sábado, 18 de fevereiro de 2023

VII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 5,38-48:

 


Os versículos propostos pela liturgia dominical deste sétimo domingo do tempo comum são, na verdade, uma ressonância das bem-aventuranças acerca dos mansos (Mt, 5,5) e dos fazedores de paz (Mt 5,9). A vivência deste projeto de Jesus coloca, nesse sentido, o discipulo na condição de semelhança com o Pai. Por isso, sua meditação pode ser iniciada a partir do último versículo do texto litúrgico: “Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (v.48). Este dito de Jesus ajuda a iluminar os versículos anteriores. Primeiramente, se faz necessário compreender o que Ele quer dizer por “ser perfeito” a semelhança do Pai do Céu. No texto de Mateus ocorre uma alteração de Lv 19,2 (“Sede santos como eu, vosso Deus, sou santo”).

Na lei de Moisés, todos os mandamentos de Deus terminavam com a formulação “Sede santos como eu, vosso Deus, sou santo”. Mas este convite não aparece no ensinamento de Jesus. Ele não convida a ser santo conforme a mentalidade e comportamento religioso de seu tempo, ou seja, com todo aquele código de conduta ritual e moralista contidas nas leis de purificação, na separação de tudo aquilo que pudesse ser imundo ou profano. Conforme o costume religioso do tempo de Jesus, estes comportamentos eram tidos como garantidores de um status de santidade. Aqueles que os cumpriam estritamente eram considerados como santos, e, portanto, tidos como pessoas separadas e intocáveis. Já aquele que não conseguia viver as prescrições da lei eram considerados como pecadores, profanos e impuros. Se, ilusoriamente, os fazia crer que se aproximavam de Deus através destes comportamentos, na verdade se afastavam dos outros. Em virtude dessa compreensão e vivência equivocadas acerca da santidade, é que Jesus convida o discípulo e a multidão a outra atitude: assimilar a perfeição do Pai Celeste.

A perfeição do Pai é aquela de um amor compassivo que se estende a todos, sem distinção. Um amor que não considera os méritos das pessoas, mas suas necessidades. A esta necessidade, Deus, o Pai do céu, responde com um amor incondicional. Quando o discípulo assimila este agir de Deus, assemelha-se a Ele na perfeição. E poderá viver com autenticidade e força de sentido tudo quanto se desenvolve nos versículos anteriores desta perícope. A perfeição do discípulo, a semelhança de Jesus e do Pai, o levará a viver os versículos 38-47.

"Vós ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’ (v.38). Jesus se põe a reinterpretar a lei de Talião, prescrita no código legislativo de Hamurabi (uma compilação de leis babilônicas, datadas entre 1700-1800 a.C, que inspiravam até mesmo os povos vizinhos ao confeccionarem suas leis). Esta lei, muito conhecida, foi um marco legislativo positivo para época em que foi elaborada, pois ela colocava limite à prática da vingança e da violência indiscriminada, difundida na época. Reprimia os excessos e regulava as insuficiências legislativas. Dizendo de outra forma, aquele dispositivo legal prescrevia isso: “nada menos do que isso. Tampouco, nada mais do que isso”. Por exemplo, em Lv 24,19-21, “Se alguém fizer uma ferida ao seu próximo, far-se-á o mesmo a ele: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; conforme o dano que tiver feito a outro, homem, assim se lhe fará a ele. Quem matar um animal pagá-lo- á, quem matar um homem deverá morrer”.  

Todavia, ainda se dava margem a uma “regulamentada” vingança e violência "legal". Essa atitude o discípulo não pode assumir. Por isso, Jesus reinterpreta esta prescrição com aquela formula de superação/reinterpretação já conhecida, “Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda! Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto! Se alguém te forçar a andar um quilômetro, caminha dois com ele! Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pede emprestado” (vv.38-42). Os membros da comunidade das bem-aventuranças, chamados a se tornarem construtores da paz, são convidados a quebrar com a ótica do rancor, do ressentimento, que desembocam na violência. Um chamado a conservar um comportamento ativo, que se manifesta na constante tomada de iniciativa. Ou seja, Jesus trata de introduzir na comunidade dos discípulos – e, Mateus, por sua vez, na comunidade a qual destina seu evangelho – um comportamento novo, inédito. 

Atenção! Jesus não convida ou legitima uma atitude passiva diante do mal e da violência, mas ativa. Não ao vitimismo, mas a reafirmação da própria dignidade. Neste caso, perde a dignidade o violento, o agressor, o malvado. E, não quem está no lugar da vítima. Para Jesus, é sempre o violento a perder-se, pois ele mata a relação, rompe com a condição de filho em relação ao Pai, e com a fraternidade, no relacionamento com o irmão. A dignidade e a condição de filho e de ser humano, bem como a liberdade ainda permanecem intactas e indestrutíveis naquele foi tornado vítima pela violência.

A única vez que Jesus foi ferido por uma bofetada, ele mesmo não virou o rosto. Em Jo 18, no processo judaico, o soldado do templo dá um tapa em Jesus. A bofetada desferida com a mão direita, “com o peito da mão”, era é a pior e mais vexatória forma de agressão. Ele apenas pondera: “Se respondi mal, mostra-me em quê. Mas se respondi bem, por que me bates?” Ou seja, Ele induz o soldado a raciocinar sobre o fato. Faz-lhe ver a incoerência da sua ação e da sua violência desmedida, pairando um silêncio constrangedor na cena, que é interrompido pela atitude do sinédrio de levar Jesus à Pilatos, privando, assim, o soldado de pensar e repensar acerca de sua conduta violência. Uma pessoa que pensa sempre será problema para o sistema, para status quo, e, também, para a religião. Importante fazer esta intertextualidade com o evangelho joanino, a fim de perceber a atitude de Jesus como paradigmática para o discípulo. Este não pode ser passivo, mas ativo ao contexto e à realidade que o cerca.

 Não se pode interpretar de modo literal os ditos de Jesus, mas capitar o espírito do que está a dizer. Estas orientações são uma forma de promover no discípulo uma atitude sempre e constantemente novas: romper com a espiral da violência. Por isso, diante da máxima violência, o discípulo do Reino não pode responder com a mesma violência, mas com atitudes que desmontam e anulam o violento. Romper com a lógica da violência, esta deve ser a atitude da comunidade dos bem-aventurados. Ter a capacidade de renunciar inclusive aos próprios direitos, em favor de quem não os possui. Ter uma nova atitude! Talvez, uma máxima ajude a guardar bem estas afirmações de Jesus: ele pede para que o discípulo seja sempre bom, sem ser bobo. 

Jesus continua a interpretar a lei. “Vós ouvistes o que foi dito: 'Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo! 'Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (v.43-45). Parece que o Senhor pede sempre o impossível: amar os inimigos, como sinal de pertencimento a esta nova comunidade do Reino. O amor aos inimigos é o ponto culminante e, pode-se dizer, nevrálgico da mensagem do mestre. O evangelista coloca junto duas realidade oposta, o amor e o ódio. Amar o próximo, para o judeu era muito fácil, pois era considerado próximo aquele que pertencia ao clã, à tribo, ao mesmo povo, nacionalidade e religião. Neste sentido, a hostilidade contra o estrangeiro ou ao inimigo da religião, poderia ser entendida como o ato de odiar a um inimigo.

O evangelista utiliza o verbo agapao (gr. ἀγαπάω), que indica aquele amor qualitativamente diverso, que Jesus adota para si:  atitude de doar e entregar-se em relação, amor e serviço, de bem comum ao outro, que independe da qualidade ou do mérito quem se torna seu destinatário. É aquele amor oblativo que Jesus mesmo vive. Mas, a qualidade do amor existente no discípulo se verifica na capacidade que ele tem de rezar pelo inimigo.

Ora, a oração é aquela atitude de íntima relação com Jesus e o Pai. É o diálogo e a presença sempre constante entre ambas as partes: o ser humano e Deus e, vice-versa. Logo, “rezar pelos inimigos” é a corajosa atitude de colocar em meio a relação (oração) com o Pai, a pessoa do outro, principalmente daquele ou daquela que pode desestabiliza-lo enquanto discípulo e pessoa. Trazer para dentro desta relação com Deus aqueles e aquelas que não se encontram inseridos nas  relações pessoais. Falar a respeito do outro para Deus. De modo a aprender e assimilar as mesmas atitudes de Jesus e do Pai. Nisto consiste ser filho do Pai Celeste. Pois a filiação, no tempo e nos costumes da época, não estava somente ligada ao fato do sangue, da biologia. Ser reconhecido como filho de alguém significava ser reconhecido como seu fiel imitador. O filho só era considerado enquanto tal, porque em suas atitudes encontravam-se refletidas e amplificadas as mesmas atitudes de seu pai. É isto que Jesus quer ensinar para seus discípulos de todos os tempos e lugares.

Jesus revela aos seus a imagem de um Pai que não deixa condicionar o seu amor ao comportamento do ser humano. E a todos igualmente comunica seu amor. Cabe à pessoa acolhe-lo ou não. Assim, o Senhor pede ao discípulo para que imite o agir do Pai. Quando isso acontece, então a vida dele se torna semelhante a vida do mesmo Jesus e do Pai. Portanto, uma vida perfeita.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco e reitor do Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

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