Celebra-se em toda a Igreja a solenidade
da Santíssima Trindade, ao interno do tempo comum, já retomado após
Pentecostes. No entanto, a liturgia ainda propõe a leitura do Quarto Evangelho.
A perícope oferecida é a que se encontra no capítulo três do Evangelho segundo
João. O presente texto, Jo 3,16-18, nos faz mergulhar na solenidade de hoje.
O evangelista João situa o capítulo 3 de
sua obra, imediatamente às palavras (episódio) contra o templo (Jo 2,13-25), ou
seja, durante os dias da pascoa dos judeus. Naquele episódio, Jesus apontava
para a novidade escatológica que ele mesmo trazia, em nome de Deus, a partir de
si mesmo: seu corpo (templo) lugar da manifestação da glória de Deus,
simbolizado pela purificação-superação do templo, feita por ele. A novidade da
presença de Deus em seu Cristo, Jesus de Nazaré, e não mais no sistema
levítico-cultual da tradição judaica. É neste capítulo que, pela primeira e
única vez, aparece a temática acerca do Reino de Deus, que depois é substituído
pelo conceito Vida ou Vida Eterna.
João traz, nesta narrativa, uma nova
situação: um diálogo com um judeu importante, de nome Nicodemos. A temática
apresentada neste diálogo é muito rica: desde o entusiasmo de Nicodemos pelos
sinais realizados por Jesus, passando pela novidade das coisas do alto (novo
nascimento, 3,1-15), culminando numa homilia, por parte do evangelista (que
esquece um pouco seu papel de narrador), acerca do dom da salvação (3,16-21).
Nossa reflexão, aborda esta parte do diálogo com o fariseu Nicodemos.
Importante para nós é uma nota do
evangelista: o diálogo entre Jesus e o líder judeu se dá na noite. João faz
questão de informar esta particularidade por dois motivos concernentes ao seu
público. 1º) É da pedagogia do Quarto Evangelho apresentar, em tons simbólicos
(e mistagógicos, como que uma catequese pós-batismal para os já iniciados na
fé) o contraste entre Luz e Treva. Nesta hora (de treva) do mundo e da
história, Jesus é apresentado para a comunidade cristã e para o mundo como a
Luz. 2º) mostrar Nicodemos como uma pessoa que está em vias de tomar uma
decisão pró-Jesus, mas que ainda não tomou, e por isso vai “de noite”, para não
se comprometer com Jesus diante de seus colegas judeus.
Ora, o evangelho joanino é conhecido como
o evangelho da decisão: o evangelho (que serve para o discernimento) para
aqueles e aquelas que estão no processo da tomada de decisão pró ou contra
Jesus, principalmente dentro do contexto daqueles anos 90, em que o autor
concebe sua obra. Um momento de crise de fé das comunidades cristãs. Diante da
crise se opta pela fidelidade (adesão) à Jesus de Nazaré (como revelador pleno
da Glória de Deus e Vida do mundo) ou abandona-se a fé? Acolhe-se o Dom de Deus
em Jesus, Luz do mundo, ou recusa-lo? Eis o sentido da segunda intenção do
evangelista ao situar a conversa “pela noite”. Nesse sentido, pode-se
identificar a Nicodemos como um símbolo do candidato / iniciado na fé cristã.
Mais uma consideração acerca da natureza
do Quarto Evangelho se faz necessária. O Evangelho de João, quando fora escrito
trazia como uma de suas temáticas a superação das instituições do Antigo
Testamento, principalmente de todo o sistema levítico-cultual de Israel
(Templo, sacrifícios ou holocaustos, sacerdócio judaico). Este chefe dos judeus
está inserido neste contexto das tradições e sistema religioso. Ele é, pois, a
metáfora do velho que precisa ser superado; elevado a um novo sentido ou mesmo
abolido.
Nicodemos é um fariseu, e, enquanto tal,
faz parte dos que pensam e concebem ideologicamente a manifestação do Messias e
de Deus como sendo ocasião do juízo e da condenação para os pecadores. Mas
Jesus lhes revela uma face diferente do Deus de Israel, a quem chama de Pai.
Trata-se, portanto, de uma novidade: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu
Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida
eterna” (v.16). Jesus se declara como a expressão do amor de Deus pela
humanidade. Deus expressa seu amor dando seu Filho. Crer, na bíblia, não
significa dar adesão à uma doutrina, mas a uma pessoa. É uma experiência existencial
com uma pessoa e não com uma ideia. Note-se que, pela segunda vez neste
capítulo aparece o tema da vida eterna, muito caro ao evangelista. Os fariseus
pensavam-na como um prêmio a receber no futuro, a partir dos méritos e do
cumprimento das prescrições levíticas e rituais, observando estritamente a lei
mosaica. Para Jesus, ao contrário, é uma condição na vida presente. O termo “vida
eterna” não pode ser compreendido a partir da duração indefinida da vida. Mas
pela qualidade de uma vida que se torna indestrutível.
Os vv.16-18 apresentam, ainda, a novidade
escatológica inaugurada através de Jesus. João substitui o termo “Filho do
Homem” por Filho Unigênito (traduzido mais familiarmente por único (yahid), “o
imensamente querido”, como foi Isaac para Abraão). O autor do Quarto Evangelho
pretende mostrar a profundidade do mistério que está sendo evocado. Deus nos
amou tanto, que nos deu seu filho unigênito (o seu imensamente querido), para
nos salvar, e não para condenar. Uma constatação importante: “Deus deu seu
Filho...”: o verbo usado não é “entregou”, mas “doou”! Deus não enviou Jesus
especificamente para sofrer, não o entregou para que pagasse com seu sangue os
nossos pecados. Deus não é um sanguinário que quer ser pago com sangue, nem com
sofrimentos ou mortificações.
A verdade é que Jesus é o “dom” de Deus
para manifestar seu amor e sua graça. Essa vida, pautada pela ótica e dinâmica
do Amor e da Fidelidade é o que o fará ser fiel a Deus e ao Reino, até as
últimas consequências. Deus, em Jesus, só nos quis mostrar em quê consiste o
Amor e a Fidelidade.
O v.18 aprofunda o sentido do verbo
“julgar/condenar” (v.17). Aquele que aceita esse Dom, quem na fé adere a Jesus,
não é condenado por Ele. Mas quem não crê, já condenou a si mesmo. Isso, se
realmente conhece a Jesus. João não está falando de pessoas que nunca ouviram
falar de Jesus (quer seja naquela época ou hoje). Mas se dirige àqueles que já
conhecem a mensagem cristã. É como que se lançasse a pergunta “vocês
comprometem as suas vidas a este Jesus que vocês conheceram como Dom de Amor de
Deus?” O Quarto Evangelista dirige esta pergunta àqueles que perceberam o valor
vital de Jesus e nem mesmo assim o querem aceitar. É a estes que é dirigido o
julgamento e autocondenação.
Para quem despreza esse dom, a vinda de
Jesus ao mundo como luz significa julgamento (cf. 9,41). Fogem da Luz,
preferindo ficar nas trevas, e por isso não aguentam a Luz. Quem “pratica a
verdade” e age com lealdade em relação a Deus e aos irmãos, esse aproxima-se da
luz que é Jesus. Suas obras são “feitas em Deus”, sua prática é solidária com a
obra de Deus. “Praticar a verdade” significa agir segundo a verdade, o reto
proceder que Deus, de diversas maneiras, nos dá a conhecer, especialmente na
própria prática de Jesus (KONINGS, 2005, p.117-118).
Deus Uno e trino se dá a conhecer através de
Jesus de Nazaré. E é sob o mistério do amor-doação, comunhão e unidade que O
Deus uno e trino pauta o seu viver desde o interno de sua vida divina. Esta
vida, num mesmo mistério de amor é doada pela Trindade Santa, e quem a revela é
Jesus, no Espírito.
Da vida da Trindade somos todos chamados a
participar através do Batismo recebido, o qual nos dá o Dom do Espírito, que
habilita a chamar Deus de Pai e Jesus de Senhor. Assim, o Espírito nos garante
acesso a vida de Jesus e do Pai, porque nos leva para dentro de sua relação de
comunhão e amor, para vivermos segundo a vida do mesmo Filho, inscrita em nós
pelo Espírito. Ou seja, para vivermos uma vida segundo o modelo da Trindade, em
amor, comunhão, doação e unidade.
Diante do espelho do texto, emergem
algumas perguntas. 1) Com quais personagens nos identificamos: com Nicodemos,
que ainda não fez sua opção/decisão por Jesus, ou por aqueles que aderiram ao
Dom de Deus, em Jesus de Nazaré, Senhor e Cristo? 2) Temos acolhido, de fato, a
Jesus de Nazaré como Dom por excelência de Deus em nossas vidas? 3) Em nosso
discipulado-seguimento a Jesus, em quais horas de nossas vidas nos dirigimos à
Jesus para ter com ele, durante a noite (na treva da escuridão, da indecisão,
do descompromisso, do medo, da rejeição ao seu projeto) ou na hora da Luz (da
decisão, da verdade, da fidelidade e do Amor a ele ao irmão)?
Habitados que fomos pela Trindade, somos
chamados a irradiar, como discípulos-missionários, e, enquanto comunidade, a vida
e ação do Deus Uno e Trino.
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.
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