A liturgia do quarto domingo da quaresma propõe para a nossa meditação, a leitura do capítulo nono da catequese joanina. É uma leitura densa e cheia de significado para a comunidade do Quarto Evangelho, e para às gerações subsequentes. Para compreender o texto litúrgico assimilemos a perspectivas do contexto e das personagens, meditando alguns versículos centrais, a fim recolher a mensagem útil à comunidade e aos leitores-discípulos de Jesus de todos os tempos e lugares.
O capítulo nono encontra-se na primeira parte do Evangelho segundo João, no assim chamado livro dos sinais. O Quarto Evangelho estrutura-se sobre dois blocos, o dos sinais, Jo 1,18 – 12,51, que tratam de introduzir o discípulo de Jesus no conhecimento acerca de sua identidade, vida, missão e obra. Eles servem para que este faça a sua opção por sua pessoa, uma vez que este evangelho é também marcado pelo tema da decisão. O segundo pilar sobre o qual a obra está estruturada é o livro da Glória, Jo 13 – 20, que trata de preparar o leitor-discípulo para a contemplação da glória do Senhor, de seu enaltecimento, através da Hora da Cruz. Somente quando o discípulo adere ao Seu projeto, conhecendo-o, sabendo por onde passa sua vida e sua missão, é que ele poderá dar o passo para a contemplação da hora da Glória, preparada também pelos sinais.
Em Jo 9 temos a narrativa de mais um sinal realizado por Jesus. É o sexto que Ele realiza no Quarto Evangelho. O primeiro, foi a mudança da água em vinho – Jo 2,1-12; depois, a cura do funcionário real – Jo 4,46-54; o terceiro, a cura do enfermo (paralítico) de Betesda – Jo 5,1-18; a multiplicação dos pães – Jo 6,1-15, constitui o quarto sinal, juntamente com a caminhada sobre o mar – Jo 6,16-21, o quinto sinal; seguindo a ordem, o sexto sinal, a cura do cego de nascença – Jo 9,1-41; e, o sétimo, a ressurreição de Lázaro (reanimação) – Jo 11,1-44. Mas há quem prefira ver o sinal do pão e da caminhada sobre a água como um só, e nesta perspectiva, a multiplicação dos pães seria o quarto sinal, o que faria com que o episódio narrado hoje assumisse o posto do quinto, deixando como o sexto sinal, a ressurreição do irmão de Marta e Maria, para fazer coincidir o sétimo, com a ressurreição. Mas há muita discussão sobre isso. Todavia, uma perspectiva interessante, se aprofundada.
Uma última consideração antes de entrarmos no texto bíblico, se faz necessária. É importante, para a interpretação deste relato, utilizar a técnica da “fusão de horizontes”: o tempo narrado, ou seja, o sinal realizado por Jesus, curando o cego (anos 30); e o tempo da comunidade Joanina, a qual está passando por um momento de crise histórica e de fé (anos 90). Através desta técnica, se visualiza a situação da comunidade cristã frente ao judaísmo da época. O ex-cego torna-se símbolo tanto para o discípulo como para a comunidade joanina que, por professar a fé no messias Jesus sofre a perseguição e expulsão dos meios judaicos, principalmente da sinagoga.
A discussão entre o ex-cego e as autoridades judaicas e a sua exclusão por eles ilustram o que aconteceu em 90 d.C, a assembleia de Jãmnia, realizada pelos reformadores do judaísmo. A partir desta fusão de horizontes somos chamados a conhecer as três personagens importantes da narrativa. O cego (que sofrerá uma mudança no decorrer da narrativa), Jesus e os fariseus.
O cego, como todo enfermo era tido como amaldiçoado, segundo a tradição de Israel. As enfermidades eram vistas como castigos oriundos de algum pecado cometido pela pessoa ou por seus antepassados. A cegueira era tida como o pior dos castigos, pois privava a pessoa de ter acesso à leitura da Palavra de Deus, de aprender a Lei. Eram considerados pecadores públicos e não podiam ser admitidos ao ao Templo, ficando nas portas da cidade e dos locais de culto, vivendo da mendicância, como este cego de hoje.
No entanto, o cego tem sua polivalência simbólica. Em primeiro lugar, enquanto cego, simboliza os fariseus, ou seja, as lideranças do povo judeu, que estavam cegas em relação à Jesus. Eles relutam e recusam a vê-lo como luz do mundo. Em segundo lugar, se torna símbolo daquele que ainda não fez sua opção favorável pelo mestre.
Mas como dissemos que o cego é uma personagem cambiável (por ser uma personagem anônima), num ponto importante da narrativa, após a cura, ele vai assumindo a face do discípulo que começa a dar os passos na fé em relação a Jesus. Torna-se, assim, uma figura do candidato à fé, que, ao interno da comunidade cristã assume o batismo; mas também é uma alusão ao fiel-discípulo que sente as crises e corre os riscos de abandoná-la, por causa das perseguições e da exclusão dos meios judaicos (onde a sinagoga representava ainda a segurança social da pessoa, frente a um mundo romanamente globalizado).
O fiel discípulo e leitor do Quarto Evangelho é convidado a recordar quem é a sua segurança, orientação e meta: Jesus, a Luz do mundo. Por isso, somos convidados a mirar a personagem do Senhor. O evangelista nos diz que ele estava passando, ou seja, em movimento. Na verdade, ele estava em fuga, pois as lideranças dos judeus queriam apedrejá-lo devido ao seu ensinamento (cf. Jo 8). Mas ali, diante daquele cego, onde a vida era escassa e escura, ele se detém e coloca-se a sanar suas necessidades.
Jesus vê a necessidade do outro e age com solidariedade e compaixão. Os vv.2 e 3 que são omitidos no relato breve, devem ser bem compreendidos. A cegueira não é vontade de Deus e nem punição a possíveis pecados cometidos. Também não é a condição para que a glória de Deus se manifeste, como poderia ser interpretada sua afirmação no v. 3. Mas esta afirmação de Jesus deve ser entendida assim: onde a vida é escassa, quer dizer, onde a criação não encontrou sua plenitude, há, então, espaço para que a glória de Deus se manifeste, sanando a deficiência.
O gesto de Jesus é carregado de simbologia e significado. Nos descreve o evangelista: “Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego, e disse-lhe: ‘Vai lavar-te na piscina de Siloé (que quer dizer: enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando” (vv. 6-7). O gesto de cuspir no chão e fazer lama com a saliva é carregado de um forte simbolismo: o barro alude à criação, é a matéria prima do ser humano, conforme a mentalidade bíblica. De acordo com essa mesma mentalidade, a saliva é gerada pelo hálito, e esse é o sopro, o espírito. Com isso, o evangelista quer dizer que Jesus repete o gesto criador de Deus (cf. Gn 2,7), ou seja, aperfeiçoa a criação do Pai.
O homem que até então vegetava, passou a viver de verdade a partir do encontro com Jesus que lhe deu vida. A ordem para lavar-se na piscina de Siloé significa a participação e a responsabilidade humana na criação e na salvação. Deus não quer o ser humano passivo, mas participante ativo de sua obra. Significa a capacidade de tomar a vida nas mãos!
Como “luz do mundo” (v. 5), Jesus aponta o caminho e quem o segue encontra a luz, como o cego “voltou enxergando” da piscina ao cumprir a sua ordem. Quem segue a palavra do Senhor encontra luz e sentido para a vida. Através deste sinal, o catequista e autor do Quarto Evangelho quer recuperar para sua comunidade em crise, a identidade do Mestre. Este episódio foi a melhor oportunidade que João encontrou para retratar essa realidade, uma vez que “recuperar a visão dos cegos” era um dos principais sinais messiânicos anunciados pelos profetas (cf. Is 29,18; 42,7). Jesus é o messias, ou seja, o Cristo: Luz do mundo.
Conforme dito anteriormente, aquele ex-cego, por ter aderido a Jesus e sua Palavra, acabou sendo marginalizado pela religião daquele tempo. Mas o Senhor se supera mais uma vez. Ele se manifesta novamente, ao saber que o homem tinha sido expulso da sinagoga e vai ao seu encontro (v. 35). Embora a versão litúrgica afirme que o Senhor “encontrou” o homem, a tradução correta seria “foi encontrá-lo” (v. 35), o que significa que Ele foi procurá-lo. Como sempre, Ele resgata o que a falsa e superficial religiosidade descartou. Os sistemas dominantes separam e divide, mas o Mestre une e reconcilia tudo; a religião do templo oprime e obscurantiza; ao passo que Ele liberta e ilumina.
Diante deste texto belíssimo, que ainda fica muito por comentar, dada sua profundidade e riqueza simbólica, quem somos no horizonte desta narrativa? O cego, que ao longo do percurso da fé vai deixando sua condição, porque se propõe a viver segundo a Palavra de Jesus? Ou os fariseus que se recusam a acolher a novidade do Dom de Deus em Jesus, luz do mundo e no mundo? Qual cegueira necessita ser eliminada e iluminada por Jesus, Luz do mudo?
Pe.
João Paulo Sillio.
Pároco
do Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.
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