sábado, 6 de junho de 2020

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – Jo 3,16-18:



Celebra-se em toda a Igreja a solenidade da Santíssima Trindade, ao interno do tempo comum, já retomado após Pentecostes. No entanto, a liturgia ainda propõe a leitura do Quarto Evangelho. A perícope oferecida é a que se encontra no capítulo três do Evangelho segundo João. O presente texto, Jo 3,16-18, nos faz mergulhar na solenidade de hoje.

O evangelista João situa o capítulo 3 de sua obra, imediatamente às palavras (episódio) contra o templo (Jo 2,13-25), ou seja, durante os dias da pascoa dos judeus. Naquele episódio, Jesus apontava para a novidade escatológica que ele mesmo trazia, em nome de Deus, a partir de si mesmo: seu corpo (templo) lugar da manifestação da glória de Deus, simbolizado pela purificação-superação do templo, feita por ele. A novidade da presença de Deus em seu Cristo, Jesus de Nazaré, e não mais no sistema levítico-cultual da tradição judaica. É neste capítulo que, pela primeira e única vez, aparece a temática acerca do Reino de Deus, que depois é substituído pelo conceito Vida ou Vida Eterna.

João traz, nesta narrativa, uma nova situação: um diálogo com um judeu importante, de nome Nicodemos. A temática apresentada neste diálogo é muito rica: desde o entusiasmo de Nicodemos pelos sinais realizados por Jesus, passando pela novidade das coisas do alto (novo nascimento, 3,1-15), culminando numa homilia, por parte do evangelista (que esquece um pouco seu papel de narrador), acerca do dom da salvação (3,16-21). Nossa reflexão, aborda esta parte do diálogo com o fariseu Nicodemos.

Importante para nós é uma nota do evangelista: o diálogo entre Jesus e o líder judeu se dá na noite. João faz questão de informar esta particularidade por dois motivos concernentes ao seu público. 1º) É da pedagogia do Quarto Evangelho apresentar, em tons simbólicos (e mistagógicos, como que uma catequese pós-batismal para os já iniciados na fé) o contraste entre Luz e Treva. Nesta hora (de treva) do mundo e da história, Jesus é apresentado para a comunidade cristã e para o mundo como a Luz. 2º) mostrar Nicodemos como uma pessoa que está em vias de tomar uma decisão pró-Jesus, mas que ainda não tomou, e por isso vai “de noite”, para não se comprometer com Jesus diante de seus colegas judeus.

Ora, o evangelho joanino é conhecido como o evangelho da decisão: o evangelho (que serve para o discernimento) para aqueles e aquelas que estão no processo da tomada de decisão pró ou contra Jesus, principalmente dentro do contexto daqueles anos 90, em que o autor concebe sua obra. Um momento de crise de fé das comunidades cristãs. Diante da crise se opta pela fidelidade (adesão) à Jesus de Nazaré (como revelador pleno da Glória de Deus e Vida do mundo) ou abandona-se a fé? Acolhe-se o Dom de Deus em Jesus, Luz do mundo, ou recusa-lo? Eis o sentido da segunda intenção do evangelista ao situar a conversa “pela noite”. Nesse sentido, pode-se identificar a Nicodemos como um símbolo do candidato / iniciado na fé cristã.

Mais uma consideração acerca da natureza do Quarto Evangelho se faz necessária. O Evangelho de João, quando fora escrito trazia como uma de suas temáticas a superação das instituições do Antigo Testamento, principalmente de todo o sistema levítico-cultual de Israel (Templo, sacrifícios ou holocaustos, sacerdócio judaico). Este chefe dos judeus está inserido neste contexto das tradições e sistema religioso. Ele é, pois, a metáfora do velho que precisa ser superado; elevado a um novo sentido ou mesmo abolido.

Nicodemos é um fariseu, e, enquanto tal, faz parte dos que pensam e concebem ideologicamente a manifestação do Messias e de Deus como sendo ocasião do juízo e da condenação para os pecadores. Mas Jesus lhes revela uma face diferente do Deus de Israel, a quem chama de Pai. Trata-se, portanto, de uma novidade: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (v.16). Jesus se declara como a expressão do amor de Deus pela humanidade. Deus expressa seu amor dando seu Filho. Crer, na bíblia, não significa dar adesão à uma doutrina, mas a uma pessoa. É uma experiência existencial com uma pessoa e não com uma ideia. Note-se que, pela segunda vez neste capítulo aparece o tema da vida eterna, muito caro ao evangelista. Os fariseus pensavam-na como um prêmio a receber no futuro, a partir dos méritos e do cumprimento das prescrições levíticas e rituais, observando estritamente a lei mosaica. Para Jesus, ao contrário, é uma condição na vida presente. O termo “vida eterna” não pode ser compreendido a partir da duração indefinida da vida. Mas pela qualidade de uma vida que se torna indestrutível.

Os vv.16-18 apresentam, ainda, a novidade escatológica inaugurada através de Jesus. João substitui o termo “Filho do Homem” por Filho Unigênito (traduzido mais familiarmente por único (yahid), “o imensamente querido”, como foi Isaac para Abraão). O autor do Quarto Evangelho pretende mostrar a profundidade do mistério que está sendo evocado. Deus nos amou tanto, que nos deu seu filho unigênito (o seu imensamente querido), para nos salvar, e não para condenar. Uma constatação importante: “Deus deu seu Filho...”: o verbo usado não é “entregou”, mas “doou”! Deus não enviou Jesus especificamente para sofrer, não o entregou para que pagasse com seu sangue os nossos pecados. Deus não é um sanguinário que quer ser pago com sangue, nem com sofrimentos ou mortificações.

A verdade é que Jesus é o “dom” de Deus para manifestar seu amor e sua graça. Essa vida, pautada pela ótica e dinâmica do Amor e da Fidelidade é o que o fará ser fiel a Deus e ao Reino, até as últimas consequências. Deus, em Jesus, só nos quis mostrar em quê consiste o Amor e a Fidelidade.

O v.18 aprofunda o sentido do verbo “julgar/condenar” (v.17). Aquele que aceita esse Dom, quem na fé adere a Jesus, não é condenado por Ele. Mas quem não crê, já condenou a si mesmo. Isso, se realmente conhece a Jesus. João não está falando de pessoas que nunca ouviram falar de Jesus (quer seja naquela época ou hoje). Mas se dirige àqueles que já conhecem a mensagem cristã. É como que se lançasse a pergunta “vocês comprometem as suas vidas a este Jesus que vocês conheceram como Dom de Amor de Deus?” O Quarto Evangelista dirige esta pergunta àqueles que perceberam o valor vital de Jesus e nem mesmo assim o querem aceitar. É a estes que é dirigido o julgamento e autocondenação.

Para quem despreza esse dom, a vinda de Jesus ao mundo como luz significa julgamento (cf. 9,41). Fogem da Luz, preferindo ficar nas trevas, e por isso não aguentam a Luz. Quem “pratica a verdade” e age com lealdade em relação a Deus e aos irmãos, esse aproxima-se da luz que é Jesus. Suas obras são “feitas em Deus”, sua prática é solidária com a obra de Deus. “Praticar a verdade” significa agir segundo a verdade, o reto proceder que Deus, de diversas maneiras, nos dá a conhecer, especialmente na própria prática de Jesus (KONINGS, 2005, p.117-118).

Deus Uno e trino se dá a conhecer através de Jesus de Nazaré. E é sob o mistério do amor-doação, comunhão e unidade que O Deus uno e trino pauta o seu viver desde o interno de sua vida divina. Esta vida, num mesmo mistério de amor é doada pela Trindade Santa, e quem a revela é Jesus, no Espírito.

Da vida da Trindade somos todos chamados a participar através do Batismo recebido, o qual nos dá o Dom do Espírito, que habilita a chamar Deus de Pai e Jesus de Senhor. Assim, o Espírito nos garante acesso a vida de Jesus e do Pai, porque nos leva para dentro de sua relação de comunhão e amor, para vivermos segundo a vida do mesmo Filho, inscrita em nós pelo Espírito. Ou seja, para vivermos uma vida segundo o modelo da Trindade, em amor, comunhão, doação e unidade.

Diante do espelho do texto, emergem algumas perguntas. 1) Com quais personagens nos identificamos: com Nicodemos, que ainda não fez sua opção/decisão por Jesus, ou por aqueles que aderiram ao Dom de Deus, em Jesus de Nazaré, Senhor e Cristo? 2) Temos acolhido, de fato, a Jesus de Nazaré como Dom por excelência de Deus em nossas vidas? 3) Em nosso discipulado-seguimento a Jesus, em quais horas de nossas vidas nos dirigimos à Jesus para ter com ele, durante a noite (na treva da escuridão, da indecisão, do descompromisso, do medo, da rejeição ao seu projeto) ou na hora da Luz (da decisão, da verdade, da fidelidade e do Amor a ele ao irmão)?

Habitados que fomos pela Trindade, somos chamados a irradiar, como discípulos-missionários, e, enquanto comunidade, a vida e ação do Deus Uno e Trino.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário