seguirem o exemplo” do mestre e Senhor. O “fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24), alcança sua plenitude histórico-salvífica quando estreitamente vinculado ao “dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz” (Jo 13,15). Mais ainda: só conseguirá fazer a experiência com o Ressuscitado, aquele e aquela que conseguir entender o gesto profético de Jesus, o lava pés.   Isto posto, podemos meditar o texto desta noite santa retirado do Quarto Evangelho, Jo 13,1-15.

 

O leitor-discípulo é convidado, agora, neste capítulo 13, a tomar parte do Ensinamento Final de Jesus; chamado a entrar na dinâmica da sua Glória, através dos sinais realizados por Ele na primeira parte do evangelho Joanino, os quais preparam para esta Hora, a revelação da Glória de Deus em Jesus. Estes últimos ensinamentos constituem, ao interno do Quarto Evangelho, o bloco literário que contém o chamado Testamento Senhor (Jo 13 – 17). Trata-se de um discurso de despedida, o qual traz consigo o núcleo da mensagem do mestre.

 

Um testamento é o bem mais precioso deixado ou dado para quem se ama. Trata-se da expressão da última vontade de uma pessoa querida que, os destinatários, ao receberem, deverão empenhar-se por fazer. O que Jesus deixará para seus amigos constitui o coração de todo o seu ensinamento, isto é, o mandamento do amor, e a doação da própria vida. O testamento do Senhor inicia-se ao interno da Ceia. Os bens preciosos que ele transmitirá aos seus encontram-se sintonizados com ela. Mas, diferentemente dos outros evangelista, João não narra a instituição da eucaristia, o que não quer dizer que ela não tenha importância para ele e para sua comunidade (uma vez que ele já dedicou um capítulo inteiro a ela, Jo 6, o discurso sobre o pão da vida). O evangelista pretende ensinar para sua comunidade o nexo existente entre lava pés (serviço) e Ceia (eucaristia). Isso ficará melhor compreendido mais adiante.

 

João oferece um dado cronológico no início do capítulo: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). Não é sem motivo. Diferentemente da tradição sinótica (Mc, Mt e Lc), o evangelista situa a ceia de Jesus na véspera da solenidade pascal. De modo que a ceia pascal seja celebrada no dia seguinte (coincidentemente no Sábado, aquele ano). Por que? O evangelista não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas diferenciar para mostrar a superação dela: a páscoa celebrada por Jesus já não é mais a mesma do templo. A sua não exige ofertas e sacrifícios, pois será ele mesmo a se oferecer e doar-se.

 

Jesus, ao celebrar antes, supera e dá um novo sentido. Por isso, o evangelista não se refere à páscoa como festa dos Judeus, como em outras duas ocasiões de seu evangelho. Na Páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto que na de Jesus com sua comunidade, se celebra o triunfo da vida na forma do serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor; nessa, não há triunfo da morte sobre a vítima/oferta do sacrifício, há doação de vida por amor. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma páscoa subversiva; é essa que a comunidade cristã deve celebrar.

 

O v.1 inicia a sessão com uma solenidade ímpar. Anuncia a chegada da hora que vinha sendo preparada desde os primeiros sinais realizados por Jesus, e, que, agora, começa a ser levada a termo. É a hora de Jesus glorificar ao Pai, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. Esta forma solene com a qual João inicia o versículo primeiro, aponta para a finalidade da missão de Jesus: manifestar o amor do Pai até o fim para os seus, que estavam no mundo. A expressão “Amou-os até o fim” pretende indicar a plenitude e a intensidade do gesto de Jesus.

 

Jesus levanta-se da mesa. João narra a cena num ritmo bem pausado, descrevendo cada gesto do Senhor: “Jesus, sabendo que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos e que de Deus tinha saído e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido (v.3-5)”. Ao todo, são oito verbos que compões a cena. É uma técnica muito refinada do autor, de modo a prender a atenção do leitor/ouvinte do evangelho, a fim de que absorva e assimile a magnitude do gesto. 

 

Uma consideração importante acerca da atitude de levantar-se da mesa: na antiguidade anterior a Jesus, as refeições eram tomadas em mesas muito próximas do piso, colocando os comensais quase que deitados ou apoiados sobre um dos braços. Quase recostando-se uns nos outros. Esse costume foi assimilado e mantido na vida do povo de Israel. Acontece, que esta forma de se colocar à mesa era própria somente das pessoas livres e que possuíssem status social. Sentar-se à mesa era direito de poucos e de gente de prestígio e de possibilidades. É importante que o leitor/ouvinte do evangelho se coloque no realismo da cena. Imagine, o fato de Jesus ter se levantado durante uma refeição simplesmente deve ter gerado muitos questionamentos por parte de seus discípulos, principalmente devido ao lugar em que ele possivelmente estivesse sentado. Ao contrário do que se pode pensar (devido às obras de arte que assim retratam a ceia do Senhor), é muito possível que Jesus não estivesse ocupando o lugar central da mesa, e sim a extremidade, a “quina”, o que facilitaria realizar o gesto. Acontece, que este lugar ocupado por ele era o último. Era o posto que quase ninguém ocupava. Imagine-se o silêncio que deve ter pairado sobre os demais ao verem-no se levantar da mesa.

 

Jesus, após levantar-se, depôs o manto. Há uma imprecisão na tradução e é necessária a compreensão de alguns termos. Ao traduzir a palavra manto, Jerônimo pode ter se confundido com a palavra túnica. Manto, no grego, é “imátio”, e túnica, “imátia”. Então Jesus teria retirado também a túnica e não só o manto. Todavia, no texto joanino é a palavra imátia (túnica), que aparece. Claro, para poder tirar a túnica era preciso tirar o manto primeiro. Mas feita esta constatação, o leitor discípulo precisa confrontar-se com a forma na qual Jesus está: vestido como um escravo. Ao retirar o manto (imátio) e a túnica (imátia), ele ficou com a roupa mais inapropriada, surrada, sem acabamento que se usava por baixo daquelas outras, que recebia o nome de perisôma. Esta veste era própria do empregado, do escravo e dos noivos, na ocasião das núpcias. Mais uma vez, tomemos o realismo da cena e intenção da informação transmitida pelo evangelista.

Um gesto carregado de força de sentido: ao depor o manto e a vesta está, na verdade, despojando-se da imagem de mestre e de sua dignidade enquanto pessoa, pois eram estas características que as vestes ressaltavam. Cinge-se com uma toalha à cintura, ao redor da perisôma. Em seguida derrama água na bacia e começa a lavar os pés dos discípulos. Esta purificação, geralmente, era feita por um escravo, em relação aos patrões, pelos filhos para com os pais, ou pela esposa ao marido; e, numa demonstração de profunda estima por alguém, pelo próprio anfitrião. Todavia, continuava sendo um gesto de muita humilhação. Certos rabinos até orientavam escravos judeus a não realizarem este gesto para com seus patrões. O mestre não veste os paramentos sagrados dos sumos sacerdotes, mas os do serviço; não as alfaias da casta sacerdotal, mas o avental dos servos. Outro detalhe é que o gesto devia ser realizado antes da refeição. Era impróprio e incomum durante o banquete.

 

Chega a vez de Pedro. Desloquemos o olhar para esta personagem que emerge na narrativa. Ele é tratado pelo segundo nome. É consenso que, nas narrativas evangélicas, quando esta personagem é apresentada apenas pelo segundo nome é para indicar que ela não está agindo bem, tem dificuldades e resistências, e, sempre coloca-se em oposição a Jesus. Consciente da conotação humilhante daquele gesto, ele protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?”(v.6). Para si e seus companheiros, aquela atitude era inconcebível. E, de fato, o é para aqueles que ainda não conheceram em profundidade o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma, que, por hora, eles não sabem o significado daquele gesto (isto só acontecerá à luz do enaltecimento na cruz e mediante o dom do Espírito de Jesus Ressuscitado). Para aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar quando o superior se torna inferior! “Tu não me lavarás os pés, nunca!” (v.8), declara o discípulo. Mas Jesus responde, dizendo “que não terá parte com ele, caso não deixe lavar os pés” (v.8b). O que Pedro não quer aceitar e, demora a assimilar, é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão de que o mestre se faça servo; que o senhor se torne escravo. Impensável que um mestre, um rabino, um líder fizesse algo assim. Mas Jesus inverte as lógicas. Ele não veio para ser servido, mas para servir. Ele não veio para ser senhor da vida dos outros, mas para fazer-se servo da vida de todos. Ele não veio impor sua lei, mas para doar a sua vida.

 

Atentos: quando Pedro se recusa a ter os pés lavado por Jesus, ele está mostrando que ainda não entendeu nada  e se recusa a assimilar a forma da vida exemplar do mestre. Ainda pensa que é ele que deve levar o mundo nas mãos. Que tem que fazer tudo sozinho. Que é ele que tem que ser forte, e o Senhor lhe mostra que não é assim, pois é necessário ser primeiro lavado por Jesus, para poder lavar os pés dos outros.

 

Em termos joaninos, “não ter parte” com Jesus significa não participar da plenitude e inteireza de Sua vida. Ter parte com Jesus, significaria, por outro lado, ter em si a vida de Jesus, e torná-la existencialmente vivida de novo, através da vida do discípulo e da comunidade. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical. Se Pedro (e qualquer outro discípulo) não aceitar o gesto de Jesus, não participará do efeito da obra messiânica de Jesus. A profundidade de seu gesto reside no fato de que ele é símbolo e profecia da entrega / doação da própria vida. O gesto de lavar os pés acena para o que Ele realizará mais adiante: sua vida consumada na cruz.

 

O Jesus joanino, depois da incompreensão demonstrada por Pedro, volta à mesa, retoma sua condição de mestre e explica-lhes, então, o gesto. De fato, os discípulos reconhecem-no como Mestre e Senhor. Mas se Ele, nesta condição lhes lava os pés, devem também eles fazer a mesma coisa: lavar os pés uns dos outros, tornando-se escravos uns dos outros pelo amor fraterno. Aqui se encontra, pois, o nexo entre eucaristia e lava pés. O gesto profético que realiza Jesus é colocado durante a ceia pelo evangelista João. Isso é muito significativo. Mesmo não narrando as palavras sobre o pão e sobre o cálice, como fazem os sinóticos, o Quarto Evangelho se insere nesta lógica. A ceia, contém os gestos de comer do pão e beber do cálice. Jesus interpreta e identifica o sentido de sua vida e missão à semelhança do que acontece com o pão e o vinho: da mesma forma que o pão é partido, espedaçado, aniquilado, ao ser comido, e a uva, pisoteada aniquilada para produzir o vinho, sua carne (simbolizada pelo pão) e sua vida existencialmente histórica (vinho) terão o mesmo sentido. É, precisamente, neste contexto, que o gesto do lavar os pés encontra sua mesma força de significado. Por isso, não há “fazei isto em minha memória” (ceia do Senhor, com o Seu corpo e sangue) desconectado do “dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz” (lava pés). Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical.  Não há Eucaristia sem lava-pés!

 

O amor é sempre um caminho de descida, de humildade, de serviço. E é por isso que se faz caminho de grandeza. Ora, só pode se tornar servidor quem de fato compreendeu o que significou ser Senhor. Assim, para Jesus, ser Senhor não se opõe a ser servidor. Porque, seu poder e autoridade residem no servir. Quem lava os pés não impõe nada, não obriga a nada, não condena a nada. Simplesmente oferece sua presença, sua humildade, seu amor. Oferece a possibilidade de uma vida nova. O amor que o Senhor nos convida a viver é um amor que se encontra nos gestos mais simples, na capacidade de fazer o bem aos outros. Amando-os até o fim.

 

Pe. João Paulo Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu  / Arquidiocese de Botucatu – SP.


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