sábado, 25 de março de 2023

V DOMINGO DA QUARESMA - Jo 11,1-45:

 


A liturgia deste quinto domingo da Quaresma, apresenta-nos o capítulo onze do Evangelho segundo João, o qual relata a reanimação de Lázaro. Esta narrativa carrega consigo o último sinal realizado por Jesus ao interno da catequese joanina. O fiel leitor ainda se situa no livro dos sinais (Jo 1,18 – 12,51), os quais preparam para a Hora da Glória (Jo 13 – 20), e tratam, através de seu sentido simbólico, de apontar e revelar a identidade do Senhor.

O relato da reanimação de Lázaro foi inserido entre as ameaças de morte a Jesus por parte dos fariseus (que o evangelista chama de “os judeus”), após o episódio de Betesda (Jo 5), da multiplicação dos pães (Jo 6, o discurso do pão da vida), e, posterior ao sinal da cura do cego de nascença, em Jo 9, que resulta na alegoria do pastor ideal, em Jo 10,38. Todo este panorama narrativo está eivado de crises, mal-entendidos, polêmicas e muita ira por parte das autoridades judaicas em relação à Jesus. Por isso, imediatamente a realização do sinal de Lázaro (Jo 11,46-54), as autoridades se põem a tramar descaradamente a morte do mestre. Uma fina ironia emerge deste complô: na iminência da sua morte, Jesus responde com o dom da vida. É a mensagem que o relato pretende transmitir.

Convém recordar que, o sinal narrado não trata propriamente de uma ressurreição, mas de uma “reanimação”. A ressurreição é a passagem da morte para uma vida definitiva e plena, graças à ressurreição de Cristo. A narrativa joanina relata a reanimação de um corpo, já em estado de decomposição (a nota cronológica “quatro dias após a morte”, indica também esta realidade biológica), que foi recuperado. Todavia, continuava corruptível. O que Jesus faz não é apenas prolongar os dias de Lázaro, mas, através deste sinal extraordinário, revelar que a vida plena se encontra definitivamente Nele. Por isso, o discípulo-leitor não pode ficar preso na superfície do gesto profético e simbólico que o sinal representa. Deve ir além. Mirar a ressurreição do Senhor.

No capítulo onze, pela terceira vez, Jesus faz uso do nome divino “Eu Sou (hbr. YHWH)” para fazer uma auto-revelação. A primeira aconteceu após o sinal do Pão, em Jo 6 (“Eu sou o Pão da vida”). Na narrativa da cura do cego de nascença, ele se declara como luz do mundo (“Eu sou a luz do mundo”). E neste relato, pela terceira vez, João emprega para Jesus o atributo divino, “Eu sou a ressurreição e a vida...” Este dito se conecta com o capítulo anterior, Jo 10, onde o Senhor havia dito “Eu lhes dou a vida eterna e ninguém será tirado de minhas mãos”. Agora, neste capítulo, o evangelista mostra qual será o destino de quem se encontra nas mãos do Senhor, que se confiou e acreditou Nele.

Agora se pode mergulhar no horizonte da narrativa. Dada a extensão do relato, se fará necessário, mais uma vez, pinçar alguns versículos que funcionarão como chave de leitura para a interpretação do texto. O autor situa a cena: “Havia um doente, Lázaro, de Betânia, povoado de Maria e de sua irmã Marta” (v. 1). O evangelista apresenta Betânia (lit. “casa da aflição”), como o espaço de uma comunidade cristã ideal, onde a fraternidade, de fato, reinava. As personagens são apresentadas como irmãos. Não há maior e menor entre eles; não há hierarquia entre aqueles que a compõem. Uma comunidade ideal. Todavia, ainda presa à mentalidade equivocada, resistente e tradicionalista. Recorde-se, que todas as vezes em que o termo povoado é citado nos textos bíblicos está sempre carregado deste aspecto negativo: rigorismo, mentalidade fechada e ultrapassada; resistência e oposição.

O adjetivo “amado” faz alusão ao discípulo amado: este, não é um personagem identificável, como muito se pensou, chegando a identificá-lo com o próprio evangelista João, o que seria um equívoco. Ele é símbolo para todo aquele que assumiu o propósito, a vida, a missão e a obra realizada por Jesus como programa para sua vida. É, portanto, imagem da comunidade que adere a Jesus e seu projeto. Lázaro pode ser contado entre estes.

No v.4, Jesus, informado sobre a enfermidade de Lázaro, responde que essa enfermidade é ocasião para a Glória de Deus. Este versículo faz memória do que fora dito em Jo 9,3, quando se referia do mesmo modo ao cego de nascença e sua enfermidade. O catequista bíblico relembra seus leitores dos milagres que Moisés realizou diante do povo, no Livro do Êxodo. Estes eram sinais da manifestação da Glória de Deus.  No AT, a Glória de Deus significava sua presença no meio do povo. O que o evangelista quer ensinar para sua comunidade é o seguinte: em Jesus de Nazaré, Deus está presente. Sua vida, missão e obra, através dos sinais que opera revelam a presença de Deus, agindo nele. O que o Senhor realizará, para o bem dos discípulos (ocasião favorável), será um sinal que atesta o Pai presente Nele.

Demos um salto na narrativa, e tomemos o versículo 17: “Quando Jesus chegou, encontrou Lázaro sepultado havia quatro dias”. Esta informação é importante, porque revela a ideia da impossibilidade de vida. Na Palestina, os rituais funerários aconteciam no mesmo dia da morte, devido às condições climáticas. Pensava-se, na cultura da sociedade de Jesus, que após este dia, o espírito deixava definitivamente o corpo e descia, definitivamente para o lugar chamado Sheol, a mansão dos mortos (a qual era, conforme a mentalidade, uma caverna subterrânea. Interessante é que o sinal se realiza neste quarto dia. Se Jesus tivesse atendido o chamado, vindo antes do terceiro dia, operado o sinal, a “glória de Deus não seria manifestada” aos olhos daquela gente.

No v.19, o evangelista informa que muitos judeus (devido à proximidade de Jerusalém) tinham vindo para Betânia consolar Marta e Maria. A primeira é mais agitada que a outra. E é ela quem toma a atitude e vai encontrar a Jesus nas portas da cidade. A morte gerava desespero e medo. Curioso, é o fato de que os Judeus (metáfora para os chefes religiosos do povo) se dirigiram à Betânia para consolar aquelas duas irmãs, mas na verdade, para falar de um Deus que ressuscita os mortos. Mas Jesus as revelará o Deus que dá a vida. Por isso, o evangelista informa que o Senhor não entra no povoado, tampouco na casa da família de Betânia. O catequista quer ensinar que Ele não era conivente com essa mentalidade. Somente rompendo com antigas estruturas e mentalidades de morte e obscurantismo se torna possível vivenciar o triunfo da vida: de fora do povoado, Jesus chama as irmãs a saírem.

No v.21, Marta, reprova a Jesus: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido. Mas mesmo assim, eu sei que o que pedires a Deus, ele to concederá”. Haviam avisado a Jesus de que seu amigo, Lázaro, estava doente. Jesus, por sua vez, nem se moveu. Então a personagem Marta expressa toda a sua reprovação. Ora, pensemos: na expectativa de Marta estava a possibilidade de que o Senhor realizasse um gesto poderoso em relação ao irmão defunto, amado pelo mestre. Como que Ele, que havia curado o filho do funcionário de Herodes, um estranho; reabilitado a vida de um enfermo na fonte de Betesda, também estranho e anônimo; feito lama (recriou) os olhos de um cego nascença desconhecido, poderia tratar dessa forma um amigo? O verbo “saber” é característico desta personagem. Por isso ela sugere que Jesus peça ao Pai que faça alguma coisa.

Aqui, se faz necessário adentrar um pouco na fineza da redação de João, que é um verdadeiro teólogo e mestre da fé para sua comunidade. Ele usa dois verbos diferentes. O verbo “pedir”, aplicado à Marta. Ele expressa a exigência de um inferior ao seu superior. Enquanto que, para expressar uma necessidade entre iguais, se utiliza o verbo “perguntar”. Ora, ela diz a Jesus qualquer coisa que acene para uma pergunta deste ao pai. Mas utiliza o verbo pedir. O que expressa a compreensão dela acerca de Jesus: um mediador, apenas. Ela não entendeu que Jesus e o Pai são um, ou que as obras do Filho são as obras de Deus. Deseja tão somente uma intervenção que prolongue a vida do irmão. A personagem acredita no Deus que ressuscita os mortos. Mas o Deus e Pai de Jesus é o Deus vivente, e, portanto, dos vivos e não dos mortos. Um Deus que não ressuscita os mortos, mas que doa aos vivos uma vida capaz de superar a realidade da morte.

Jesus muda o sentido da morte e da vida: Respondeu-lhe Jesus: “Teu irmão ressuscitará (v.23)”. Ele não responde Marta como se desse a entender “eu o ressuscitarei teu irmão”, mas, “Teu irmão ressuscitará”. A ressurreição do irmão dela não é uma intervenção miraculosa de Jesus, mas simplesmente o efeito da persistência da vida definitiva que é comunicada pelo Espírito de Jesus. Será o irmão dela a ressuscitar. Nem mesmo Deus o ressuscita. Atenção: estamos no horizonte da narração. Por isso, é claro que já se sabe que a personagem fora já revivificada. João não narra esse fato, porque Jesus ainda não enviou o Espírito Santo, de acordo com a cronologia do relato. O fará na Hora da Cruz e após ressurreição, de modo a ensinar aos discípulos que a morte não interrompe a vida.

Marta não gosta da resposta de Jesus, e retruca expressando a mentalidade da época (v.24): “Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia”. Lembra o Livro de Daniel, o qual menciona, pela primeira vez, a ressurreição nos últimos tempos. Pensamento este, presente na cabeça dos fariseus. Ela nada mais faz que reproduzir esta concepção. O versículo mostra uma abertura progressiva da fé da personagem acerca da ressurreição, que necessita ainda ser ressignificada.

Então, no v.25, Jesus, solenemente declara: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá”. João recorda as palavras do Senhor, utilizando uma fórmula de revelação, que alude ao nome divino “Eu Sou (YHWH)”. Emerge também aqui o tema da Escatologia presente, muito cara aos seus escritos e à sua teologia. Ele pretende afirmar para a sua comunidade que a ressurreição esperada para o fim dos tempos chegou! Está presente onde Jesus está. Ele é a novidade da vida do âmbito de Deus, agora presente Nele, definitiva e plenamente! 

Jesus continua no v.26, “E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais. Crês isto?” Aqueles, que durante a vida e a existência acreditaram e aderiram a Jesus, tem a oportunidade de experimentar desta mesma existência e vida qualitativamente distinta, no aqui e no agora, que pertence ao Pai, e que Jesus pode doar. Fazem a experiência de viverem já, no agora, uma vida sob cores e tons de eternidade; dão um salto qualitativo para a vida divina; e a fé é o que abre espaço para este tempo pleno. Esta qualidade de vida se faz presente através do dom que Deus oferece em Jesus. Marta faz, então, a sua profissão de fé, “Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Messias, o Filho de Deus,

que devia vir ao mundo"( v.27). Então, ela dá o passo da fé. Faz uma profissão de Fé, reconhecendo que Ele pode administrar aquilo que Deus dá. É através deste reconhecimento de Marta, símbolo da comunidade, que se abre espaço para um dom infinito que Deus pode dar somente em Jesus. Mas, para isso, é necessário dar passos importantes, como renunciar a certas mentalidades ainda existentes.  Com sua profissão de fé, ela sintetiza, assim, os títulos messiânicos da cristologia do Quarto Evangelho: Cristo e Filho de Deus. Significa que ela, bem como os discípulos de todos os tempos e lugares, progressivamente crê que Jesus é o messias, vindo na qualidade de Filho de Deus.

Os vv.33-36 desenvolvem-se ao redor das sensações vivenciada por Jesus. O Jesus da cristologia dos evangelhos e, principalmente, do Quarto Evangelho é um homem autêntico. Ele chora. Não motivado pela frustração ou pelos limites inerentes à morte. Não se trata de um rito funerário, comum entre as irmãs dos defuntos, mas uma expressão do amor que tinha aos três amigos. É a única vez que se menciona dessa maneira que Ele chora. Esta comoção do Senhor é, na verdade, uma indignação profética, frente à rejeição do projeto de Deus e à dúvida em relação ao Seu agir.

Dos vv.39-45, deparamo-nos com o desfecho da narrativa. Jesus chega ao lugar da sepultura de Lázaro e pede que retirem a pedra colocada na entrada. A pedra representa tudo o que separa a vida da morte: o medo, a violência, a opressão e tudo o que a Lei causava de mal. Marta objeta, dizendo que seu irmão está sepultado há quatro dias, e que cheira mal, refletindo a ideia da impossibilidade de vida dita no v.17.

A narrativa é bem construída. Jesus faz uma prece ao Pai, a qual é a expressão da comunicação e comunhão íntima e profunda entre Eles. Então ordena, exclamando com voz forte: “Lázaro, vem para fora!” (v.43). Lazaro (hbr. Eleazar, Deus Ajuda) é chamado novamente à vida, mas ainda caminha amarrado. Por isso, o Senhor ordena que o desamarrem e o deixem ir. Esta ordem, de fato, significa o convite final que Jesus faz para a liberdade. É necessário “desatar” (v. 44) o ser humano de tudo o que o impede de caminhar livremente em busca da vida plena e da dignidade.

Mas o sinal aponta para uma realidade ulterior, como se sabe. E o discípulo não pode parar na simples materialidade dele, que no caso é a reanimação de um cadáver, ainda atado e com dificuldades (sua existência ainda é caduca). Este gesto profético de Jesus alude para uma realidade muito profunda: a Sua ressurreição. Diferentemente de Lázaro, o Senhor ressuscita sem nada que o impeça, cordas ou faixas que lhe dificultem. A ida à Betânia e o sinal ali realizado tiveram, portanto, um objetivo muito claro: libertar a comunidade da morte física, por um momento, e principalmente, da ideológica, da qual encontrava-se ameaçada. 

Somos convidados, diante deste relato a nos questionar sobre quem somos no horizonte do texto: Marta, a agitada que está perdendo a Esperança, vivendo ainda sob o véu das antigas concepções? Ou somos como Maria, que é símbolo do discípulo que crê e reconhece a importância do Senhor, indo lhe ao encontro? Se temos reconhecido Jesus como a Ressurreição e a Vida presente a nós, e, com isso acolhido o dom de Sua vida como oportunidade atualíssima de viver aqui e agora sob as cores e os tons de uma vida ressuscitada?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.


sábado, 18 de março de 2023

IV DOMINGO DA QUARESMA - Jo 9,1-41 (forma breve):

 


A liturgia do quarto domingo da quaresma propõe para a nossa meditação, a leitura do capítulo nono da catequese joanina. É uma leitura densa e cheia de significado para a comunidade do Quarto Evangelho, e para às gerações subsequentes. Para compreender o texto litúrgico  assimilemos a perspectivas do contexto e das personagens, meditando alguns versículos centrais, a fim recolher a mensagem útil à comunidade e aos leitores-discípulos de Jesus de todos os tempos e lugares.

O capítulo nono encontra-se na primeira parte do Evangelho segundo João, no assim chamado livro dos sinais. O Quarto Evangelho estrutura-se sobre dois blocos, o dos sinais, Jo 1,18 – 12,51, que tratam de introduzir o discípulo de Jesus no conhecimento acerca de sua identidade, vida, missão e obra. Eles servem para que este faça a sua opção por sua pessoa, uma vez que este evangelho é também marcado pelo tema da decisão. O segundo pilar sobre o qual a obra está estruturada é o livro da Glória, Jo 13 – 20, que trata de preparar o leitor-discípulo para a contemplação da glória do Senhor, de seu enaltecimento, através da Hora da Cruz. Somente quando o discípulo adere ao Seu projeto, conhecendo-o, sabendo por onde passa sua vida e sua missão, é que ele poderá dar o passo para a contemplação da hora da Glória, preparada também pelos sinais.

Em Jo 9 temos a narrativa de mais um sinal realizado por Jesus. É o sexto que Ele realiza no Quarto Evangelho. O primeiro, foi a mudança da água em vinho – Jo 2,1-12; depois, a cura do funcionário real – Jo 4,46-54; o terceiro, a cura do enfermo (paralítico) de Betesda – Jo 5,1-18; a multiplicação dos pães – Jo 6,1-15, constitui o quarto sinal, juntamente com a caminhada sobre o mar – Jo 6,16-21, o quinto sinal; seguindo a ordem, o sexto sinal, a cura do cego de nascença – Jo 9,1-41; e, o sétimo, a ressurreição de Lázaro (reanimação) – Jo 11,1-44. Mas há quem prefira ver o sinal do pão e da caminhada sobre a água como um só, e nesta perspectiva, a multiplicação dos pães seria o quarto sinal, o que faria com que o episódio narrado hoje assumisse o posto do quinto, deixando como o sexto sinal, a ressurreição do irmão de Marta e Maria, para fazer coincidir o sétimo, com a ressurreição. Mas há muita discussão sobre isso. Todavia, uma perspectiva interessante, se aprofundada.

Uma última consideração antes de entrarmos no texto bíblico, se faz necessária. É importante, para a interpretação deste relato, utilizar a técnica da “fusão de horizontes”: o tempo narrado, ou seja, o sinal realizado por Jesus, curando o cego (anos 30); e o tempo da comunidade Joanina, a qual está passando por um momento de crise histórica e de fé (anos 90). Através desta técnica, se visualiza a situação da comunidade cristã frente ao judaísmo da época. O ex-cego torna-se símbolo tanto para o discípulo como para a comunidade joanina que, por professar a fé no messias Jesus sofre a perseguição e expulsão dos meios judaicos, principalmente da sinagoga. 

A discussão entre o ex-cego e as autoridades judaicas e a sua exclusão por eles ilustram o que aconteceu em 90 d.C, a assembleia de Jãmnia, realizada pelos reformadores do judaísmo. A partir desta fusão de horizontes somos chamados a conhecer as três personagens importantes da narrativa. O cego (que sofrerá uma mudança no decorrer da narrativa), Jesus e os fariseus.

O cego, como todo enfermo era tido como amaldiçoado, segundo a tradição de Israel. As enfermidades eram vistas como castigos oriundos de algum pecado cometido pela pessoa ou por seus antepassados. A cegueira era tida como o pior dos castigos, pois privava a pessoa de ter acesso à leitura da Palavra de Deus, de aprender a Lei. Eram considerados pecadores públicos e não podiam ser admitidos ao ao Templo, ficando nas portas da cidade e dos locais de culto, vivendo da mendicância, como este cego de hoje.

No entanto, o cego tem sua polivalência simbólica. Em primeiro lugar, enquanto cego, simboliza os fariseus, ou seja, as lideranças do povo judeu, que estavam  cegas em relação à Jesus. Eles relutam e recusam a vê-lo como luz do mundo. Em segundo lugar, se torna símbolo daquele que ainda não fez sua opção favorável pelo mestre. 

Mas como dissemos que o cego é uma personagem cambiável (por ser uma personagem anônima), num ponto importante da narrativa, após a cura, ele vai assumindo a face do discípulo que começa a dar os passos na fé em relação a Jesus. Torna-se, assim, uma figura do candidato à fé, que, ao interno da comunidade cristã assume o batismo; mas também é uma alusão ao fiel-discípulo que sente as crises e corre os riscos de abandoná-la, por causa das perseguições e da exclusão dos meios judaicos (onde a sinagoga representava ainda a segurança social da pessoa, frente a um mundo romanamente globalizado).

O fiel discípulo e leitor do Quarto Evangelho é convidado a recordar quem é a sua segurança, orientação e meta: Jesus, a Luz do mundo. Por isso, somos convidados a mirar a personagem do Senhor. O evangelista nos diz que ele estava passando, ou seja, em movimento. Na verdade, ele estava em fuga, pois as lideranças dos judeus queriam apedrejá-lo devido ao seu ensinamento (cf. Jo 8). Mas ali, diante daquele cego, onde a vida era escassa e escura, ele se detém e coloca-se a sanar suas necessidades.

Jesus vê a necessidade do outro e age com solidariedade e compaixão. Os vv.2 e 3 que são omitidos no relato breve, devem ser bem compreendidos. A cegueira não é vontade de Deus e nem punição a possíveis pecados cometidos. Também não é a condição para que a glória de Deus se manifeste, como poderia ser interpretada sua afirmação no v. 3. Mas esta afirmação de Jesus deve ser entendida assim: onde a vida é escassa, quer dizer, onde a criação não encontrou sua plenitude, há, então, espaço para que a glória de Deus se manifeste, sanando a deficiência.

O gesto de Jesus é carregado de simbologia e significado. Nos descreve o evangelista: “Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego, e disse-lhe: ‘Vai lavar-te na piscina de Siloé (que quer dizer: enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando” (vv. 6-7). O gesto de cuspir no chão e fazer lama com a saliva é carregado de um forte simbolismo: o barro alude à criação, é a matéria prima do ser humano, conforme a mentalidade bíblica. De acordo com essa mesma mentalidade, a saliva é gerada pelo hálito, e esse é o sopro, o espírito. Com isso, o evangelista quer dizer que Jesus repete o gesto criador de Deus (cf. Gn 2,7), ou seja, aperfeiçoa a criação do Pai.

O homem que até então vegetava, passou a viver de verdade a partir do encontro com Jesus que lhe deu vida. A ordem para  lavar-se na piscina de Siloé significa a participação e a responsabilidade humana na criação e na salvação. Deus não quer o ser humano passivo, mas participante ativo de sua obra. Significa a capacidade de tomar a vida nas mãos! 

Como “luz do mundo” (v. 5), Jesus aponta o caminho e quem o segue encontra a luz, como o cego “voltou enxergando” da piscina ao cumprir a sua ordem. Quem segue a palavra do Senhor encontra luz e sentido para a vida. Através deste sinal, o catequista e autor do Quarto Evangelho quer recuperar para sua comunidade em crise, a identidade do Mestre. Este episódio foi a melhor oportunidade que João encontrou para retratar essa realidade, uma vez que “recuperar a visão dos cegos” era um dos principais sinais messiânicos anunciados pelos profetas (cf. Is 29,18; 42,7). Jesus é o messias, ou seja, o Cristo: Luz do mundo.

Conforme dito anteriormente, aquele ex-cego, por ter aderido a Jesus e sua Palavra, acabou sendo marginalizado pela religião daquele tempo. Mas o Senhor se supera mais uma vez. Ele se manifesta novamente, ao saber que o homem tinha sido expulso da sinagoga e vai ao seu encontro (v. 35). Embora a versão litúrgica afirme que o Senhor “encontrou” o homem, a tradução correta seria “foi encontrá-lo” (v. 35), o que significa que Ele foi procurá-lo. Como sempre, Ele resgata o que a falsa e superficial religiosidade descartou. Os sistemas dominantes separam e divide, mas o Mestre une e reconcilia tudo; a religião do templo oprime e obscurantiza; ao passo que Ele liberta e ilumina.

Diante deste texto belíssimo, que ainda fica muito por comentar, dada sua profundidade e riqueza simbólica, quem somos no horizonte desta narrativa? O cego, que ao longo do percurso da fé vai deixando sua condição, porque se propõe a viver segundo a Palavra de Jesus? Ou os fariseus que se recusam a acolher a novidade do Dom de Deus em Jesus, luz do mundo e no mundo? Qual cegueira necessita ser eliminada e iluminada por Jesus, Luz do mudo?

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.


sábado, 11 de março de 2023

III DOMINGO DA QUARESMA - JO 4,5-42 (relato breve)


 

A liturgia do terceiro domingo da quaresma apresenta o relato do encontro entre Jesus e a samaritana, extraído do Quarto Evangelho, o qual fará parte da catequese quaresmal dos próximos domingos. O episódio divide-se em três momentos: 1) Jesus e a samaritana junto do poço de Jacó (4,1-26); 2) um diálogo instrutivo aos discípulos (4,27-38); 3) o encontro com os samaritanos, que passam a crer Nele a partir do testemunho da mulher, e pela escuta da palavra do Senhor (4,39-42). Interessa para a nossa meditação o primeiro e o segundo momento. O texto litúrgico é longo. Por isso, pinçaremos alguns versículos que são capazes de oferecer chaves de leitura para a interpretação da mensagem catequética para este tempo quaresmal.

Uma chave de leitura para se compreender este texto evangélico é o tema da novidade trazida por Jesus. Novidade, esta, dita escatológica, a qual foi esboçada em Jo 2. Ali, o autor pretendendia mostrar, pelo gesto profético de Jesus, purificando o templo de Jerusalém, que os sacrifícios do sistema ritual levítico ficavam superados mediante a novidade da Obra realizada por Ele. No capítulo seguinte, Jo 3, desenrola-se um diálogo com um certo Nicodemos, chefe dos fariseus, que vê naquele rabí uma novidade pertencente ao âmbito de Deus. Por isso, com um solene  “amém, amém”, o Jesus joanino introduz um discurso sobre a experiência com Deus, que se dá pelo novo nascimento através da Agua e do Espírito, elementos que não devem ser tomados na materialidade e superficialidade em si, mas que acenam para realidade do pertencimento ao âmbito do divino: a vida de Deus que emerge na carne de Jesus. Isto é, a novidade/últimidade da presença de Deus Nele, superando tudo o que é antigo.

Na sequência, o Quarto Evangelista situa a narrativa do  capítulo quatro. O quadro geográfico mostra Jesus de volta a Galileia. Ele vai a uma cidade chamada Sicar. Ali, conforme Gn 33,19, Jacó havia comprado um terreno e dado a José, para que os seus descendentes fossem sepultados. Parece que o autor também se serviu do relato de Gn 24 (o poço de Nacar) como pano de fundo para o relato, pois havia ali uma fonte, ou mina d’agua. Optamos traduzir poço por fonte, porque dá a ideia de água corrente, imagem importante para o evangelista.

João nos informa que Jesus parou para descansar, ao meio-dia, a hora Sexta. Naquela hora apareceu uma mulher samaritana para tirar água. Não era o melhor momento do dia, uma vez que elas iam bem cedo, no frescor da manhã para executar a tarefa. Ele, então, entabula um diálogo, pedindo-lhe água. Ela lhe responde: “tu, que és judeu, pede de beber a mim que sou uma mulher samaritana?” Não é sem sentido esta fina ironia do autor: pretende-se ressaltar a diferença cultural e social existentes  entre Judeus e Samaritanos. Interessante, que o evangelista dá peso à cena, ao mostrar o diálogo entre elas na ausência dos discípulos, uma vez que um judeu não conversava em público com uma mulher. Muito menos com uma samaritana. Ora, aos olhos de seus adversários, o fato de Jesus ter iniciado uma conversa com um samaritano já seria motivo de grave falta, tanto mais o uso de um utensílio pertencente à um deles.

Jesus, como no caso de Nicodemos, começa o diálogo com a samaritana mediante um paradoxo: o reconhecimento do Dom (da presença) de Deus naquele que pede água para beber, já que seria Ele a dar uma água que mataria a sede. Ou seja, mal-entendido tem a função de ensinar uma novidade para a mulher: ela tem que aprender algo totalmente novo.

No nível da comunidade joanina, bem como para as gerações futuras, tanto a samaritana como Nicodêmos são figuras simbólicas dos candidatos à Fé cristã. Aquele que pede, na verdade é quem pode dar/doar, pois oferece algo totalmente novo, e além do que se pode esperar. Mas isso, a samaritana, Nicodêmos e o discípulo-leitor (candidato ao batismo e a fé) devem compreender progressivamente, porque ainda nada entenderam, e, por isso, permanecem apenas na materialidade  da água.

Quando se fala da Água que brota para a vida eterna, na verdade está se referindo a água, que no crente produz a existência da vida do âmbito de Deus, que põe fim à arbitrariedade do que reina neste tempo. É um convite para que a samaritana receba como dom esta água viva, que faz brotar o tempo pleno, já presente em Jesus. É claro que o leitor joanino (que pode ser o iniciado ou catecúmeno na fé) pode associar este tema à graça do batismo.

O v.12 traz, aqui, o recurso da Ironia Joanina: “Por acaso, és maior que nosso pai Jacó, que nos deu o poço e que dele bebeu, como também seus filhos e seus animais?” Estas palavras da samaritana, na verdade, pretendem afirmar que Ele é, sim, maior que Jacó. Mas ela não conseguiu romper com o nível material, por isso pede água comum, a fim de não ter mais sede, nem precisar vir tira-la da fonte. 

Então, Jesus experimenta uma didática mais radical para derrubar as resistências daquela mulher. Pede que ela lhe chame o marido. Imediatamente ela responde que não é casada. O mestre confirma e declara que ela, de fato, possuíra cinco maridos, e, naquele momento, possuía um sexto (emprestado), que não era dela. Isto faz com que a mulher reconheça em Jesus algo de inexplicável. Típico dos grandes profetas de Israel. Ele consegue romper com a resistência da mulher.

Quem são os seis maridos da samaritana? No nível do texto, são símbolos para os povos que foram implantados pelos assírios, ali na Samaria (2Rs 17), por ocasião da dominação e deportação de 722 a.C, quando da queda do Reino de Israel – babilônios, assírios, persas, elamitas, gregos e os romanos. Estes povos trouxeram consigo suas religiões, seus deuses e costumes, os quais passaram a ser cultuados e assimilados também pelos israelitas que ali permaneciam. Temos cinco povos e culturas que não são dali, e um sexto que é tomado de empréstimo.

A mensagem central desta simbologia é a seguinte: abandonar os esquemas antigos e de morte que ela vive para abraçar a novidade de Deus agindo em Jesus. Deixar de lado a incompletude e a falta, uma vez que, ao interno da tradição bíblica, o número seis acena para a imperfeição e incompletude. A sede desta mulher, que a faz ir ao poço ao meio-dia, revela a inconsistência, a falta, a insatisfação, a frustração da vida sem sentido que possuía, buscando preencher seu vazio. É vida atrofiada pelos esquemas antigos. Esta é a sua sede. E o primeiro passo, nesse sentido, seria o reconhecimento em Jesus, de um definitivo revelador, que traz uma nova experiência, a qual supera o conhecimento dela. Contudo, ao pedir água para ela, é Jesus quem demonstra ter sede. Neste encontro, somos chamados a acolher a realidade daquela que tem sede de sentido e significado da vida, e, portanto do divino, com aquele que tem sede da nossa humanidade, a fim de dar sentido a ela.

Os versículos se interconectam. A samaritana tem sede do divino, como exposto acima. Mas ainda está no nível material do lugar e do espaço. Por isso ela interroga Jesus acerca do  lugar autêntico para adoração de Deus, se seria o monte Garizim ou Jerusalém, no Templo (v.22). Ele a convida para uma reflexão: insinua que os samaritanos adoravam aquilo que não conheciam, porque abandonaram e negaram a pregação profética, fazendo até mesmo uma versão própria da Lei. Já os judeus do sul conheciam Aquele a quem adoravam, porque permaneceram fieis à pregação dos profetas, bem como à Torah. Assim, para João, o critério que torna alguém discípulo de Jesus é o de acolher o dom de Deus presente Nele, como Seu revelador pleno, e na atenção à Palavra de Deus, pois elas revelam e testemunham quem Jesus é!

O v. 23 é realmente explosivo: “Vêm a Hora, e é Agora”.  É agora que se pode começar a passar para a vida do âmbito de Deus – que irrompe na história, no aqui e agora. A partir daqui, aparece pela primeira vez, o tema joanino da Escatologia presente: a eternidade de Deus, isto é, a qualidade da vida divina já se torna presente através da atuação, vida e obra de Jesus. O lugar da adoração do Pai não é no Garizim, nem em Jerusalém, mas em Espírito e em Verdade.

O que significa isso? Primeiramente, desmistifiquemos aquela intepretação errônea de que a expressão “em Espírito e em Verdade” insinue uma adoração intimista ou individualista. A expressão joanina muito menos acenaria para uma concepção carismática da religião, com suas manifestações extraordinárias ou sobrenaturais. O texto joanino não permite entender “adoração em Espírito e em Verdade” como fenômenos (psíquicos) que de carismáticos não tem nada, ou daquilo que se costumou identificar como os “repousos espirituais” ou “fenômenos das línguas”. Nada disso.

Em Espírito e em Verdade significa assumir e viver a vida de Jesus em sua própria história; deixar que o sentido pleno de sua história, missão, opção e modo de ser perpasse-lhe a vida e a história, de modo a ser uma continuidade da vida do próprio Senhor. Prestar um culto agradável a Deus com a própria vida encarnada na história e iluminada pela fé. Em simples palavras: a adoração à Deus não se dá num lugar, mas através de um modo de viver. Uma vida pautada pelo Espírito e o amor-fiel (Verdade) de Deus, doada em serviço e em amor até o fim, que deram o tom da existência e da Obra de Jesus.

Nessa lógica, a mulher diz no v.25: “Sei que o messias-Ungido vem. Quando ele vier, ele nos esclarecerá todas essas coisas”. Ela imagina o ungido de Deus como o novo Moisés, que explicará todas as coisas. Quando ele vier saciará a sua sede. Ele será a plenitude da Lei e da profecia. Nesse sentido, a (reveladora) declaração de Jesus assume um peso importante: “Sou eu quem está falando contigo”. Ele se coloca na condição de cumprir o desejo de conhecimento do Dom de Deus que a mulher samaritana tem. Jesus é o anunciador e revelador de Deus, e o dom de sua vida e Espírito constituem a água viva, que transforma a existência do discípulo numa fonte que jorra água viva. Sacia a sede do ser humano através de sede que tem de nós. Ao sentir sede de nós, abre a oportunidade do encontro conosco. Para que através desta experiência, transforme nossa sede, nossa aridez, nossa incompletude, nossa falta, em fonte de água viva.

A lição pragmática que o texto pretende dar ao leitor-discípulo é a seguinte. Aquele que faz a experiência da novidade que Jesus traz, o Dom de Deus, que na verdade é Deus mesmo, não pode ficar indiferente. Deverá deixar fluir a partir de si a água da vida divina, para que os outros possam fazer a mesma experiência. O discípulo que faz a experiência com Jesus e seu Dom (seu Espírito em nós, que dá vida), não pode se tornar um estanque que represa a água da vida, mas deve mover-se na direção do outro.

Assim, a samaritana aprendeu a lição: vai, então, anunciar essa novidade para os seus. Ela deixou ali o seu cântaro. De poço seco e sedento de água, torna-se uma fonte de água vive, em movimento, na direção dos outros. Da condição de discípula, ela passa para a condição de missionária e vai anunciar aos seus o modo através do qual se vive a vida mesma Deus.

E nós, a partir da experiência pessoal e comunitária com Jesus, somos poço (que retém a água, a ponto de deixa-la parada) ou somos fonte que está sempre a nutrir?

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 4 de março de 2023

II DOMINGO DA QUARESMA - Mt 17,1-9:

 



A liturgia do segundo domingo da quaresma nos convida a meditar a narrativa da transfiguração de Jesus, presente na tradição sinótica. Mas cada evangelista deu a esse fato cores próprias, conforme a necessidade de cada comunidade. A intenção deste relato, ao interno do tempo quaresmal, é a de fazer com que o fiel se coloque na predisposição de transfigurar-se, através do seguimento a Jesus. Ainda insistindo na dinâmica litúrgico-mistagógica podemos tomar o texto de hoje e pô-lo em sintonia com o evangelho do primeiro domingo do tempo quaresmal, no qual meditamos as tentações de Jesus. A última tentação à que foi seduzido se deu no alto de uma montanha. Ali, foi lhe oferecido o caminho do messianismo dominador e do poder.

A liturgia pretende mostrar outra montanha que o fiel-leitor e discípulo deve subir com Jesus, a da transfiguração, e, com isso, rejeitar as tentações da vida fácil, anestesiada, pautada pelas ideologias de poder, da dominação e da riqueza, que amparam os sistemas de morte, contrários ao projeto de Deus anunciado por Jesus. A última tentação apresentada em Mt 4, consistia na sedução do poder e do domínio. O discípulo, ao contrário, deve estar atento e ser ouvinte da voz do Filho amado, compreender o sentido da Sua vida, a fim de viver a lógica do Reino proclamado por Jesus. Em síntese, a montanha da transfiguração, na qual Ele sobe com seus difíceis companheiros, Pedro, Tiago e João, é a antítese e, ao mesmo tempo, antídoto para o monte da tentação. O discípulo do reino deve rejeitar esta e optar por transfigurar-se.

O texto evangélico inicia-se situando as personagens e o lugar, dizendo que Jesus subiu com Pedro, Tiago e João, para uma alta montanha. Atenção às personagens. Tiago, João e Pedro sempre aparecem em primeiro plano nas narrativas. Essa preferência não se trata de privilégio. Antes, necessidade de aprendizado profundo sobre a identidade e a missão de Jesus. É verdade que os três personificam, também, o grupo dos Doze. E, na cultura e tradição judaicas atuam na função de testemunhas qualificadas, ou seja, aquelas que dão veracidade ao fato ocorrido e narrado, por isso, em número de dois ou três. O que era exigido na época.

O aspecto geográfico funciona como motivo teológico. Mateus situa-os na montanha. A montanha, para a teologia bíblica, é o lugar ideal para se fazer a experiência com Deus, bem como o lugar de Sua manifestação (as teofanias). Ora, toda a possibilidade e ocasião de encontro com Deus acaba sendo uma “subir a montanha”. Neste sentido, é preferível que não se tente identificar a montanha desta narrativa com o Monte Tabor, uma vez que ela surgiu com Origenes (escritor e teólogo) entre os séculos II e III. A informação não se sustenta com a leitura da bíblia. É melhor mantê-la anônima, tomando-a somente como a possibilidade e um encontro com Deus.

Ali, Jesus revela-lhes a potência que sua vida possui. “E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz” (v.2). O verbo grego utilizado por Mateus para ilustrar esta ação é “Metamorphein (gr. μετεμορφώθη)”, na voz passiva (lit. “Foi transfigurado diante deles”). O que indica que a ação é realizada por Deus. Ou seja, o Pai revela quem Jesus é, a partir de dentro; a partir da humanidade do Filho. É como se revelasse a incrível beleza de sua humanidade, jamais reconhecida pelos adversários, decididos a tirar-lhe a vida (Mt 12,14). Ao realizarem esta experiência, os três discípulos estão em condições de fazer uma leitura distinta da morte injusta do Mestre (Mt 16,21). Nesta perspectiva, o texto cumpre sua função para o leitor-discípulo, a de mostrar como será o caminho de Jesus; como ele desenvolverá sua missão, e, qual será o desfecho. O seu messianismo não será vivido na perspectiva do poder, do domínio, da força, da submissão, do prestígio como ele alerta através no primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21). Tampouco a morte violenta e ignominiosa terá a última palavra na sua vida, porque a cena narrada é uma antecipação tanto para o discípulo que o acompanha até o monte, como para o leitor do evangelho, da vida ressuscitada.

Por isso, o detalhe cronológico que Mateus sublinha, “seis dias depois”, torna-se importante: Jesus mostra, mediante a transfiguração, a plena realização daquilo que Deus planejou para o ser humano. Esse dado merece consideração, porque o evangelista está pensando na semana da criação (Gn 1). No sexto dia Deus criou o ser humano. Jesus transfigurado revela o ser humano recriado a partir Dele.

No v.3, o evangelista informa a presença de outras duas personagens, Moisés e Elias. Ambos simbolizam a Palavra de Deus. O primeiro, faz alusão à Lei; o segundo, à profecia. Na intenção de Mateus, Lei e Profecia representam a totalidade da Palavra de Deus. Ao lado de Jesus, eles indicam-no como a plenitude da Lei e dos Profetas, ou seja, Jesus é a realização plena das Escrituras, e as leva a seu pleno cumprimento através de seu modo de vida.

No entanto, a incompreensão e resistência dos discípulos diante do evento se fazem notar. Pedro interrompe a cena dizendo que a aquela experiência era boa (v.4). Muito se vê na atitude dele algo de negativo. Mas, na verdade, o discípulo fica empolgado com a experiência maravilhosa e propõe a Jesus fazer aí três tendas, de modo a poderem eternizar a convivência com ele, Moisés e Elias. O número três é importante nessa cena. Na simbologia numérica judaica, corresponde ao número do ser humano. Sendo assim, a mensagem da cena da transfiguração diz respeito ao sentido pleno da humanidade de Jesus revelada aos discípulos, que se deixam encantar por ele e querem contemplá-lo, a fim de serem transfigurados por Ele. Por isso, se trata de uma experiência que deve tocar lhes a e vida em sua completude.

Todavia, se faz necessário, diante desta contemplação da identidade de Jesus, recusar três atitudes que as personagens apresentam. A primeira é o comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo, que configura uma nova tentação. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo.

A segunda é o perigo do apego à tradição e não reconhecimento de Jesus como o centro da vida, ilustrada pela atitude de Pedro: “uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias”. Ocupando Moisés o centro da frase dita pelo discípulo, sendo elencada em segundo lugar, se induz a entender que a personagem principal para a qual se deve voltar a atenção seria Moisés. Uma vez que era costume colocar a pessoa de maior destaque e importância no centro da estrutura frasal. Ou seja, Jesus ainda não ocupava o centro na vida de Pedro e na dos discípulos, e sim a lei de Moisés.

O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não reconhecimento de Jesus como a verdadeira habitação de Deus na história – o Emanuel, Deus-Conosco. Ora, no Antigo Testamento, no contexto do Êxodo, a tenda era o lugar do encontro do povo com Deus. Para o evangelista, é a pessoa de Jesus que realiza este lugar de encontro com o Deus de Israel. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o revelador de Deus por excelência.

Outro símbolo importante, que aponta para a centralidade da pessoa e missão de Jesus, cume e ápice da Lei e da Profecia, é a “nuvem brilhante” que envolve a todos (Ex 24,15; Ml 24,30; 26,64). Dela, o Pai faz ouvir sua voz, declarando a autoridade do Filho: “Este é o meu Filho amado. Só nele eu encontro alegria. Fiquem atentos ao que ele diz” (Mt 3,17; ís 42,1). Deus O credencia como o único que tem a autoridade para falar e ser ouvido pela comunidade. É uma forma categórica de se afirmar que Moisés e Elias já disseram o que tinham para dizer; à comunidade cristã, só interessa ouvir o Evangelho do Cristo. A nuvem os envolve, indicativo de que os discípulos foram acolhidos por Deus, que fala de Jesus como seu Filho querido. O bem-querer do Pai pelo Filho, portanto, alarga-se a ponto de abarcar, acolher e abraçar os discípulos e toda a humanidade.

A experiência divina acaba, e os discípulos são, novamente, colocados na realidade. O toque de Jesus, que é a sua própria palavra, levanta e transforma a comunidade dos discípulos: “Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus” (v. 8). Moisés e Elias desapareceram para que as atenções dos discípulos se voltem somente para Jesus, o centro da vida e da comunidade que já não precisa mais dos antepassados. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem escuta o Filho, escuta-O também. Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz. 

Só pode assimilar e viver uma vida transfigurada, aquele discípulo que se propõe a subir a montanha com Jesus e ouvir sua voz, ou seja, referenciar sua vida à vida mesma de Jesus, a qual supera a Lei (Moisés) e a Profecia (Elias), levando-as à sua plena realização. Assim, viverão uma vida verdadeiramente transfigurada, que outra coisa não é senão viver a vida do Filho de Deus. Peçamos a Graça de transfigurar-nos como o Senhor, e a força de recusar toda a desfiguração que as estruturas e projetos contrários ao Reino oferecem.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.