A liturgia do segundo domingo da quaresma nos convida a meditar a narrativa da transfiguração de Jesus, presente na tradição sinótica. Mas cada evangelista deu a esse fato cores próprias, conforme a necessidade de cada comunidade. A intenção deste relato, ao interno do tempo quaresmal, é a de fazer com que o fiel se coloque na predisposição de transfigurar-se, através do seguimento a Jesus. Ainda insistindo na dinâmica litúrgico-mistagógica podemos tomar o texto de hoje e pô-lo em sintonia com o evangelho do primeiro domingo do tempo quaresmal, no qual meditamos as tentações de Jesus. A última tentação à que foi seduzido se deu no alto de uma montanha. Ali, foi lhe oferecido o caminho do messianismo dominador e do poder.
A liturgia pretende mostrar outra montanha que o fiel-leitor e discípulo deve subir com Jesus, a da transfiguração, e, com isso, rejeitar as tentações da vida fácil, anestesiada, pautada pelas ideologias de poder, da dominação e da riqueza, que amparam os sistemas de morte, contrários ao projeto de Deus anunciado por Jesus. A última tentação apresentada em Mt 4, consistia na sedução do poder e do domínio. O discípulo, ao contrário, deve estar atento e ser ouvinte da voz do Filho amado, compreender o sentido da Sua vida, a fim de viver a lógica do Reino proclamado por Jesus. Em síntese, a montanha da transfiguração, na qual Ele sobe com seus difíceis companheiros, Pedro, Tiago e João, é a antítese e, ao mesmo tempo, antídoto para o monte da tentação. O discípulo do reino deve rejeitar esta e optar por transfigurar-se.
O texto evangélico inicia-se situando as personagens e o lugar, dizendo que Jesus subiu com Pedro, Tiago e João, para uma alta montanha. Atenção às personagens. Tiago, João e Pedro sempre aparecem em primeiro plano nas narrativas. Essa preferência não se trata de privilégio. Antes, necessidade de aprendizado profundo sobre a identidade e a missão de Jesus. É verdade que os três personificam, também, o grupo dos Doze. E, na cultura e tradição judaicas atuam na função de testemunhas qualificadas, ou seja, aquelas que dão veracidade ao fato ocorrido e narrado, por isso, em número de dois ou três. O que era exigido na época.
O aspecto geográfico funciona como motivo teológico. Mateus situa-os na montanha. A montanha, para a teologia bíblica, é o lugar ideal para se fazer a experiência com Deus, bem como o lugar de Sua manifestação (as teofanias). Ora, toda a possibilidade e ocasião de encontro com Deus acaba sendo uma “subir a montanha”. Neste sentido, é preferível que não se tente identificar a montanha desta narrativa com o Monte Tabor, uma vez que ela surgiu com Origenes (escritor e teólogo) entre os séculos II e III. A informação não se sustenta com a leitura da bíblia. É melhor mantê-la anônima, tomando-a somente como a possibilidade e um encontro com Deus.
Ali, Jesus revela-lhes a potência que sua vida possui. “E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz” (v.2). O verbo grego utilizado por Mateus para ilustrar esta ação é “Metamorphein (gr. μετεμορφώθη)”, na voz passiva (lit. “Foi transfigurado diante deles”). O que indica que a ação é realizada por Deus. Ou seja, o Pai revela quem Jesus é, a partir de dentro; a partir da humanidade do Filho. É como se revelasse a incrível beleza de sua humanidade, jamais reconhecida pelos adversários, decididos a tirar-lhe a vida (Mt 12,14). Ao realizarem esta experiência, os três discípulos estão em condições de fazer uma leitura distinta da morte injusta do Mestre (Mt 16,21). Nesta perspectiva, o texto cumpre sua função para o leitor-discípulo, a de mostrar como será o caminho de Jesus; como ele desenvolverá sua missão, e, qual será o desfecho. O seu messianismo não será vivido na perspectiva do poder, do domínio, da força, da submissão, do prestígio como ele alerta através no primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21). Tampouco a morte violenta e ignominiosa terá a última palavra na sua vida, porque a cena narrada é uma antecipação tanto para o discípulo que o acompanha até o monte, como para o leitor do evangelho, da vida ressuscitada.
Por isso, o detalhe cronológico que Mateus sublinha, “seis dias depois”, torna-se importante: Jesus mostra, mediante a transfiguração, a plena realização daquilo que Deus planejou para o ser humano. Esse dado merece consideração, porque o evangelista está pensando na semana da criação (Gn 1). No sexto dia Deus criou o ser humano. Jesus transfigurado revela o ser humano recriado a partir Dele.
No v.3, o evangelista informa a presença de outras duas personagens, Moisés e Elias. Ambos simbolizam a Palavra de Deus. O primeiro, faz alusão à Lei; o segundo, à profecia. Na intenção de Mateus, Lei e Profecia representam a totalidade da Palavra de Deus. Ao lado de Jesus, eles indicam-no como a plenitude da Lei e dos Profetas, ou seja, Jesus é a realização plena das Escrituras, e as leva a seu pleno cumprimento através de seu modo de vida.
No entanto, a incompreensão e resistência dos discípulos diante do evento se fazem notar. Pedro interrompe a cena dizendo que a aquela experiência era boa (v.4). Muito se vê na atitude dele algo de negativo. Mas, na verdade, o discípulo fica empolgado com a experiência maravilhosa e propõe a Jesus fazer aí três tendas, de modo a poderem eternizar a convivência com ele, Moisés e Elias. O número três é importante nessa cena. Na simbologia numérica judaica, corresponde ao número do ser humano. Sendo assim, a mensagem da cena da transfiguração diz respeito ao sentido pleno da humanidade de Jesus revelada aos discípulos, que se deixam encantar por ele e querem contemplá-lo, a fim de serem transfigurados por Ele. Por isso, se trata de uma experiência que deve tocar lhes a e vida em sua completude.
Todavia, se faz necessário, diante desta contemplação da identidade de Jesus, recusar três atitudes que as personagens apresentam. A primeira é o comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo, que configura uma nova tentação. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo.
A segunda é o perigo do apego à tradição e não reconhecimento de Jesus como o centro da vida, ilustrada pela atitude de Pedro: “uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias”. Ocupando Moisés o centro da frase dita pelo discípulo, sendo elencada em segundo lugar, se induz a entender que a personagem principal para a qual se deve voltar a atenção seria Moisés. Uma vez que era costume colocar a pessoa de maior destaque e importância no centro da estrutura frasal. Ou seja, Jesus ainda não ocupava o centro na vida de Pedro e na dos discípulos, e sim a lei de Moisés.
O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não reconhecimento de Jesus como a verdadeira habitação de Deus na história – o Emanuel, Deus-Conosco. Ora, no Antigo Testamento, no contexto do Êxodo, a tenda era o lugar do encontro do povo com Deus. Para o evangelista, é a pessoa de Jesus que realiza este lugar de encontro com o Deus de Israel. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o revelador de Deus por excelência.
Outro símbolo importante, que aponta para a centralidade da pessoa e missão de Jesus, cume e ápice da Lei e da Profecia, é a “nuvem brilhante” que envolve a todos (Ex 24,15; Ml 24,30; 26,64). Dela, o Pai faz ouvir sua voz, declarando a autoridade do Filho: “Este é o meu Filho amado. Só nele eu encontro alegria. Fiquem atentos ao que ele diz” (Mt 3,17; ís 42,1). Deus O credencia como o único que tem a autoridade para falar e ser ouvido pela comunidade. É uma forma categórica de se afirmar que Moisés e Elias já disseram o que tinham para dizer; à comunidade cristã, só interessa ouvir o Evangelho do Cristo. A nuvem os envolve, indicativo de que os discípulos foram acolhidos por Deus, que fala de Jesus como seu Filho querido. O bem-querer do Pai pelo Filho, portanto, alarga-se a ponto de abarcar, acolher e abraçar os discípulos e toda a humanidade.
A experiência divina acaba, e os discípulos são, novamente, colocados na realidade. O toque de Jesus, que é a sua própria palavra, levanta e transforma a comunidade dos discípulos: “Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus” (v. 8). Moisés e Elias desapareceram para que as atenções dos discípulos se voltem somente para Jesus, o centro da vida e da comunidade que já não precisa mais dos antepassados. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem escuta o Filho, escuta-O também. Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz.
Só
pode assimilar e viver uma vida transfigurada, aquele discípulo que se propõe a
subir a montanha com Jesus e ouvir sua voz, ou seja, referenciar sua vida à
vida mesma de Jesus, a qual supera a Lei (Moisés) e a Profecia (Elias),
levando-as à sua plena realização. Assim, viverão uma vida verdadeiramente
transfigurada, que outra coisa não é senão viver a vida do Filho de Deus. Peçamos
a Graça de transfigurar-nos como o Senhor, e a força de recusar toda a
desfiguração que as estruturas e projetos contrários ao Reino oferecem.
Pe.
João Paulo Góes Sillio.
Pároco
do Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.
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