A Liturgia do décimo primeiro domingo do
tempo comum, nos reinsere na leitura do Evangelho segundo Mateus, a partir do final
do capítulo nono, o qual serve de dobradiça para o capítulo décimo, no qual o
evangelista concentra todo o assim chamado “Discurso Missionário”.
O Evangelho segundo Mateus é composto de
cinco discursos, os quais são as catequeses do evangelista para a sua comunidade,
que se encontra em crise de fé e de identidade. Através destes ensinamentos
recuperados pelo catequista bíblico diretamente da pregação de Jesus, a
comunidade vai discernindo sua experiência com o Ressuscitado, e dando o passo
no discipulado. O Discurso Missionário (Mt 10 – 11,1), compõe, juntamente com o
Discurso Inaugural (Mt 5 – 7), o Discurso em Parábolas (Mt 13), o Discurso comunitário
(Mt 18) e o Discurso escatológico (Mt 24 -25), o ensinamento essencial de Jesus
para o discípulo do Reino. Ora, a intenção do evangelho de Mateus é o de fazer
discípulos de Jesus entre todas as nações.
Desde o Discurso inaugural de Jesus, o
sermão da Montanha (Mt 5 – 7), Mateus tratou de apresentar a Jesus como novo
Moisés, intérprete da Palavra de Deus ao novo povo de Israel, e, assim, o
Messias por Palavras. Agora, no capítulo dez em diante, Jesus será confirmado
como Messias, não só por palavras, mas por obras.
Faz parte da pedagogia teológica de Mateus,
as seguintes categorias: multidão, discípulo, apóstolo (missionário). A multidão
é aquela grande massa que vai até Jesus por conta daquilo que ele realiza; se
seduz somente por aquilo que Ele faz. Todavia, não se compromete com seu estilo
de vida e com seu ensinamento. O grupo dos discípulos é formado por aqueles que
ouviram as Palavras e aderiram ao modo de vida do Senhor, e, por isso, saíram do
meio da multidão; romperam com ela, para fazerem uma experiência existencial e
profunda com Jesus. O discípulo, após ter feito experiência com Jesus, e ter
visto, sentido, comprovado por onde passou a vida do Mestre, pode, então,
tornar-se apóstolo, enviado, missionário do Reino. No entanto, este esquema não
é definitivo, uma vez que o discípulo ou apóstolo sempre corre o risco de retornar
para a multidão, quando não vive fielmente segundo a vida de Jesus. Por isso, o
discípulo deve carregar consigo sempre a disponibilidade de ser um missionário,
e não deve esquecer-se jamais de sua condição de discípulo. A dinâmica existente
neste discurso missionário, que começamos a ler neste XI Domingo do tempo ordinário,
apresenta-nos este esquema ao longo de sua leitura.
Considerações feitas, podemos mergulhar no
horizonte do texto. A conclusão do nono capítulo nos informa a respeito de um
sentimento de Jesus diante da multidão, que parecia ovelha sem pastor, cansada
e abatida (v.36). Ele sentiu compaixão dela. A compaixão / misericórdia na bíblia,
já refletimos, não é um sentimento apiedado ou adocicado, mas uma atitude
operativa em favor de quem sofre. É a capacidade de colocar-se no lugar do
outro, porque o sofrimento daquele faz remexer as vísceras. Compaixão é traduzido
do hebraico Rahamim (lit. visceras), cuja raiz provém de Hesed (amor/misericórdia).
Jesus extravasa este amor entranhado de Deus pela humanidade sofredora através
de sua práxis existencial e salvífica.
Jesus vê o povo deixado à própria sorte e
sente compaixão, ao constatar que está cansado e prostrado como um rebanho sem
pastor (Ez 34; Jr 23,1-4; SI 23[22]). Os mestres da Lei não se interessavam
pela multidão de gente simples da Galileia, considerada, com desprezo, povo da
terra. E então, faz uma constatação e uma recomendação em forma de parábola: “A
colheita é imensa, mas os trabalhadores são poucos. Pedi, pois, ao dono da
plantação que envie mais trabalhadores para a colheita”. Com isso, fica
preparado o ambiente para o discurso missionário, que vem a seguir (cf. VITORIO,
2017, p.67).
Assim, o “discurso missionário” provém da
compaixão de Jesus ao ver a gente simples semelhantes a “ovelhas sem pastor”.
Os discípulos são constituídos apóstolos com a mesma missão de proclamar o
evangelho do Reino e curar os enfermos, como acontece com Jesus. O ideal do
discípulo é ser como o Mestre.
Por isso, chama para mais perto de si,
doze homens. E os constitui como enviados (apóstolos) Seu. Os discípulos são
constituídos na condição de apóstolos. É a primeira vez que o evangelista usa o
termo Apóstolo em seu Evangelho. Ele ocorrerá novamente quando do envio
definitivo em Mt 28,16, por parte de Jesus. Em relação ao número doze, ele
evoca a totalidade de Israel, simbolizado pelas doze tribos. Mas Jesus
extrapola esta mentalidade, e vê naqueles homens a semente do novo e verdadeiro
Israel, mas que deve expandir-se a todas as nações.
Jesus lhes dá autoridade. Esta é a melhor
tradução para este dito do evangelista “Jesus chamou os doze discípulos e
deu-lhes poder para expulsarem os espíritos maus e para curarem todo tipo de
doença e enfermidade”. Mateus toca no tema da autoridade de Jesus (gr. Exousia).
Esta não significa a faculdade de mandar e desmandar. A autoridade / exousia de
Jesus consiste na missão que lhe foi confiada pelo Pai. Ela encontra-se na coerência
entre seu agir e falar. Jesus vive o que anuncia e anuncia vivendo. Esta autoridade,
que outra coisa não é que viver conforme a vida, Palavra e obra do mestre, Ele a
comunica aos discípulos. Assim, transfere para eles o poder recebido do Pai.
Eles deverão continuar a missão de Jesus.
O grupo é encabeçado por Pedro, e segue-se
a lista dos outros onze (v.2-4). Este discípulo virá sempre como um porta-voz e
representante do grupo. Nas narrativas seguintes ele sempre aparecerá como
primeiro. A leitura do conjunto destas cenas permite reconstruir sua caminhada
discipular, feita de altos e baixos, como acontece com os discípulos e as
discípulas de todos os tempos. Pedro serve de modelo para o discípulo de todos
os tempos (cf. VITORIO, 2017, p.69).
Jesus lhes dá uma recomendação, que a olhos
superficiais parece contraditória a toda sua mensagem. Esta orientação de não
ir aos samaritanos, nem onde moram os pagãos, precisa ser bem compreendida. Não
se trata da exclusão deles. E a orientação seguinte, no v.6, explicita esta constatação:
“Ide, antes (lit. primeiramente) às ovelhas perdidas da casa de Israel”. O
adverbio “antes / primeiro” (gr. Μαλλον) indica precedência e não exclusividade
ou exclusão.
Jesus privilegia o povo judeu, mas não lhe
dá exclusividade. Os pagãos, também, têm o direito de ser convidados para
participar do Reino. A missão junto a Israel (particularidade) serve de
trampolim para a missão junto aos pagãos (universalidade). A Ressurreição de
Jesus marca a abertura da Igreja para a universalidade da missão (Mt 28,19). A
ação dos discípulos consistirá em proclamar que o Reino dos Céus se aproxima
(Mt 4,17), bem como curar os enfermos, ressuscitar os mortos, limpar os
leprosos, expulsar os demônios. Portanto, têm como tarefa refazer o caminho de
Jesus, Messias, por palavras e por obras. Um traço característico da ação do
discípulo enviado é a gratuidade. Já que receberam tudo de graça, também de
graça devem dar. (cf. VITORIO, 2017, p.70).
O discurso missionário é endereçado a todos
nós, os discípulos e discípulas (missionários) de todos os tempos e lugares.
Por isso, diante do texto que funciona como um espelho para a nossa vida,
podemos nos perguntar: 1) diante da proposta de Jesus, em que categoria me
encontro: ainda em meio à multidão (mais um no meio dela); ou no grupo dos discípulos,
que escutam e aderem à Palavra de Deus em Jesus, e, portanto, vão se configurando
ao discipulado-missionário? 2) Como temos vivido nosso discipulado-missionário:
com aquele senso de privilégio e exclusivismo, concebendo-nos como os tais e já
salvos; ou temos exercido a missão na disponibilidade e no serviço a todos, indistintamente?
3) Somos comunidade em saída e servidora ou apenas um grupo exclusivos de amigos,
ou, pior ainda, um gueto bem fechado e excludente?
O Evangelho de Cristo é a nossa medida.
Ele será a última palavra em relação a cada um de nós e nos fará discernir se
ainda estamos na multidão ou no discipulado-missionário. Mas é bem verdade que
ele sempre nos dará a oportunidade de refazermos o trajeto, sempre mais avante.
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu
– SP
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