A liturgia do primeiro domingo da quaresma nos propõe a meditação do quarto capítulo do evangelho de Mateus. O autor inseriu aqui o episódio da tentação de Jesus. Para bem compreendê-lo faz-se necessário situa-lo no horizonte da obra do primeiro evangelista. No capítulo terceiro, tem-se a narrativa do batismo do Senhor, o ponto de partida para a sua missão. Em seguida, o Espírito, que havia inundado a Sua vida e o tinha investido para a obra messiânica, O leva para o Deserto. É importante compreender a intenção catequética do evangelista, a qual se revela também uma bonita composição literária. Ora, a comunidade de Mateus é uma comunidade judeu-cristã. As tradições religiosas e históricas de Israel lhes são muito caras e servirão de pano de fundo para que ele possa narrar a vida e obra Jesus de Nazaré para os iniciados na fé, em sua comunidade.
Como dito acima, a história, os personagens e a tradição religiosa de Israel são relidas a partir de Jesus. Com efeito, a narrativa do Batismo de Jesus (3,1-13) estabelece uma relação com o evento fundante da vida e história do povo de Israel enquanto povo: a travessia do Mar, por ocasião da fuga do Egito e do Faraó. Assim, como Israel passou pelas águas, Jesus refaz o mesmo caminho de seu povo, passando pelo batismo. Objetivamente, Mateus tem a intenção de explicitar para sua comunidade que Jesus é aquele que revive os passos, a história, a vida e o sofrimento do Povo da Aliança. Temos, então, como pano de fundo do capítulo 3 do evangelho, a passagem do Mar, em Êx 14,15-31.
O evangelista inicia o capítulo quatro informando ao leitor que “Jesus foi conduzido ao Deserto pelo Espírito (1a)”. Se no capítulo 3 Jesus em seu batismo revive a experiência do povo de Israel ao passar pelas águas, Mateus quer ensinar para sua comunidade que a experiência do povo no deserto, é igualmente vivida pelo Senhor. Jesus, no deserto reviveu o êxodo de seu povo. Antes, e fundamentalmente, viveu o êxodo de si, a saída/ruptura de tudo aquilo que lhe poderia dificultar a caminhada e a missão. Êxodo de si mesmo, no sentido de sair e desorbitar-se do que poderia se tornar um caminho oposto ao querer do pai. É importante sair, primeiramente de si e das situações, para poder sair ao encontro do projeto do Pai. Entretanto, nos mostrará a narrativa, Jesus não cometerá os erros de seus antepassados na relação com Deus e com a Aliança.
A narrativa se dá no deserto. Na tradição bíblica, como muito já refletimos, mas é sempre bom fazer memória, o deserto é o lugar apropriado de se fazer a experiência de Deus. É o lugar, por um lado, do estabelecimento da Aliança entre YHWH e o povo (Ex 19 – 21). Mas, por outro lado, lugar de restabelecimento da Aliança rompida pelo povo (Os 2,16). O lugar do retorno. Mas, também de prova e de sofrimento. Por isso, na ambivalência do deserto (lugar teológico, mais do que geográfico) o homem fiel pode fazer a experiência de Deus.
Mateus aponta para esse significado do Deserto quando afirma que durante quarenta dias e quarenta noites Jesus fora tentado ali. O número 40 evoca a vida a experiência de sofrimento do povo de Israel no deserto. Ser tentado por quarenta dias alude para a situação de uma tentação constante e cotidiana. O verbo utilizado pelo evangelista peiráso (gr. πειράζω) pode ser aplicado para duas situações: a tentação que Deus realiza e aquela realizada pelo sedutor e adversário, Satanás. Como conceber a tentação que vem da parte de Deus? Simples: esta tentação da parte de Deus, chamamos prova. É atitude de Deus em submeter à prova a fidelidade do justo. Portanto, uma ação sempre benevolente e pedagógica de Deus, em relação ao ser humano. É a prova, que adquire, nesse sentido, caráter positivo e instrutivo. Neste processo, em nenhum momento se colocará em jogo ou em risco a integridade da pessoa/discípulo, ou mesmo sua salvação. Tampouco terá caráter punitivo. Por outro lado, a tentação como proposta do Sedutor será sempre aquele artifício, sedução, ou distração que visam romper a relação entre o ser humano e Deus. Colocando a pessoa, inclusive, na contramão do projeto de Deus. Será a lógica da cisão e da ruptura com Deus.
Se faz necessário compreender a figura de Satanás/Diabo. Sempre na teologia bíblica deve se compreender esta figura como “aquele” que se opõe (opositor) ao projeto de Deus, e que causa divisão (divisor). O diabo, nesta narrativa, tem a intenção de dividir e contrapor Jesus ao Pai e Seu projeto. Procuremos progressivamente eliminar de nosso imaginário aquela figura horrorosa de chifre e cara feia, com um tridente na mão. Isso não é cristão. Aliás, a bíblia nunca se preocupou em pintar dessa forma aquele que faz frente aos projetos de Deus. Até porque, personagens muito humanos desempenharam no decorrer das narrativas bíblicas (e nas grandes narrativas da história, não nos esqueçamos) a função de oposição em relação à Deus. Em outra oportunidade abordaremos mais a fundo esta questão. Para a compreensão deste texto, o que dissemos já é suficiente.
Basta ter presente, que ao longo do ministério de Jesus podemos perceber a constante tentação do messianismo glorioso, da ruptura/cisão diabólica com o projeto do Pai; da autossuficiência e auto-referência; da lógica do poder a qualquer custo; da dominação do outro e de sua consciência, seja através da violência e da força, seja mediante o entorpecimento religioso. É isso que a personagem do tentador/sedutor/divisor coloca diante dos olhos do homem Jesus. Por isso, o texto que temos para a nossa meditação não quer mostrar uma situação estanque e pontual da vida do Senhor, mas o que o acompanhará durante toda a sua vida e ministério.
No v.2, Mateus nos informa que Jesus jejuou durante os 40 dias de permanência no deserto. O jejum deve ser visto muito além de uma simples privação ou prática exterior. O jejum praticado por Jesus é a capacidade da descentralização ou o desorbitamento de si mesmo: a experiência de desreferenciar-se (tirar a referência de si) para referenciar-se em Deus e seu projeto. A primeira etapa de seu êxodo pessoal. Nesse sentido o Jejuar significa dizer não a toda possibilidade de posse, de acúmulo, de poder, que tendem a tomar o lugar de Deus na vida do homem, fazendo-o centrar-se em si. O Jejum deve abrir-nos para o outro, em atitude de solidariedade humanizadora. Descentralizar e desapoderar a si mesmo para promover e humanizar o outro que nada tem ou tem pouco. É o primeiro passo para a saída de si, em direção à Deus. E de nada adianta jejuar se a carne do irmão é devorada até mesmo pelo meu acúmulo. Abstenho-me, mas não reparto.
Agora sim, analisemos as tentações. Não percamos de vista aquela ideia chave de Jesus que revive e refaz, por um caminho original e novo, a história e a vida de seu povo. A primeira tentação sofrida por Ele é a da fome. Nela subjaz a tentação do poder espetacular, do messianismo glorioso e exibicionista. Satanás O tenta a transformar a pedra em pão. Ou seja, a sedução para usar em benefício próprio o poder recebido do Pai, visando ter só para si. Ele é tentado a orbitar e curvar-se em si. A fechar-se sobre o dom de si.
A esta tentação Jesus responde que o homem deve centrar-se sobre a Palavra de Deus – ou seja, Deus mesmo: Se Ele caísse na tentação do messianismo baseado no ter, negaria o projeto do Pai que exigia dele caminhar na pobreza, centrando seu coração unicamente no Pai. O Pão que o Senhor se alimenta é o da palavra. Ele refuta a tentação citando Dt 8,3 - "O ser humano não vive somente de Pão, mas sim de toda palavra que procede da boca de Deus". Recusando, assim, o caminho do materialismo crasso, onde as pessoas centram seus corações nos bens deste mundo e se descuidam da justiça e do amor. A tentação do ter.
A segunda tentação aparece no v.5. Ato continuo, o Diabo leva Jesus para Jerusalém, até a parte alta do templo. Ele propõe a Jesus que se jogue dali, porque se de fato fosse filho de Deus, nada aconteceria a ele pois os anjos viriam em seu auxílio. Mateus cita o Sl 91. Esta tentação sofrida faz recordar ao discípulo o quanto o povo de Israel assumiu esta postura em relação a Deus em todo o AT. O senhor, pelo contrário, não entra nessa lógica. Ele rebate o tentador citando Dt 6,16, onde se afirma: "Não tentem o Senhor, seu Deus, como vocês o tentaram em Massa" (Nm 20,1-13). Ele refaz e reescreve a história de Israel a partir de sua vida centrada e orbitada em Deus, de sua fidelidade ao projeto do Pai.
Em relação a esta tentação, existe outro ensinamento nas palavras de Jesus que Mateus faz questão de recordar para sua comunidade: esta resposta-atitude exemplar do metre pretende frear a irresponsabilidade e leviandade na vivência da fé, do discipulado e da missão; colocar limite à ideia de que se podem fazer coisas levianas ou irresponsáveis no nível de nossa vida ou em relação aos outros e depois clamar “Deus me acuda”; eliminar aquele pensamento comum, “faço meus cinquenta por cento, e Deus faz o Dele”. Isso é errado. É o mesmo que conceber um Deus a altura de nossas irresponsabilidades; um deus “bombeiro”. A resposta de Jesus é um freio a essa inconsequência, porque para segui-lo se faz necessário ir após ele, tomar a cruz: medir as responsabilidade e consequências para que não ocorram arrependimentos ou frustrações. A tentação do ser.
A terceira tentação nos é mostrada no v.8. Jesus é levado até o alto de uma montanha é lhe é oferecido todos os reinos do mundo e a glória inerente a eles. Notemos que a narrativa apresentada por Mateus desenvolve-se num “creccendo”, isto é, as tentações, uma mais elevada que a outra, coloca Jesus cada vez mais próximo de tomar o lugar do Pai, tornando-se independente dele, como os primeiros pais no paraíso (Gn 3,5). O diabo diz que tudo aquilo será de Jesus se ele se prostrar em adoração. O tentador tem a pretensão de ser a origem de tudo, inclusive do poder de Jesus, quando este, em sua consciência, sabe que tudo recebeu das mãos do Pai (Mt 28,13). Na vida de Jesus, e posteriormente, no itinerário catequético de Mateus, as tentações sofridas, em última analise, pretendiam convence-lo de realizar sua tarefa messiânica fugindo da consequência da sua fidelidade, a cruz.
No v.10 Jesus dá um basta às investidas do tentador, ordenando-o que se afaste. Jesus cita a Lei: somente a Deus devemos adorar e prestar culto (Dt 6,13). A tentação da idolatria foi uma constante na vida do povo de Israel, tanto no deserto quanto já instalado na terra. Ela foi a causa da ruína do povo. Também teria sido a causa da ruína de Jesus. Porém, o Seu coração está totalmente enraizado no Pai. Sua consciência e sua vida estão num êxodo em direção ao Pai e ao projeto do Reino.
As tentações de Jesus foram, e sempre serão as tentações dos discípulos de ontem, de hoje e de todos os tempos e lugares. Mateus quer ensinar para sua comunidade que se o mestre foi tentado durante sua vida, igualmente acontecerá na vida do discípulo. O mestre foi continuamente seduzido a abusar de sua condição de filho de Deus. Porém, Sua atitude foi de firme resistência, tornando-se, assim, um modelo para a comunidade cristã, tentada por toda espécie de falsos messianismos.
Do mesmo modo que Jesus venceu
as tentações em sua vida, a comunidade dos discípulos e discípulas pode superar
as ilusões das tentações: tendo o projeto de Jesus e do Pai diante dos olhos, o
pão da Palavra, a consciência da missão e da vida. Que o senhor nos acompanhe em
nosso êxodo quaresmal.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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