sábado, 27 de junho de 2020

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO - Mt 16,13-19:



A cada ciclo litúrgico que a Igreja vive, somos convidados a fazer a memória de Pedro e de Paulo. Para isto, a liturgia nos propõe a perícope pertencente ao capítulo dezesseis do Evangelho segundo São Mateus (Mt 16,13-19).

É oportuno situar o texto ao interno do contexto para retirarmos a mensagem essencial do Evangelho. O texto que hoje temos começa no v.13. Mas ele iniciara com duas situações que servem de estopim para a narrativa que se segue. O primeiro acontecimento foi uma controvérsia entre Jesus e os fariseus, os quais pediram a ele um sinal de que seria realmente o messias (Mt 16,1-4). Ora, Jesus, a esta altura do evangelho, já havia realizado muitos sinais e realizado muitos ensinamentos. A segunda situação foi motivada pela advertência que feita aos discípulos para que estes tomassem cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus (Mt 16,5-12). O fermento dos fariseus a que Jesus se refere consiste numa ideia errada que nutriam em relação a Deus e ao messias, bem como a própria maneira hipócrita de viver. Agora pode-se entrar no horizonte do texto de hoje.

Mateus indica geograficamente a seus leitores-discípulos onde o fato se dá. “Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe” (v.13a). Cidade situada ao norte de Israel; dedicada à Cesar, imperador romano. Sede do poder romano na província da Palestina e, portanto, lugar de culto ao imperador e de cultivo da ideologia imperial. Um território pagão. Por outro lado, Cesaréia fica distante de Jerusalém, sede do poder religioso. Jesus e seus discípulos encontram-se longe das influências do poder religioso. Ali poderiam fazer uma experiência nova e pura com Deus em Jesus.

“ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” (v. 13b). Filho do Homem é aquela personagem bíblica de que nos fala a literatura apocalíptica de Dn 7. É o encarregado por Deus de executar o Seu Senhorio e vontade na história. É o plenipotenciário enviado em nome de Deus. Jesus se identifica e reconhece-se a partir desta personagem. Mas a personagem alude também a sua condição humana.

É verdade que não há concordância entre os biblistas a respeito da intencionalidade de Jesus na pergunta. Uns alegam que ele estaria preocupado com sua auto imagem. Outros, que ele não estaria preocupado com sua imagem, mas com a correta compreensão de sua pessoa e missão. Mais do que preocupado com a imagem que a multidão fazia dele, estava preocupado com a ideia que faziam de sua missão.

Segundo os discípulos, a opinião pública dizia: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). A atuação de Jesus tinha dado margem para variadas interpretações, e as figuras do passado serviam aos espectadores de Jesus fazerem alguma imagem Dele. Acontece que Jesus não foi um reformador como Elias (e Eliseu, no Antigo Testamento), muito menos como João Batista, na transição do Antigo para o Novo. Ele inaugura uma novidade em relação ao modo com de se relacionar e experimentar o Deus de Israel, e uma novidade quanto ao modo de se relacionar com o próximo. É bem verdade que o modo através do qual Jesus decide-se por viver sua missão se inseriu na tradição profética.

Mas Jesus é muito mais. Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história (CORNÉLIO, F, Homilia Domincal, in, porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Após a resposta dos discípulos, Jesus retorna a pergunta, agora, para ele: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v.15). Trata-se de uma pergunta importante, porque ela revela como os discípulos, o círculo mais próximo e pessoal de Jesus, o concebia. Mais ainda, a reposta revelaria ainda as expectativas que traziam consigo, e qual mentalidade nutriam acerca dele.

“Tu és o Cristo, 0 Filho do Deus vivo” (v.16), responde acertadamente Simão, em nome dos doze. É uma reposta que ele dá em nome do grupo, e, portanto, eclesial. Uma profissão de fé comunitária. Os demais discípulos componentes do grupo dos doze também responderam com Pedro.

“Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v. 17). Jesus admira-se com a resposta tão acertada. E reconhece ser Pedro um bem-aventurado, ao compreender uma verdade muito profunda. Entretanto, seu entendimento não provém do esforço humano; só pode ser revelação do Pai dos céus. Esta bem-aventurança não provém do mérito do discípulo, mas unicamente da iniciativa de Deus (VITÓRIO, 2017, p.105).

O que Jesus faz é uma constatação: as coisas começam a funcionar na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (cf. 10,21), e Pedro está falando a partir do que o Pai lhe sugere, ele está demonstrando adesão plena ao projeto do Reino, inserindo-se no mundo dos pequeninos! O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição pertencer ao mundo dos pequeninos. A bem-aventurança de Pedro consiste em abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por essa (CORNÉLIO, F, Homilia Domincal, in, porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

“Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus declara Simão-Pedro como rocha firme devido à Fé que professara. O acento aqui não recai sobre o discípulo Pedro, mas sobre a Fé que ele, conjuntamente com a comunidade dos discípulos, a Igreja, professa. A pedra firme por sobre o qual se edifica a comunidade dos crentes em Cristo é o conteúdo e núcleo da Fé professada pelo discípulo. Pedro, na verdade, é o garantidor da unidade em torno desta Fé. Esta não se baseia num conjunto de ideias ou de proclamações dogmáticas, mas se embasa numa pessoa: o Messias e Filho do Deus vivo, Jesus de Nazaré.

É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: Πέτρος– Petros e πέτρα - petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”, que foi transformada no nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, designa a superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da construção, e a pedra-rocha (petra) é a fé que ele professou, a superfície rochosa sobre a qual a Igreja é edificada (CORNÉLIO, F, Homilia Domincal, in, porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Só aqui e em Mt 18,17, o evangelista chama de “Igreja” a comunidade dos discípulos do Reino, evocando o antigo povo de Deus (hbr. qahal). A missão da igreja consiste em ser, na história humana, um sinal da presença do Reino, vivendo os seus valores e o seu projeto.

A chave simboliza a autoridade conferida a Pedro, da qual a comunidade também participa. Mais que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer já aqui na terra. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus, através da prática das bem-aventuranças (cf. 5,1-12), e é isso que torna alguém apto para entrar nos céus. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e desligar” são, acima de tudo, responsabilidades, e não um poder.

O texto litúrgico de hoje termina, mas, ao mesmo tempo encaminha para conclusão do capítulo dezesseis, o qual apresenta o primeiro anúncio da paixão, que visa abrir a compreensão dos discípulos para que comecem a compreender o verdadeiro modo pelo qual Jesus decide-se encaminhar a sua vida e missão, vaticinando a eventualidade de sua paixão e morte, coroadas pelo evento redentor e salvífico da ressurreição. O modo pelo qual Jesus exercerá plenamente seu messianismo é o modo da cruz. O caminho da cruz que foi assimilado, com não pouca dificuldade, pelo discípulo Simão-Pedro, através de sua vida gasta pelo Evangelho da libertação e da Graça.

A pergunta que Jesus faz aos discípulos se direciona também à nós. 1) Quem é Jesus de Nazaré para mim? 2) Qual a ideia de messias e Filho de Deus possuo e fiz experiência? O triunfalista, opressor, belicoso, poderoso? Ou o messias e Filho de Deus que realiza sua missão através da obediência ao Pai e ao projeto do Reino, vivendo uma existência em amor, compaixão, misericórdia e serviço aos irmãos?

Que Pedro e Paulo nos ajudem através da Fé que viveram e professaram, através da entrega de suas próprias vidas.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 20 de junho de 2020

HOMILIA PARA O XII DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 10,26-33:



A liturgia deste décimo segundo domingo do tempo comum, propõe a continuidade da leitura do discurso missionário de Jesus, situado no capítulo décimo do Evangelho segundo Mateus. O discurso consiste numa série de ensinamentos de Jesus, destinados aos discípulos, a respeito da missão. O que o mestre realizará, valerá, igualmente para o discípulo. O texto lido hoje – Mt 10,26-33 – já coloca o discurso próximo de seu final. O discurso missionário foi motivado pelo inconformismo de Jesus em face da situação das multidões, cansadas e abatidas como ovelhas sem pastor, ou seja, abandonadas e exploradas pelos chefes dos poderes político, econômico e religioso da época. Nesse sentido, a missão consiste no anúncio do Reino, como conteúdo fundamental. E este anúncio se visibiliza através da tarefa de restituir vida, dignidade e esperança, denunciando tudo o que impedia o ser humano de viver com dignidade.

Quem luta por isso, inevitavelmente, será vítima de perseguições hostilidades, como previu o próprio Jesus (Mt 10,16-25). Após alertar os discípulos sobre a quase certeza da perseguição, Jesus os encoraja para não desanimarem. E é isso o que compreende o texto lido hoje: o convite à coragem e à confiança no Pai e no próprio Jesus (CORNÉLIO, F, Homilia dominical. in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Após situar o contexto imediato ao texto de hoje, podemos entrar no horizonte da cena bíblica. Dos versículos 26-27, Jesus exorta aos discípulos, “Não tenhais medo dos homens, pois nada há de encoberto que não seja revelado, e nada há de escondido que não seja conhecido. O que vos digo na escuridão, dizei-o à luz do dia; o que escutais ao pé do ouvido, proclamai-o sobre os telhados!”.  O medo, ao interno da tradição bíblica, e na vida espiritual, constitui o contrário da Fé. Ele acomoda e paralisa a pessoa, impedindo-a de assumir e tomar as rédeas da vida e da história, ao interno do horizonte de Deus. Aquele que é chamado para a missão deve saber das consequências inerentes à ela, e não poderá sucumbir ao medo. 

O que havia de encoberto até então, e que não poderia mais permanecer oculto, era o que Jesus já tinha ensinado somente aos discípulos. Eles deverão ser os porta-vozes do mestre. Tinha chegado o momento de tornar público, fazer espalhar o que os discípulos tinham aprendido do mestre, especialmente o seu jeito de viver. O imperativo “proclamai-o sobre os telhados” é um convite ao esforço e à criatividade no anúncio.

No v.28, Jesus é mais enfático ainda. Os discípulos missionários não deverão se intimidar diante dos que colocarem obstáculos para seu trabalho missionário. Antes, só temerão aquele que, além de tirar a vida física, pode privar as pessoas da vida eterna, ou seja, Deus. Só a ele se deve temer. A perda total da vida não é um castigo, mas consequência das próprias escolhas. (cf. VITÓRIO, J. 2017, p.72).

Para desfazer este mal-entendido acerca da perseguição que os discípulos sofrerão (e ainda sofrem), Jesus toca no tema da providência divina. Ele se serve de duas parábolas nos vv. 29-30, as quais ajudam os discípulos a tomar consciência da proteção que gozam da parte de Deus. Se o Pai do Céu está atento a um passarinho, o animal de valor mais baixo no mercado, não permitindo que morra, sem sua expressa vontade, quanto mais um discípulo de Jesus! Se nem um cabelo cai de nossa cabeça sem o expresso consentimento do Pai, tanto mais um discípulo. O cabelo era considerado o menor e mais inútil elemento do corpo humano e, mesmo assim, contado pelo Pai. A confiança na providência de Deus é o que encoraja o discípulo no decorrer da missão.

“Portanto, todo aquele que se declarar a meu favor diante dos homens, também eu me declararei em favor dele. Aquele, porém, que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus” (v. 32-33). Para viver a missão é preciso ter a coragem e a coerência de viver. O testemunho corajoso do discípulo diante dos homens terá como contrapartida o testemunho de Jesus, a seu favor, diante do Pai. Pelo contrário, quem se deixa levar pelo medo e renega o Senhor será renegado por Jesus, diante do Pai, por ocasião do juízo.

Declarar-se a favor de Jesus significa ser no mundo sinal da sua própria presença; indignando-se ao contemplar pessoas abandonadas e sofridas, e buscar soluções transformadoras; é agir com misericórdia diante do sofrimento das pessoas, denunciando as injustiças e todos os impedimentos ao florescer do Reino dos Céus. Negá-lo não é deixar de proclamar uma fórmula de fé, mas deixar de viver seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças (CORNÉLIO, F, Homilia dominical. in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP

sábado, 13 de junho de 2020

HOMILIA PARA O XI DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 9,36 – 10,8:



A Liturgia do décimo primeiro domingo do tempo comum, nos reinsere na leitura do Evangelho segundo Mateus, a partir do final do capítulo nono, o qual serve de dobradiça para o capítulo décimo, no qual o evangelista concentra todo o assim chamado “Discurso Missionário”.

O Evangelho segundo Mateus é composto de cinco discursos, os quais são as catequeses do evangelista para a sua comunidade, que se encontra em crise de fé e de identidade. Através destes ensinamentos recuperados pelo catequista bíblico diretamente da pregação de Jesus, a comunidade vai discernindo sua experiência com o Ressuscitado, e dando o passo no discipulado. O Discurso Missionário (Mt 10 – 11,1), compõe, juntamente com o Discurso Inaugural (Mt 5 – 7), o Discurso em Parábolas (Mt 13), o Discurso comunitário (Mt 18) e o Discurso escatológico (Mt 24 -25), o ensinamento essencial de Jesus para o discípulo do Reino. Ora, a intenção do evangelho de Mateus é o de fazer discípulos de Jesus entre todas as nações.

Desde o Discurso inaugural de Jesus, o sermão da Montanha (Mt 5 – 7), Mateus tratou de apresentar a Jesus como novo Moisés, intérprete da Palavra de Deus ao novo povo de Israel, e, assim, o Messias por Palavras. Agora, no capítulo dez em diante, Jesus será confirmado como Messias, não só por palavras, mas por obras.

Faz parte da pedagogia teológica de Mateus, as seguintes categorias: multidão, discípulo, apóstolo (missionário). A multidão é aquela grande massa que vai até Jesus por conta daquilo que ele realiza; se seduz somente por aquilo que Ele faz. Todavia, não se compromete com seu estilo de vida e com seu ensinamento. O grupo dos discípulos é formado por aqueles que ouviram as Palavras e aderiram ao modo de vida do Senhor, e, por isso, saíram do meio da multidão; romperam com ela, para fazerem uma experiência existencial e profunda com Jesus. O discípulo, após ter feito experiência com Jesus, e ter visto, sentido, comprovado por onde passou a vida do Mestre, pode, então, tornar-se apóstolo, enviado, missionário do Reino. No entanto, este esquema não é definitivo, uma vez que o discípulo ou apóstolo sempre corre o risco de retornar para a multidão, quando não vive fielmente segundo a vida de Jesus. Por isso, o discípulo deve carregar consigo sempre a disponibilidade de ser um missionário, e não deve esquecer-se jamais de sua condição de discípulo. A dinâmica existente neste discurso missionário, que começamos a ler neste XI Domingo do tempo ordinário, apresenta-nos este esquema ao longo de sua leitura.

Considerações feitas, podemos mergulhar no horizonte do texto. A conclusão do nono capítulo nos informa a respeito de um sentimento de Jesus diante da multidão, que parecia ovelha sem pastor, cansada e abatida (v.36). Ele sentiu compaixão dela. A compaixão / misericórdia na bíblia, já refletimos, não é um sentimento apiedado ou adocicado, mas uma atitude operativa em favor de quem sofre. É a capacidade de colocar-se no lugar do outro, porque o sofrimento daquele faz remexer as vísceras. Compaixão é traduzido do hebraico Rahamim (lit. visceras), cuja raiz provém de Hesed (amor/misericórdia). Jesus extravasa este amor entranhado de Deus pela humanidade sofredora através de sua práxis existencial e salvífica.

Jesus vê o povo deixado à própria sorte e sente compaixão, ao constatar que está cansado e prostrado como um rebanho sem pastor (Ez 34; Jr 23,1-4; SI 23[22]). Os mestres da Lei não se interessavam pela multidão de gente simples da Galileia, considerada, com desprezo, povo da terra. E então, faz uma constatação e uma recomendação em forma de parábola: “A colheita é imensa, mas os trabalhadores são poucos. Pedi, pois, ao dono da plantação que envie mais trabalhadores para a colheita”. Com isso, fica preparado o ambiente para o discurso missionário, que vem a seguir (cf. VITORIO, 2017, p.67).

Assim, o “discurso missionário” provém da compaixão de Jesus ao ver a gente simples semelhantes a “ovelhas sem pastor”. Os discípulos são constituídos apóstolos com a mesma missão de proclamar o evangelho do Reino e curar os enfermos, como acontece com Jesus. O ideal do discípulo é ser como o Mestre.

Por isso, chama para mais perto de si, doze homens. E os constitui como enviados (apóstolos) Seu. Os discípulos são constituídos na condição de apóstolos. É a primeira vez que o evangelista usa o termo Apóstolo em seu Evangelho. Ele ocorrerá novamente quando do envio definitivo em Mt 28,16, por parte de Jesus. Em relação ao número doze, ele evoca a totalidade de Israel, simbolizado pelas doze tribos. Mas Jesus extrapola esta mentalidade, e vê naqueles homens a semente do novo e verdadeiro Israel, mas que deve expandir-se a todas as nações.

Jesus lhes dá autoridade. Esta é a melhor tradução para este dito do evangelista “Jesus chamou os doze discípulos e deu-lhes poder para expulsarem os espíritos maus e para curarem todo tipo de doença e enfermidade”. Mateus toca no tema da autoridade de Jesus (gr. Exousia). Esta não significa a faculdade de mandar e desmandar. A autoridade / exousia de Jesus consiste na missão que lhe foi confiada pelo Pai. Ela encontra-se na coerência entre seu agir e falar. Jesus vive o que anuncia e anuncia vivendo. Esta autoridade, que outra coisa não é que viver conforme a vida, Palavra e obra do mestre, Ele a comunica aos discípulos. Assim, transfere para eles o poder recebido do Pai. Eles deverão continuar a missão de Jesus.

O grupo é encabeçado por Pedro, e segue-se a lista dos outros onze (v.2-4). Este discípulo virá sempre como um porta-voz e representante do grupo. Nas narrativas seguintes ele sempre aparecerá como primeiro. A leitura do conjunto destas cenas permite reconstruir sua caminhada discipular, feita de altos e baixos, como acontece com os discípulos e as discípulas de todos os tempos. Pedro serve de modelo para o discípulo de todos os tempos (cf. VITORIO, 2017, p.69).

Jesus lhes dá uma recomendação, que a olhos superficiais parece contraditória a toda sua mensagem. Esta orientação de não ir aos samaritanos, nem onde moram os pagãos, precisa ser bem compreendida. Não se trata da exclusão deles. E a orientação seguinte, no v.6, explicita esta constatação: “Ide, antes (lit. primeiramente) às ovelhas perdidas da casa de Israel”. O adverbio “antes / primeiro” (gr. Μαλλον) indica precedência e não exclusividade ou exclusão.

Jesus privilegia o povo judeu, mas não lhe dá exclusividade. Os pagãos, também, têm o direito de ser convidados para participar do Reino. A missão junto a Israel (particularidade) serve de trampolim para a missão junto aos pagãos (universalidade). A Ressurreição de Jesus marca a abertura da Igreja para a universalidade da missão (Mt 28,19). A ação dos discípulos consistirá em proclamar que o Reino dos Céus se aproxima (Mt 4,17), bem como curar os enfermos, ressuscitar os mortos, limpar os leprosos, expulsar os demônios. Portanto, têm como tarefa refazer o caminho de Jesus, Messias, por palavras e por obras. Um traço característico da ação do discípulo enviado é a gratuidade. Já que receberam tudo de graça, também de graça devem dar. (cf. VITORIO, 2017, p.70).

O discurso missionário é endereçado a todos nós, os discípulos e discípulas (missionários) de todos os tempos e lugares. Por isso, diante do texto que funciona como um espelho para a nossa vida, podemos nos perguntar: 1) diante da proposta de Jesus, em que categoria me encontro: ainda em meio à multidão (mais um no meio dela); ou no grupo dos discípulos, que escutam e aderem à Palavra de Deus em Jesus, e, portanto, vão se configurando ao discipulado-missionário? 2) Como temos vivido nosso discipulado-missionário: com aquele senso de privilégio e exclusivismo, concebendo-nos como os tais e já salvos; ou temos exercido a missão na disponibilidade e no serviço a todos, indistintamente? 3) Somos comunidade em saída e servidora ou apenas um grupo exclusivos de amigos, ou, pior ainda, um gueto bem fechado e excludente?

O Evangelho de Cristo é a nossa medida. Ele será a última palavra em relação a cada um de nós e nos fará discernir se ainda estamos na multidão ou no discipulado-missionário. Mas é bem verdade que ele sempre nos dará a oportunidade de refazermos o trajeto, sempre mais avante.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP

sábado, 6 de junho de 2020

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – Jo 3,16-18:



Celebra-se em toda a Igreja a solenidade da Santíssima Trindade, ao interno do tempo comum, já retomado após Pentecostes. No entanto, a liturgia ainda propõe a leitura do Quarto Evangelho. A perícope oferecida é a que se encontra no capítulo três do Evangelho segundo João. O presente texto, Jo 3,16-18, nos faz mergulhar na solenidade de hoje.

O evangelista João situa o capítulo 3 de sua obra, imediatamente às palavras (episódio) contra o templo (Jo 2,13-25), ou seja, durante os dias da pascoa dos judeus. Naquele episódio, Jesus apontava para a novidade escatológica que ele mesmo trazia, em nome de Deus, a partir de si mesmo: seu corpo (templo) lugar da manifestação da glória de Deus, simbolizado pela purificação-superação do templo, feita por ele. A novidade da presença de Deus em seu Cristo, Jesus de Nazaré, e não mais no sistema levítico-cultual da tradição judaica. É neste capítulo que, pela primeira e única vez, aparece a temática acerca do Reino de Deus, que depois é substituído pelo conceito Vida ou Vida Eterna.

João traz, nesta narrativa, uma nova situação: um diálogo com um judeu importante, de nome Nicodemos. A temática apresentada neste diálogo é muito rica: desde o entusiasmo de Nicodemos pelos sinais realizados por Jesus, passando pela novidade das coisas do alto (novo nascimento, 3,1-15), culminando numa homilia, por parte do evangelista (que esquece um pouco seu papel de narrador), acerca do dom da salvação (3,16-21). Nossa reflexão, aborda esta parte do diálogo com o fariseu Nicodemos.

Importante para nós é uma nota do evangelista: o diálogo entre Jesus e o líder judeu se dá na noite. João faz questão de informar esta particularidade por dois motivos concernentes ao seu público. 1º) É da pedagogia do Quarto Evangelho apresentar, em tons simbólicos (e mistagógicos, como que uma catequese pós-batismal para os já iniciados na fé) o contraste entre Luz e Treva. Nesta hora (de treva) do mundo e da história, Jesus é apresentado para a comunidade cristã e para o mundo como a Luz. 2º) mostrar Nicodemos como uma pessoa que está em vias de tomar uma decisão pró-Jesus, mas que ainda não tomou, e por isso vai “de noite”, para não se comprometer com Jesus diante de seus colegas judeus.

Ora, o evangelho joanino é conhecido como o evangelho da decisão: o evangelho (que serve para o discernimento) para aqueles e aquelas que estão no processo da tomada de decisão pró ou contra Jesus, principalmente dentro do contexto daqueles anos 90, em que o autor concebe sua obra. Um momento de crise de fé das comunidades cristãs. Diante da crise se opta pela fidelidade (adesão) à Jesus de Nazaré (como revelador pleno da Glória de Deus e Vida do mundo) ou abandona-se a fé? Acolhe-se o Dom de Deus em Jesus, Luz do mundo, ou recusa-lo? Eis o sentido da segunda intenção do evangelista ao situar a conversa “pela noite”. Nesse sentido, pode-se identificar a Nicodemos como um símbolo do candidato / iniciado na fé cristã.

Mais uma consideração acerca da natureza do Quarto Evangelho se faz necessária. O Evangelho de João, quando fora escrito trazia como uma de suas temáticas a superação das instituições do Antigo Testamento, principalmente de todo o sistema levítico-cultual de Israel (Templo, sacrifícios ou holocaustos, sacerdócio judaico). Este chefe dos judeus está inserido neste contexto das tradições e sistema religioso. Ele é, pois, a metáfora do velho que precisa ser superado; elevado a um novo sentido ou mesmo abolido.

Nicodemos é um fariseu, e, enquanto tal, faz parte dos que pensam e concebem ideologicamente a manifestação do Messias e de Deus como sendo ocasião do juízo e da condenação para os pecadores. Mas Jesus lhes revela uma face diferente do Deus de Israel, a quem chama de Pai. Trata-se, portanto, de uma novidade: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (v.16). Jesus se declara como a expressão do amor de Deus pela humanidade. Deus expressa seu amor dando seu Filho. Crer, na bíblia, não significa dar adesão à uma doutrina, mas a uma pessoa. É uma experiência existencial com uma pessoa e não com uma ideia. Note-se que, pela segunda vez neste capítulo aparece o tema da vida eterna, muito caro ao evangelista. Os fariseus pensavam-na como um prêmio a receber no futuro, a partir dos méritos e do cumprimento das prescrições levíticas e rituais, observando estritamente a lei mosaica. Para Jesus, ao contrário, é uma condição na vida presente. O termo “vida eterna” não pode ser compreendido a partir da duração indefinida da vida. Mas pela qualidade de uma vida que se torna indestrutível.

Os vv.16-18 apresentam, ainda, a novidade escatológica inaugurada através de Jesus. João substitui o termo “Filho do Homem” por Filho Unigênito (traduzido mais familiarmente por único (yahid), “o imensamente querido”, como foi Isaac para Abraão). O autor do Quarto Evangelho pretende mostrar a profundidade do mistério que está sendo evocado. Deus nos amou tanto, que nos deu seu filho unigênito (o seu imensamente querido), para nos salvar, e não para condenar. Uma constatação importante: “Deus deu seu Filho...”: o verbo usado não é “entregou”, mas “doou”! Deus não enviou Jesus especificamente para sofrer, não o entregou para que pagasse com seu sangue os nossos pecados. Deus não é um sanguinário que quer ser pago com sangue, nem com sofrimentos ou mortificações.

A verdade é que Jesus é o “dom” de Deus para manifestar seu amor e sua graça. Essa vida, pautada pela ótica e dinâmica do Amor e da Fidelidade é o que o fará ser fiel a Deus e ao Reino, até as últimas consequências. Deus, em Jesus, só nos quis mostrar em quê consiste o Amor e a Fidelidade.

O v.18 aprofunda o sentido do verbo “julgar/condenar” (v.17). Aquele que aceita esse Dom, quem na fé adere a Jesus, não é condenado por Ele. Mas quem não crê, já condenou a si mesmo. Isso, se realmente conhece a Jesus. João não está falando de pessoas que nunca ouviram falar de Jesus (quer seja naquela época ou hoje). Mas se dirige àqueles que já conhecem a mensagem cristã. É como que se lançasse a pergunta “vocês comprometem as suas vidas a este Jesus que vocês conheceram como Dom de Amor de Deus?” O Quarto Evangelista dirige esta pergunta àqueles que perceberam o valor vital de Jesus e nem mesmo assim o querem aceitar. É a estes que é dirigido o julgamento e autocondenação.

Para quem despreza esse dom, a vinda de Jesus ao mundo como luz significa julgamento (cf. 9,41). Fogem da Luz, preferindo ficar nas trevas, e por isso não aguentam a Luz. Quem “pratica a verdade” e age com lealdade em relação a Deus e aos irmãos, esse aproxima-se da luz que é Jesus. Suas obras são “feitas em Deus”, sua prática é solidária com a obra de Deus. “Praticar a verdade” significa agir segundo a verdade, o reto proceder que Deus, de diversas maneiras, nos dá a conhecer, especialmente na própria prática de Jesus (KONINGS, 2005, p.117-118).

Deus Uno e trino se dá a conhecer através de Jesus de Nazaré. E é sob o mistério do amor-doação, comunhão e unidade que O Deus uno e trino pauta o seu viver desde o interno de sua vida divina. Esta vida, num mesmo mistério de amor é doada pela Trindade Santa, e quem a revela é Jesus, no Espírito.

Da vida da Trindade somos todos chamados a participar através do Batismo recebido, o qual nos dá o Dom do Espírito, que habilita a chamar Deus de Pai e Jesus de Senhor. Assim, o Espírito nos garante acesso a vida de Jesus e do Pai, porque nos leva para dentro de sua relação de comunhão e amor, para vivermos segundo a vida do mesmo Filho, inscrita em nós pelo Espírito. Ou seja, para vivermos uma vida segundo o modelo da Trindade, em amor, comunhão, doação e unidade.

Diante do espelho do texto, emergem algumas perguntas. 1) Com quais personagens nos identificamos: com Nicodemos, que ainda não fez sua opção/decisão por Jesus, ou por aqueles que aderiram ao Dom de Deus, em Jesus de Nazaré, Senhor e Cristo? 2) Temos acolhido, de fato, a Jesus de Nazaré como Dom por excelência de Deus em nossas vidas? 3) Em nosso discipulado-seguimento a Jesus, em quais horas de nossas vidas nos dirigimos à Jesus para ter com ele, durante a noite (na treva da escuridão, da indecisão, do descompromisso, do medo, da rejeição ao seu projeto) ou na hora da Luz (da decisão, da verdade, da fidelidade e do Amor a ele ao irmão)?

Habitados que fomos pela Trindade, somos chamados a irradiar, como discípulos-missionários, e, enquanto comunidade, a vida e ação do Deus Uno e Trino.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.