sábado, 29 de maio de 2021

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – Mt 28,16-20:


 

A perícope que solenidade da Santíssima Trindade nos apresenta para a meditação é a conclusão do Evangelho segundo Mateus. Apenas uma advertência acerca deste texto. Para compreendê-lo, se faz necessário lançar um olhar para toda a catequese mateana. O Primeiro Evangelho tem por finalidade “fazer discípulos-missionários todos os povos”. Mas para que a pessoa possa vivenciar a missão recebida por Jesus, ao final do Evangelho, deverá percorrer o caminho do discipulado. E não poderá furtar-se ao fato de que este discipulado-missionário é perpassado pela dinâmica da Cruz. Ora, a narrativa da paixão, morte e ressurreição de Jesus, na perspectiva de Mateus funciona como um dos eixos centrais de seu evangelho. O discípulo só poderá assumir a missão depois de percorrer a vida de Jesus e tê-la como seu modelo.

No discurso (ensinamento) missionário de Jesus em Mt 10 – 11,1, o mestre termina suas palavras sobre a Missão sem enviar os discípulos. Ele mesmo sai em missão, e em seu seguimento vão os discípulos, para aprenderem com Ele. Os discípulos só serão enviados, quando forem constituídos apóstolos (sem esquecer a condição discipular), ao final do texto de Mt 28,16-20, depois de passarem pelas mesmas experiências que Senhor passou, inclusive a Cruz. Assim sendo, este capítulo final do evangelho mateano funciona como síntese de todo ensinamento de Jesus. 

Compreendida esta peculiaridade do Evangelho segundo Mateus, por assim dizer, somos mergulhados no horizonte do texto. O contexto amplo é o da experiência da comunidade dos discípulos com o Senhor Ressuscitado. O contexto imediato é o do discurso de envio: Jesus Ressuscitado envia os onze para realizar o que ele já havia feito. Não se trata de um discurso de despedida, porque Jesus não se vai, mas permanece com eles.

“Os onze discípulos foram para a Galiléia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado” (v.16). Os discípulos já não são Doze. O número dos discípulos não foi reconstituído. Doze, na simbologia do AT aludia ao antigo Israel, que durante a pregação e missão de Jesus é chamado a se tornar o novo povo de Deus. De fato, doze representava Israel visibilizado pelos discípulos de Jesus. Na atual configuração, onze, significa que o Novo Israel não foi reconstituído ainda e, portanto, a mensagem de Jesus se torna universal. Destina-se para toda a humanidade. O indicativo da Galileia, mencionada por três vezes somente neste relato pascal, representa a ruptura com Jerusalém. Jesus não se manifesta ressuscitado na cidade santa, no evangelho de Mateus, mas lá no lugar onde tudo começou. Uma oportunidade de releitura, ressignificação da vida e da história, e de retorno à experiência fontal com Deus, em Jesus.

Mateus informa aos seus leitores duas coisas importantes. Primeiro, o lugar onde os discípulos se encontram com Jesus: a montanha, na região da Galileia, que o Senhor mesmo lhes havia indicado. E é interessante que o evangelista usa o artigo definido “o” para indicar que não é qualquer lugar. Todavia,  Jesus não havia indicado nenhum monte. Por que Mateus faz isto? O significado não é topográfico, mas teológico. Trata-se de um lugar privilegiado para se fazer experiência com Deus.

No AT Deus se manifestara muitas vezes sobre a montanha. A Lei foi dada a Moisés na montanha do Sinai. O monte, neste evangelho, é o monte das bem-aventuranças, onde Jesus inaugurou sua mensagem de salvação. A versão mateana apresenta oito ditos de Jesus. O número oito é o número da ressurreição do Senhor: o primeiro dia da semana, depois do sábado, era, na verdade o oitavo dia, que na tradição das comunidades cristãs foi reinterpretado como o Primeiro dia, o dia da nova criação realizada por Deus através da obra de Jesus, que culmina na ressurreição.

O autor informa que os discípulos viram a Jesus Ressuscitado e se prostraram. O verbo ver não indica uma capacidade física e biológica, mas uma experiência que se dá desde a profundidade do coração do homem. Mateus relata, ainda, o gesto da prostração. Prostrar-se é sinal de adoração e de convicção na ressurreição e na divindade de Jesus. Aqui, o evangelista emprega o mesmo verbo (gr. προσκυνέω/proskinêo) que tinha usado para indicar a atitude dos magos quando visitaram Jesus recém-nascido em Belém (cf. Mt 2,2).

Jesus, então, lhes diz: “Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra”. Aqui, o evangelista faz eco a Daniel, que retrata a personagem “Filho do Homem”, o qual recebeu de Deus todo o poder, no céu e na terra. Mas o poder/autoridade que Jesus recebe não é para servir-se a si mesmo, e sim para colocar-se à serviço de todos. E ao interior da comunidade de Mateus, a autoridade é a de Jesus, e não mais a do legalismo da lei mosaica.

Jesus continua: “Ide e fazei discípulos meus todos os povos”. O evangelista resgata o imperativo de “Ide”. É uma ordem, um mandato. Que se destina a todos os povos (lit. todas as nações, que alude aos pagãos). “Fazer discípulos”, significa transmitir a todos (sem exceção) o novo modo de viver e de relacionar-se com Deus, através do modo de vida de Jesus. “Batizar” significa imergir, mergulhar, ou seja, inserir as pessoas na vida, na realidade mesma de Deus, é o que significa “em nome do Pai, do Filho e do Espírito”. A palavra “Nome” indica a realidade mais profunda e a identidade do ser. Ou seja, fazer experimentar a realidade profunda de Deus e de quem é Deus.

“Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (v.19). Devemos entender que na cultura e língua hebraica não existe a palavra genitor (genitores, no plural). Existe somente pai e mãe. Há um pai que engendra (gera) uma vida no seio da sua mulher, a mãe, que por sua vez é responsável em dar a luz, a parir a criança. Portanto, a função de gerar a vida pertence, no ambiente cultural judaico, ao pai. E do Filho: o Filho é aquele que, acolhendo esta força (energia) geradora da vida do Pai, a coloca em prática plenamente. Por isso, o Filho é a realização plena do projeto do Pai. E do Espírito Santo: O Espírito Santo é aquela força que permite a toda criatura tornar-se filho de Deus. Este Espírito se chama santo não só por sua qualidade divina, mas por sua tarefa de Santificar. Quando o homem acolhe este Dom divino do Espírito do Pai e do Filho, ele, gradualmente, se torna liberto da esfera do mal e das trevas. O Senhor envia sua comunidade para que ela dê testemunho da experiência de ter sido mergulhada, imergida, entranhada (batizada) no íntimo da vida do Pai. As pessoas que se encontrarem e aderirem ao Evangelho de Jesus deverão fazer a experiência de imergir, mergulhar, entranhar-se em Deus mesmo, em seu Amor.

O evangelista pretende, com as últimas palavras de Jesus, “Estarei convosco todos os dias até que o tempo esteja pleno”, indicar uma qualidade da presença de Jesus, e não indicar um período cronológico ou determinado da presença. Jesus, na verdade, está assegurando à sua comunidade que se ela colocar em prática as bem-aventuranças, fazendo com que outros tenham igualmente acesso a elas e as pratiquem, fazendo experiência de Deus como fonte de vida e de Amor, Sua presença ao interno da comunidade será garantida. Mateus assume, novamente, o fio condutor de sua catequese, o tema do Emanuel, Deus-Conosco, realidade revelada por Jesus: através do dom de sua existência e missão, Deus está com a humanidade, caminha com ela. Deus está conosco.

Jesus envia os seus para irem, saírem, romperem com as mentalidades e as estruturas religiosas caducas, para fazerem discípulos Seus todos aqueles que optarem por viver o sentido existencial da Sua vida, inserindo-os – batizando, mergulhando-os – na vida mesma de Deus.

Em Jesus, não se procura mais a Deus, e sim O acolhe. Não há mais que caminhar até Deus, mas Nele e com Ele, em Jesus, dirigir-se à humanidade. O homem não vive mais para Deus, senão que em Deus mesmo. Esta é a implicação quando se confessa a Jesus como Emanuel, e é isso que Mateus visibiliza através de seu Evangelho.

 Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP

sábado, 22 de maio de 2021

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE PENTECOSTES – Jo 20,19-23:


A festa do Pentecoste recordava, para o povo de Israel, num primeiro momento de sua história, a festa das primícias, os primeiros dons das colheitas, apresentadas a Deus após cinquenta dias da semeadura. Com os eventos pascais do Êxodo, no AT, a dimensao agrícola recebeu um novo significado: o dom da Lei comunicada ao povo no deserto. Este sentido tornou-se mais forte na vida e na memória de Israel. Todavia, enquanto a comunidade de Israel celebrava a entrega da Lei no Sinai, a comunidade de Jesus celebrava o dom do Seu próprio Espírito. Para as comunidades cristãs, o pentecoste da antiga lei se reveste de um novo e pleno sentido: o dom não mais de uma lei externa, mas do próprio Espírito – dinamismo gerador de vida e de amor – de Deus, por meio de Jesus. O evangelho da liturgia deste dia santo, que coroa toda a celebração do mistério pascal de Cristo – paixão, morte, ressurreição/ascensão e pentecoste –, recupera a leitura de Jo 20,19-23, já meditada no segundo domingo pascal. Como o Espírito do Ressuscitado tudo ressignifica, o texto de hoje deve ser lido nesta mesma perspectiva.

O pentecoste joanino coincide com o dia mesmo da ressurreição de Jesus. O evangelista pretende distanciar-se das festas judaicas, uma vez que elas sempre foram ocasião de controvérsia e conflito para Jesus. O Quarto Evangelho pretende, ao situar o Dom da nova e definitiva Lei, o Espírito, no dia da ressurreição para mostrar aos seus leitores que todo o sentido da antiga lei e do sistema cultual do povo de Israel encontram-se superados pela vida e obra de Jesus. Por isso, o dom do Espírito se dá no domingo pascal e não cinquenta dias depois, conforme narrado por Lucas.

João situa o leitor no tempo e no espaço, “Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores. O primeiro dia da semana, o qual revela-se também o último, o oitavo. O número oito na tradição das primeiras comunidades simboliza a criação levada à plenitude. Mas a variação temporal é importante. A partir deste novo dado, João dá mostras de que a comunidade está despertando de seu sono de morte. Está fazendo, processualmente, a experiência da ressurreição. Ocorre, igualmente, a transição de cenário. O espaço já não é o mesmo; a comunidade dos discípulos não se situa mais no sepulcro, mas noutro espaço, o da própria comunidade. Isto já é um sinal de que ela está vencendo as forças de morte.

“Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v.1b), mostra que, mesmo a comunidade tendo dado os passos no processo da experiência da ressurreição, ainda estava bloqueada pelo medo. Ora, Na Teologia Bíblica, o Medo é sempre contrário à Fé. Esta condição amedrontada acaba sendo incompatível com o desenlace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). O medo preocupa, impede a missão; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a ausência do Senhor. Todavia, é preciso fundir os horizontes. O leitor é chamado a unir o panorama temporal da comunidade dos discípulos, que fazia a experiência com o ressuscitado com a realidade da comunidade joanina dos anos 90 d.C, que sofria perseguição por parte dos Judeus e das autoridades romanas.

Eis que Jesus manifesta-se no meio deles, conforme a narrativa. É importante a informação dada pelo evangelista. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado. Na comunidade do Ressuscitado (e na comunidade joanina) não existe supremacia, nem relações piramidais. Ela é uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: Jesus. Encontrando-se com os discípulos (no meio deles), o Ressuscitado realiza neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que recupera o ânimo da comunidade fracassada e amedrontada.

“A paz esteja convosco (gr. ειρηνη υμιν, Eiréne ymín)”. À primeira vista, isso parece a saudação comum do ambiente bíblico. Mas esta saudação se repete por três vezes, o que indica um dom que restabelece a plenitude do ser humano. O número três, na bíblia, é símbolo do ser humano em sua tríplice composição, conforme a antropologia judaica (corpo, alma e espírito). Toda condição humana, em todos os seus dinamismos é, portanto, abraçada pelo dom de Jesus. Por isso, esta primeira palavra dirigida por Jesus aos seus possui conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O Shalôm (שָׁלוֹם) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (hbr. Shelamim), cuja retribuição que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz.  Aqui, parece implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastam com o medo mencionado no início. O Jesus joanino, ao desejar a paz pretende ensinar que através do Dom da vida existencialmente vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada. Mas nada de inconsequências! A passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia, por isso a paz é doada novamente no v.21a, para equilibrar a comunidade. A paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas.

Jesus mostra-lhes, então, as mãos e o lado marcados e feridos pelos pregos e pela lança. É intenção de João mostrar a continuidade entre Jesus Crucificado e Ressuscitado. E os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. As mãos são sinais do serviço, do agir, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração. Amor traduzido em serviço é o sinal que o Espírito de Jesus comunica e inscreve na vida dos discípulos e da comunidade do Reino.

Ao enviar os discípulos, em continuidade à sua missão, na comunhão de amor e de vida com o Pai, Jesus sopra sobre eles seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. Por isso, a ressurreição e doação do Espírito por parte de Jesus é uma nova Criação. Mas, ao receber o Espírito Santo – dinamismo de vida e de amor de Jesus – a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida.

A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). O Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo; transformar as realidades. O que perdoa os pecados é o amor de Jesus; logo, ficam sem a experiência do perdão, os discípulos que recusam-se a amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade e do discípulo diante do mandamento do amor, e quando existir a atitude de negação do fiel em relação à pessoa de Jesus.

Nesse sentido, o envio e o mandato que Jesus confere à comunidade não são para julgar ou condenar, mas oferecer a todas as pessoas uma proposta de plenitude de vida. Desta vida no Espírito de Jesus somos tornados participantes pelo batismo-crisma: fomos investidos pelo Espírito, que inscreve a letra de Cristo na página de nossa vida, para vivermos Sua própria vida. O Espírito Santo inscreve (escreve a partir de dentro) Cristo em nós. A este Dom que o Senhor nos dá, chamamos Graça. A Graça é Cristo em nós através de seu Espírito, que nos faz filhos, a fim de vivermos como este mesmo Filho de Deus. 

Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 15 de maio de 2021

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR - Mc 16,15-20:

 


O evangelista Marcos conclui seu evangelho com o anúncio da ressurreição de Jesus às mulheres, incumbindo-as da missão de comunicar aos onze, em Jerusalém, que se dirijam para a Galileia. O ressuscitado os encontraria lá. No entanto, amedrontadas, as mulheres fogem. E, abruptamente, Marcos interrompe a narrativa, pondo um ponto final em seu evangelho (Mc 16,1-8), o que chamamos de final original. Este final suscitou certo incômodo nas comunidades cristãs do primeiro século. Por isso, a Igreja, no século II acrescentou um segundo final ao primeiro evangelho, considerando-o como final canônico, oriundo da tradição eclesial das comunidades pós-pascais. Trata-se do texto de Mc 16,9-20. A solenidade da Ascensão, no entanto, serve-se dos versículos finais deste capítulo dezesseis, Mc 16,15-20.

No v.15, o evangelista recorda a ordem de Jesus: devem sair – andar – ir, e não ficarem parados e fechados num único lugar, a fim de proclamar a Boa Nova. Através deste mandato, Marcos recorda os primeiros capítulos de seu evangelho, a missão dada aos quatro primeiros: pescar homens. Devem ir aos homens e mulheres de seu tempo e retirar lhes das situações de morte e dar lhes vida (Mc 1,16-20). Iluminados pela Ressurreição/Ascensão de Jesus, os discípulos são convidados a ressignificar e reanimar a própria vida e a Missão recebidas. Mas em que consiste esta Boa Noticia? Consiste no Amor de Deus que atinge toda criatura.

Dos v.16-18, o Jesus de Marcos elenca os efeitos do anúncio da Boa Noticia naqueles que aderiram a ela. “Quem foi batizado será salvo. Quem não foi já está condenado”. Este dito do Senhor merece atenção e deve ser compreendido, de modo a evitar qualquer mentalidade exclusivista e excludente. Aquele que confronta sua consciência com a opção que Jesus representa, percebendo seu significado vital, e exprime essa sua consciência através do batismo já está salvo. Aquele que recusa e faz resistência a Jesus e seu modo de vida, se exclui da Salvação.

Em relação aos sinais que acompanham a vida do fiel, decorrentes da opção fundamental por Jesus e seu projeto, serão os mesmos realizados por Ele durante sua vida e ministério. Marcos elenca cinco: expulsar demônios; falar novas línguas; pegar em animais peçonhentos e beber venenos; impor as mãos sobre os enfermos para fazer lhes bem. Eles devem ser compreendidos bem, e dentro do horizonte do texto.

1) Expulsar demônios consiste na atitude de libertar as pessoas de todas as forças e ideologias funestas, ou sistemas, anti-projetos e situações que impedem a acolhida do Reino de Deus, em Jesus. Para fazer a experiência com Deus, em Jesus, se faz necessária a plena liberdade. E não se trata, aqui, de exorcismos rituais (e aqui não posso entrar no mérito desta questão, deixo para um artigo que estou escrevendo). Com efeito, “expulsar demônios”, de acordo com o horizonte do texto, significa eliminar o mal do mundo e comprometer-se com o Bem. Aquele que aderiu, real e profundamente, ao Evangelho elimina o mal de sua vida, e da vida de seu próximo. O amor é o antidoto frente ao mal.

Em relação ao 2) “falar novas línguas”, este sinal aponta, na verdade, para realidade da salvação e missão universal, onde o Evangelho encontra-se com a cultura, com a realidade, com homem concreto de todos os tempos e lugares. Uma boa noticia que não exclui, antes, inclui. Para bem compreender estes sinais importa recordar que eles não são dons extraordinários com os quais Jesus dota os discípulos, mas são símbolos de um compromisso: gerar e transformar vidas.

Ninguém deverá ser inconsequente ao manusear 3) animais selvagens e peçonhentos, tampouco beber, como tira-gosto, algum tipo de veneno (4). Serpente e veneno simbolizam, no horizonte cultural da época, tudo o que pode causar mal e ferir. O discípulo que aderiu ao projeto de Jesus deverá ser aquele que se compromete em transformar situações de morte e de perigo em situações e condições de vida.

5) Impor as mãos sobre enfermos para fazer lhes bem: é interessante que o evangelista não use, no original em grego, o verbo “curar (Therapéuo)”, mas a expressão “fazer bem (gr. καλῶς ἕξουσιν / kalós éxousin)”, porque o gesto de impor as mãos, não necessariamente garante a cura. Ora, Jesus não curou a todos! Mas trata-se de um gesto de solidariedade, porque o enfermo, no tempo e na sociedade de Jesus era tido como pecador público. A enfermidade era concebida como fruto de um pecado cometido pela pessoa ou por seus antepassados. Quando Jesus realiza um gesto terapêutico, mais do que a cura física, ele restaura a dignidade da pessoa, reinserindo-a na vida social, novamente. Impor as mãos para fazer-lhes o bem, significa, portanto, a capacidade que o discípulo e a comunidade possuem de se solidarizar, reintegrar e gerar vida.

Depois de comunicar lhes a missão, Jesus foi elevado aos Céus. É necessário compreender a cosmologia da época, isto é, a concepção de universo, espaço e tempo do povo da bíblia. O céu é o lugar da habitação de Deus. É âmbito divino e expressa a condição divina.  “E sentou-se à direita de Deus”. Jesus dissera aos discípulos que veriam o Filho do Homem sentado a direita do Poder. Sentar-se à direita acena para uma posição de honra muito cara às monarquias vizinhas ao povo de Israel, o qual assimilou esta imagem em sua cultura e sua religiosidade.

Aplicando essa imagem a Jesus, o evangelista pretende afirmar que Ele cumpriu plenamente a missão de revelar a face misericordiosa do Pai. Por ter sido fiel a essa missão, isso foi levado em conta pelo Pai, que o enalteceu, ao entronizá-lo a sua direita. Ação de elevar o Filho é realizada pelo Pai, assim como a ressurreição. A sua elevação não é outra coisa que retornar ao âmbito do divino. Desse modo, Marcos visa responder aos assassinos de Jesus: aquele homem que havia sido condenado como blasfemo, e morto por eles, agora está à Direita de Deus. Porque Ele mesmo assim o quis. É uma maneira que o evangelista encontra para dizer que o Crucificado pertence, agora, ao âmbito da Divindade.

Mas esta elevação-ascensão de Jesus não é uma separação ou um distanciamento do mundo e dos homens. O mistério deste acontecimento pretende mostrar que Ele leva com sigo a nossa humanidade, porque a fez sua, elevando e glorificando a Carne e a Natureza humana. E, mais ainda, desde a plenitude de sua divindade colabora com a atividade dos seus, como se lê no versículo seguinte: “Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (v.20). Subiu aos céus, mas permanece com eles, tornando esta presença ainda mais intensa, e com maior proximidade.

A ascensão do Senhor marca a plenitude (ou a consumação) da ressurreição. O ressuscitado penetra o mundo do Pai, conferindo a sua comunidade a continuidade de Sua missão, proclamando a Boa Nova a toda a criação.

1) A missão de Jesus é confiada, por ele, a toda sua comunidade. Temos tomado parte desta missão, recebida desde o nosso batismo? 2) Com que espírito (ou mentalidade, como preferir) abraçamos e desempenhamos a missão: com a mentalidade de super-heróis, ou com a consciência de nossos limites e fragilidades? É com elas que o Senhor também quer contar. 3) Temos a consciência de que o conteúdo desta missão, o Evangelho de Jesus (que é Ele mesmo) destina-se a todos, sem distinção e exclusão, ou ainda reina em nossas práticas e convicções aquelas mentalidades exclusivistas e excludentes, as quais impedem com que as pessoas tenham acesso à Jesus de Nazaré e à sua Boa Notícia.

É missão de todos nós!

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 8 de maio de 2021

REFLEXÃO PARA O VI DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 15,9-17:

 


Os capítulos 14 – 16 formam um bloco literário muito importante no Quarto Evangelho, o chamado “testamento de Jesus”. Ele situa-se ao interno do livro da Glória. A finalidade deste conjunto de ditos de Jesus sobre o amor e sobre o dinamismo da entrega da vida em serviço visa a vida da comunidade: trata-se de um manual para que a comunidade dos discípulos – os primeiros destinatários da mensagem – e as futuras gerações cristãs possam viver a fé a vida após a volta de Jesus para o seio do Pai.

O texto proposto pela liturgia deste sexto domingo da páscoa é a continuidade da alegoria da videira, meditado no domingo anterior (Jo 15,1-8). Jo 15,9-17 toca no tema do amor cristão. O amor é o dinamismo da vida que o Espírito de Jesus e do Pai realizam na pessoa e na realidade. Amor que gera uma nova condição relacional entre a humanidade e Deus (amigos; e não mais servos) e a alegria, que é o distintivo do discípulo e da comunidade cristã.

Jesus, na continuidade de seu ensinamento iniciado no discurso da videira, declara: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor” (v.9). Jesus é amado pelo Pai através do dom do Espírito, a sua mesma força e capacidade de amar. O leitor-discípulo do Quarto Evangelho não pode se esquecer de que este discurso de despedida se dá junto a mesa. Antes, porém, Jesus realiza o gesto que expressa simbolicamente a doação da própria vida, a sua capacidade de amar, lavando os pés dos seus (Jo 13).  Porque o amor não é um sentimento, mas uma atitude: o serviço. Este amor não se transmite através de uma doutrina, mas por meio de gestos que comunicam e geram vida.

“Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor” (v.10). Jesus fala de “mandamentos” no plural. Mas na narrativa do lava-pés ele mencionou apenas um mandamento, ao qual chama de “novo”. Novo, porque supera em qualidade todos os outros mandamentos da lei de Moisés, e não por ser algo a se acrescentar ao decálogo. Existe um único mandamento: o amor. Quando este é vivido através das atitudes e gestos servidores pelo discípulo ele se torna um mandamento único, que tem a capacidade de superar os demais. Por isso, o amor transformado e vivido na dinâmica do serviço se torna a única garantia de comunhão com Jesus e o Pai. O evangelista trabalha, uma vez mais, com o verbo “permanecer”, o qual indica a capacidade e estabelecer comunhão. Este verbo, como já sabemos, alude à temática da habitação de Deus na história e na realidade. Jesus de Nazaré é a habitação – morada – de Deus definitiva. Aquele que acolhe em dom e resposta o seu mandamento de amor, faz a experiência da comunhão com Deus e se torna sua morada; sua habitação.

“Eu vos disse isto, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (v.11). Jesus insere um ensinamento novo na catequese acerca do amor: a alegria. O distintivo do fiel discípulo é a alegria. Esta, não depende das alternâncias da vida. A alegria provém da capacidade de sentir-se amado, fruto e participante de um projeto de amor do Pai, o qual cuida e protege este projeto. A alegria é a constante expressão daquele que encontrou o verdadeiro sentido da vida. E o sentido da vida que Jesus experimentou pessoalmente e propõem aos seus seguidores e seguidoras consiste exatamente na capacidade de entregá-la por amor, porque nem a morte é capaz de destruir uma vida assim. Por isso, na comunidade onde se vive realmente o amor de Jesus, a alegria está presente porque essa atesta a convicção de que o amor do Ressuscitado está sendo vivido.

No versículo 13, emerge uma temática que perpassará os v.v.14-16. A amizade. “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos”. Jesus inaugura um novo modo de relação com Deus. Ele se serve do contexto da relação mestre-discípulo. Na sua época esta relação acontecia de modo muito distante. O discípulo era servo do seu mestre, e, este, por sua vez, lhe era superior, um patrão. Todavia, a relação com Jesus (e com Deus) não se dá a partir dessa ótica. Ele chama seus discípulos de amigos. Ele não precisa de servos, porque ele mesmo se põe a servir a humanidade. O que ele necessita é de pessoas que como ele e com ele colaborem com este serviço. Mas isso só é possível se o discípulo guarda, no sentido de observar, praticar, realizar o mandamento de Jesus: viver a vida na dinâmica do amor gerador de vida.

“Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça” (v.16). A comunidade dos discípulos não pode ser uma comunidade imóvel. Pelo contrário, ela deve ir. O evangelista usa um verbo que indica movimento a fim de indicar para os discípulos que a comunidade deve viver e frutificar esse amor indo ao encontro dos outros; indo ao encontro daqueles que se encontram excluídos e marginalizados.

O texto de hoje propõe algumas perguntas: como temos vivido nossa relação com Jesus, na condição de servos ou temos ousado viver na condição de amigos? Em nossa vida e em nossa comunidade a alegria tem sido o distintivo de que somos discípulos e comunidade de Jesus? 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 1 de maio de 2021

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 15,1-8:

 


A liturgia propõe para a leitura e meditação neste quinto domingo da páscoa, o  capítulo quinze do Evangelho segundo João. O contexto próximo, no qual se situa o capítulo é o do Livro da Glória, a segunda parte do Quarto Evangelho, na qual o catequista bíblico apresentará definitivamente a Hora da Glória de Deus que será revelada em Jesus. O contexto imediato em que estes oito versículos se encontram é o do bloco narrativo que compreende o Testamento de Jesus (Jo 14 – 16), que se conclui com a prece “sacerdotal”, em Jo 17.

O testamento – discurso de despedida – de Jesus é bloco literário de João, através do qual o evangelista concatena e faz memória do ensinamento do Senhor destinado aos discípulos que com ele se põem à mesa. Trata-se de um conjunto importante de ensinamentos que Jesus deixa aos seus sob forma de testamento. O testamento representa aquele conjunto de bens importantes que se deixa para alguém muito amado. Por isso, esta seção literária reúne dois discursos (ensinamentos / catequeses) de Jesus acerca do amor cristão. É importantíssimo recordar o seguinte, este ensinamento, ao interno da catequese joanina, se dá ao redor da mesa, a qual é lugar de partilha, comunhão de vida e de intimidade entre as pessoas e da sociedade daquele tempo. O ponto de partida é a alegoria da videira (vv. 1-8), o texto proposto para a liturgia dominical.

No v.1, Jesus retoma o ensinamento aos discípulos com uma solene declaração: “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor”. O evangelista recolhe uma vez mais a formula de revelação do nome divino “Eu sou” (gr. Ἐγώ εἰμι). Com essa proclamação, ele pretende fazer memória para a comunidade que Deus está plena e substancialmente presente em Jesus, em suas obras e palavras. Ele se declara como a videira verdadeira. O Jesus joanino retoma uma imagem-símbolo presente na tradição de Israel, a videira. A vinha e a videira são símbolos para o povo, no AT. Todavia, ele se declara como a verdadeira. Por si mesma, a imagem evoca vida, seiva, fruto.

O termo “verdadeira” sugere contraposição a outra, que não é verdadeira. Já no profeta Isaías, o povo de Israel é comparado a uma videira que não produz o esperado fruto de amor e justiça (Is 5,1-7).  Em Marcos, Jesus critica os líderes do povo por quererem guardar para si o fruto e a vinha (Mc 12,1-9). Agora ele apresenta a si mesmo, juntamente com os fiéis como a verdadeira videira que produz fruto quando estão unidos a ela.

Por se tratar de uma alegoria, Jesus mesmo explica os símbolos. Ele é o tronco, os ramos são os fiéis, o Pai é o agricultor que espera frutos da vinha. O fruto é, na lógica do Jesus eclesial, o amor fraterno (Jo 15,1-12). E o modelo deste amor é ele mesmo, dando sua vida por aqueles aos quais ele dá seu amor (15,13). A videira verdadeira é a comunidade unida em Cristo e fecunda, nele, no amor e na comunhão fraterna.

Nos versículos de 2-3, Jesus expõe a realidade dos que, ligados a Ele, produzem fruto e dos que não os produzem. O galho que não produz e cortado. Já o ramo produtivo é purificado pelo agricultor, imagem do Pai, através da palavra de Jesus. A limpeza é feita pela palavra que Jesus pronuncia (>com. 13,10). Quem adere a ela fica mais unido a Jesus e mais produtivo em termos daquilo que Deus espera. A palavra de Jesus é a palavra da escritura mesma relida a reinterpretada por Ele através do seu modo de viver. Aquele que assimila sua palavra – seu modo de viver e ser – encontra-se intimamente unido à Ele. Logo, produz o mesmo fruto de amor que Ele produz. Mas para isso é necessário um dinamismo importante. Permanecer!

“Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós não podereis dar fruto, se não permanecerdes em mim” (v.4). O verbo “permanecer” no evangelho joanino é muito importante. Por isso, ele será recorrente até o final do discurso (cf. v.5.6.7). Jesus fala da consequência de quem permanece Nele e na de quem não permanece. João usa 7 vezes o verbo “permanecer” (gr. μένein,/ménein) para exprimir a união entre o tronco e os ramos, ou seja, entre Jesus e os fiéis, mas também em relação ao Pai. O sentido é o da imanência, a mútua inabitação de Deus (ou Jesus, ou o Paráclito) nos seus e deles em Deus.

Da parte de Deus, através de Jesus, trata-se de presença salvífica, como a Morada (hbr. shekiná) de Deus no meio do povo (a Tenda no deserto, o Templo em Jerusalém); e, na medida em que o discípulo abre espaço para a Sua presença em meio, também ele “permanece” no âmbito de Deus. Da parte dos fiéis, esse permanecer significava concretamente o continuar na profissão de fé em Jesus e na comunhão do amor fraterno. Por isso esse convite também deve ser lido no horizonte da comunidade joanina – e das gerações futuras. No fim do primeiro século, sob a pressão da concorrência e das perseguições, a comunidade corre o perigo de cair na apostasia e desistir da fé. Há gente na comunidade que gostaria de abandonar a profissão de fé em Jesus (cf. 1Jo 2,19-24; 4,1-3; 2Jo 7). Esses não têm mais ligação com o tronco; devem ser cortados fora.

O versículo oitavo encerra de modo sugestivo a alegoria da videira. “Nisto meu Pai é glorificado: que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos”. Deus é glorificado quando o agir do discípulo corresponde ao agir do Filho. O agir de Jesus consiste na comunicação da vida mesma do Pai para o mundo. O agir do discípulo deverá ser a mesma comunicação de vida e de amor do Senhor através da própria existência.

Se desejamos saber se Cristo está em nós, cabe verificar se suas palavras – vida e obra – desempenham um papel efetivo e afetivo em nossa vida e na vida do próximo. Deus deseja ver-nos produzir muito fruto – o amor fraterno – através do qual visibilizamos e testemunhamos ser verdadeiros discípulos do filho.

Quem somos a partir deste texto? Temos permanecido em Jesus? Que frutos temos produzido e apresentado à Deus?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.