sábado, 25 de abril de 2020

HOMILIA PARA O III DOMINGO DA PÁSCOA – Lc 24,13-35:



A morte de Jesus causou a dispersão e a confusão do grupo dos discípulos e das mulheres que O seguiam. Nas primeiras horas daquele primeiro dia da semana, elas vão a sua procura onde ele não está, no sepulcro. Lucas conserva os dados comuns a Marcos, Mateus e João, mas transmite a experiência com o ressuscitado a seu modo para a sua comunidade. A liturgia deste Terceiro Domingo da Páscoa nos apresenta o relato conhecido por todos como os discípulos de Emaús. Tomemos o texto.

“Naquele mesmo dia, o primeiro da semana, dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém” (v.13). O evangelista situa-nos ao entorno dos acontecimentos daquele primeiro dia da semana, o dia da ressurreição. Mas demonstra que, ainda, a comunidade não consegue fazer a experiência com o evento da ressurreição, tampouco com o ressuscitado, ao narrar dois do grupo dos discípulos do Senhor, a caminho do povoado de Emaús. Por que seguem para lá?

O projeto teológico de Lucas revela como meta e centro da missão de Jesus, a cidade santa de Jerusalém. Desde o capítulo nono, o evangelista nos narra a subida do Senhor para Jerusalém. Por dez capítulos Lucas vai preparando a chegada de Jesus na cidade santa, pois ali Ele revelará a ação de Deus, através de sua entronização a partir da morte de Cruz e da ressurreição. Por isso, Jerusalém se torna a meta de Jesus, e, por conseguinte, a do discípulo. A fim de que, a partir da comunidade dos discípulos, a Palavra de Deus – que encontra sua expressão plena em Jesus – seja anunciada a todas as nações, até os confins do mundo (habitado), confirmando a profecia isaiana de que “de Jerusalém vem a Palavra de Deus”.

Os discípulos se deslocam em direção a Emaús, caminho oposto à Jerusalém. Eles tomam a direção contrária. Ou seja, assumem andar na contramão do sentido da vida e da missão de Jesus. Eles não conseguem assumir como meta para si o sentido da vida de seu mestre. Emaús, significa, portanto, o estado de ânimo do discípulo e da comunidade que não querem se comprometer com o projeto de Jesus. Outra leitura possível só confirma o nosso raciocínio, pois o povoado rememora um episódio marcante para a história de Israel: a vitória do povo judeu, liderado por Judas Macabeu, que, com seu exército libertou o povo do domínio dos povos pagãos, “Todas as nações saberão que Israel possui um libertador e um salvador” (1Mc 4,11). Ou seja, o messias esperado seria aquele que resgataria e salvaria o povo de Israel. Jesus, ao contrário, frustrou essas expectativas, tornando-se uma grande desilusão para os discípulos por causa de sua morte.

Os evangelhos mostram o quanto os discípulos ficam desiludidos frente a ideia da ressurreição de Jesus, mais do que diante de sua morte. Ora, diante da crença popular de que o messias não morreria, bastava a morte de um pretenso messias, para se esperar outro. Se Jesus morreu, então não poderia ser o messias, e todos estariam errados a seu respeito. Surgiam muitos pretensos messias no tempo de Jesus (Teudas, Judas, o Galileu) que angariava as massas populares contra os romanos, e acabavam sempre derrotados. Mas se Jesus ressuscitou, significa que todos aqueles sonhos de glória, de restauração da realeza davídica de domínio e de poder desapareceriam. Esta concepção messiânica está também atrelada ao povoado de Emaús. Os discípulos que seguem para lá outra coisa não fazem que alimentar estas expectativas, que, no fundo, revelam-se frustradas.

“Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles” (v.15). Aqui, o evangelista confirma aquela imagem de Jesus, pastor ideal (pertencente ao Quarto Evangelho), que não abandona suas ovelhas. Antes, caminha com elas. Mas Lucas insiste na dificuldade dos discípulos em reconhecer o peregrino que caminhava com eles (v.16). Estão impedidos de ver/reconhecer a Jesus que caminha com eles porque estão ainda com os olhos voltados ao passado e na direção contrária; não conseguem ver o presente, no qual Jesus está, tampouco vislumbrar o futuro para o qual o mestre conduz, e de onde Ele estará através da presença, da vida e do testemunho dos discípulos.  

No entanto, os discípulos seguem na dificuldade de retomarem o caminho proposto. Diante da pergunta do peregrino acerca do conteúdo da conversa deles durante a viagem, eles o colocam a par dos últimos acontecimentos ocorridos com Jesus, o Nazareno. Note-se, eles não abandonam o adjetivo nazareno, o qual aludia a condição de revolucionário. Ainda se prendem a essa expectativa. Não bastou o testemunho das mulheres, o que naquela época não tinha valor legal. Eis a resposta de Jesus diante da incredulidade e da frustração dos discípulos, a qual soa como reprovação da atitude deles: “Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória? (vv.25-26).

O verbo utilizado por Lucas, “dever/necessidade”, indica a vontade de Deus em relação ao sofrimento de Cristo. Mas a necessidade deste sofrimento só pode ser compreendido diante da liberdade de Jesus ao assumi-lo, não como certo e predeterminado, mas como eventual parte ou consequência de uma vida inteira. Por isso, Jesus lhes interpreta as escrituras, “E, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele” (v.27). Lucas usa o verbo “interpretar” (Gr. διηρμηνευεν / dihermhenêuesen), verbo do qual provem o termo técnico hermenêutica, a arte ou a técnica de interpretar o texto. Jesus não se limita a ler ou narrar lhes os textos das Escrituras, mas Ele os interpreta. Ou seja, para ler e compreender as Sagradas Escrituras se necessita lê-la e interpretá-la com o mesmo Espírito que as inspirou, o Amor do Criador por todas as suas criaturas. E este é o único critério que permite aos discípulos compreenderem as Escrituras.



Mais um critério é necessário ao discípulo para compreender o sentido (caminho, direção) da vida de Jesus. O evangelista recorda a última ceia do Senhor através do gesto do sentar-se à mesa com os discípulos e partir o pão com (e para) eles: “Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles” (v.30-31). Os mesmos gestos, a mesma ação. Lucas é o único evangelista que coloca na boca de Jesus, no momento da ceia, após as palavras sobre o pão e o vinho, a ordem de iteração “Fazei isto em memória de mim”. Assim, Jesus atualiza a sua presença através de seu memorial. Isso faz com que os olhos dos discípulos se abram e possam reconhecê-lo.

Ao realizar a sua memória diante dos discípulos à mesa, Jesus tornou-se invisível aos olhos deles. O texto litúrgico diz que Ele desapareceu, termo que não expressa bem o sentido dado pelo evangelista. O termo utilizado por ele é “ficou invisível”. Desparecer significa não estar mais presente, alude a uma ausência. “Ficar invisível” significa permanecer presente sem ser visto; alude a certeza da presença daquele que não se vê. Esta é a mensagem que o Evangelista quer transmitir para sua comunidade: Jesus se torna visível todas as vezes em que a comunidade se reúne para partir o pão.

Somado à Palavra de Deus reinterpretada por Jesus (à luz de sua vida), o pão repartido se torna critério para experimentar Jesus Ressuscitado. O pão partido (despedaçado) é uma realidade da qual se serve Jesus para expressar e visibilizar o acontecido com sua vida e história. Assim como o pão foi partilhado, despedaçado e entregue na última ceia aos seus, aconteceria mais tarde com a sua vida, doada, espezinhada e violentada na Cruz; mas será o sinal distintivo através do qual a comunidade poderá fazer memória da sua vida vencedora e indestrutível. Assimilando seu gesto de entrega-em-amor, a comunidade poderá fazer o que Ele fez e viver como e o que Ele viveu.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 18 de abril de 2020

HOMILIA PARA O II DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 20,19-31:


Completou-se a oitava pascal – o grande domingo da Ressurreição do Senhor. E a narrativa proposta pela liturgia para a nossa meditação é tomada da conclusão original do Quarto Evangelho, Jo 20,19-31 (uma vez que o vigésimo primeiro capítulo do Evangelho segundo João é um apêndice, o qual possui sua finalidade que ainda não cabe comentar). O texto deste Segundo domingo do tempo pascal continua a leitura do capítulo vigésimo, omitindo apenas o encontro de Maria Madalena com Jesus Ressuscitado.

João situa o leitor no tempo e no espaço, “Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores. O primeiro dia. Note-se, no entanto, que já não se trata do amanhecer do primeiro dia, após o sábado, como foi descrito no começo da seção narrativa. Aquele indicativo temporal servia para ilustrar a condição da comunidade dos discípulos: ela não havia conseguido desvencilhar-se ainda dos costumes judaicos do repouso sabático e da Lei, e, portanto, não desfrutava da realidade da ressurreição.

A partir deste novo indicativo temporal (ao anoitecer ou “ao entardecer”), João dá mostras de que a comunidade está despertando de seu sono de morte. Está fazendo, processualmente, a experiência da ressurreição. Sinal, também, de que ela já estava dedicando aquele “primeiro dia” para celebrar a Memória do Senhor Ressuscitado. Ocorre, igualmente, a transição de cenário. O espaço já não é o mesmo; a comunidade dos discípulos não se situa mais no sepulcro, mas noutro espaço, o da própria comunidade. Isto já é um sinal de que ela venceu o sepulcro (cf. KONINGS, 2005, p. 354).

Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v.1b), mostra que, mesmo a comunidade tendo dado os passos no processo da experiência da ressurreição, ainda estava bloqueada pelo medo. Ora, Na Teologia Bíblica, o Medo é sempre contrário à Fé. Esta condição amedrontada acaba sendo incompatível com o desenlace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). O medo preocupa, impede a missão; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a ausência do Senhor.

Todavia, é preciso fundir os horizontes. O leitor é chamado à unir o panorama temporal da comunidade dos discípulos, que faziam a experiência com o ressuscitado com a realidade da comunidade joanina dos anos 90 d.C, que sofria perseguição por parte dos Judeus e das autoridades romanas. Assim, o relato do encontro com o ressuscitado em 20,19-23 torna-se uma mensagem de conforto para a comunidade do fim do século I, e de todos os tempos (cf. KONINGS, 2005, p. 354)”.

Eis que Jesus põe-se no meio deles. É importante a informação dada pelo evangelista, pois ela indica que na comunidade do Ressuscitado (e na comunidade joanina) não existe supremacia nem relações piramidais. Ela é uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: Jesus. Na Memória do Ressuscitado celebrada pela comunidade ninguém é maior e todos estão referenciados – numa circularidade – ao Senhor.

Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado. Encontrando-se com os discípulos (no meio deles), o Ressuscitado realiza neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada (CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

A paz esteja convosco (ειρηνη υμιν, Eiréne ymín)”. À primeira vista, isso parece a saudação comum do ambiente bíblico. Mas esta saudação se repete por três vezes, o que indica completude, e, ao mesmo tempo a plenitude do ser humano. O número três, na bíblia indica plenitude. Por isso, esta primeira palavra dirigida por Jesus aos seus possui conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O Shalom (שָׁלוֹם) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (Shelamim), cujo pagamento (o Shalom) que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz.  Aqui, parece implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastam com o medo mencionado no início. O Jesus joanino, ao desejar a paz pretende ensinar que através do Dom de sua vida vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada (cf. KONINGS, 2005, p. 355).

Jesus mostra-lhes, então, as mãos e o lado marcados e feridos pelos pregos e pela lança. É intenção de João mostrar a continuidade entre Jesus Crucificado e Ressuscitado. Sua condição ressuscitada traz as marcas de sua Paixão. E os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. As mãos são sinais do serviço, do agir, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração.

Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio” (v. 21). A missão de Jesus estava fundamentada na tarefa recebida do Pai; a deles, na incumbência de Jesus, que constitui com o Pai uma unidade. Aqui, encontramos três termos importantes: os verbos apostellein e pempein (enviar, ἀποστέλλω; mas aqui é απεσταλκεν (apestalkén), cujo tempo verbal encontra-se no perfeito, que indica ação contínua) e a conjunção kathôs (καθως, como). Os verbos e a conjunção têm a intenção de exprimir semelhança e causalidade, isto é, a missão dos discípulos é continuação daquela que Jesus recebeu do Pai e encontra nela seu modelo e origem.

A ressurreição de Jesus é uma ressignificação na vida da Comunidade dos discípulos.  Ao enviá-los, ele sopra sobre eles o seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus sopra nas narinas do vivente seu sopro de vida. O Gesto de Jesus remete à Criação, e por isso, na Ressurreição de Jesus acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. O verbo soprar (em grego: έμφυσάωemfysáo) significa doação de vida. No seu gesto, Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. Não é um simples carisma que recebem, algo que vem acrescentar-se à sua vida. É sopro divino; vida nova! É uma nova criação (cf. Sl 104,30). Sua vida tem outra força que antes.

A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). O Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares em todos os tempos. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua paz.

A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo os pecados é o amor de Jesus; logo, ficam sem a experiência do perdão o discípulo que recusa amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade diante do mandamento do amor, e a atitude de negação do fiel em relação à pessoa de Jesus.

A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem, a fim de evitar-lhes apelidos e mal-entendidos. Voltemos para a informação inicia, dada pelo evangelista, em que os discípulos estavam fechados, com medo das autoridades judaicas. Ora, Tomé não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilhasse da mesma mentalidade. Todavia, esta é uma informação teológica que o autor do Quarto Evangelho transmite, e não uma informação no nível da crônica, a qual daria margens para possíveis interpretações errôneas, por exemplo, a de que o discípulo ausente não teria medo de nada, o que poderia rotula-lo como inconsequente em matéria de fé. A qualidade da fé nada tem a ver com a inconsequência do fiel. Tomé não é um super-discípulo (inconsequente), mas, no nível teológico da narrativa, um personagem gêmeo do leitor discípulo.

Tomé era chamado Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo. Quem é o gêmeo de Tomé? Os personagens anônimos têm, no Quarto Evangelho (e em toda a Sagrada Escritura), a função de paradigmas para a comunidade e os leitores. Ou seja, os personagens anônimos servem para que os leitores assumam aquela identidade; se identifiquem com ele. Um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades.

Tomé não estava com eles porque não tinha medo (oposição da Fé), e, por isso, não se deixou paralisar diante da experiência negativa e, portanto, circulava livremente e sem temor algum. Porém, sua coragem foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo. O erro de Tomé foi o de não aceitar o testemunho da comunidade. Por isso pediu os mesmos privilégios dos dez, ver, e, também, tocar o Senhor.

Oito dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do Ressuscitado), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a executar o gesto que havia pedido como prova. Ele, ao invés de tocar o Senhor formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. O título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18) e cria, assim, uma inclusão que abarca e resume o Evangelho segundo João inteiro (BEUTLER, 2016, p. 359).

Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, muito questionadores chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado.

O capítulo 20 do evangelho joanino corresponde ao final original do Quarto Evangelho. Nesta seção o leitor-discípulo é convidado a tomar parte da experiência da comunidade dos discípulos com Jesus ressuscitado. Não se tratam de aparições, propriamente, mas de Encontros com o Crucificado-Ressuscitado. É evidente, que para aquelas testemunhas oculares não se constituiu tarefa fácil encarar as horas e os dias seguintes ao “acontecido” com Jesus de Nazaré. Por isso, o fiel e leitor do Quarto Evangelho, ou melhor, a geração posterior (na qual nos incluímos), deverá colocar-se no mesmo horizonte daquelas testemunhas oculares. Caberá a esta geração “Crer sem ver”, e por isso ser considerados o bem-aventurados por isso. Fundido os horizontes, o discípulo-leitor é convidado a tomar parte da narrativa da experiência da comunidade dos Doze. “Para João, morte e ressurreição não são realidades estanques, mas dois aspectos inseparáveis da mesma realidade, a glorificação de Jesus (KONINGS, 2005, p. 346)”.

Diante desta belíssima catequese joanina, três perguntas se fazem necessárias: 1) Estamos no segundo domingo da Páscoa. Já faz uma semana que estamos envolvidos pela ressurreição do Senhor. Por isso, qual a nossa condição e predisposição interior: amedrontados e fechados, ou alegres e reedificados na Fé, pela virtude do Ressuscitado? 2) Quais atitudes de Tomé encontram lugar em mim, com toda a ambivalência daquela personagem? 3) Tomo consciência da importância que a vida e o testemunho da Comunidade têm para minha vivência de Fé, como sua matriz e geradora?

Feliz Páscoa.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

domingo, 12 de abril de 2020

Homilia do Domingo de Páscoa - Jo 20,1-9:



O Texto proposto para a meditação neste Domingo de Páscoa é retirado do capítulo vigésimo do evangelho de João. O último capítulo do Quarto Evangelho relata para nós a experiência com Jesus Ressuscitado. Embora, o inicio desta ultima cena do evangelho joanino não descreva qualquer encontro com Jesus. Estamos no livro da Gloria. A sua glorificação / enaltecimento já foi realizado através de sua entrega na cruz. Ali, Deus revelou toda a sua presença e poder. O discípulo e a comunidade são chamados a reconhecer Deus mesmo no Crucificado. 

Mas a comunidade ainda não está preparada para fazer a experiência com o ressuscitado. O evangelista trata de relatar-nos esta dificuldade da comunidade. Ela é simbolizada por Maria Madalena. 

No v.1, o evangelista nos informa que, no primeiro dia da semana, bem de madrugada quando ainda estava escuro, ela se dirige ao sepulcro. João quer acenar para o fato de que a comunidade, simbolizada por ela, ainda se encontra ao redor do túmulo. Ainda não conseguiu fazer a experiência da ressurreição do Senhor. Outro fato agravante é o dado cronológico que o evangelista dá: era o primeiro dia da semana, literalmente, "depois do sábado". Este dado cronológico do sábado revela que a comunidade dos discípulos ainda está presa ao preceito da lei mosaica de guardar o sétimo dia. Eles estão ainda condicionados à observância da lei do repouso sabático, e esta observância impede ao discípulo e à comunidade de experimentarem prontamente a potência da vida que existe em em Jesus, uma vida capaz de superar a morte. Assim, o evangelista pretende ensinar para sua comunidade que a observância da lei retarda a experiência com a nova criação, inaugurada por Deus no Ressuscitado, naquele primeiro dia da semana. De fato, o "primeiro dia da semana", para o evangelista, recorda o primeiro dia da criação em Gn 1 - 2. Em Jesus, acontece a nova criação. Aquela que é realmente criada por Deus não conhece fim; não conhece a morte.

"Quando ainda estava escuro", enfatiza o evangelista. A escuridão remete às trevas. Ela simboliza a incompreensão da comunidade ainda não compreendeu a Jesus como luz do mundo. Tampouco sua vida e sua mensagem. A comunidade encontra-se, portanto, impossibilitada, bloqueada e sem compreender a vida e o acontecido com Jesus.

Ao chegar ao sepulcro, se depara com este aberto. A pedra havia rolado. O tumulo estava vazio. Imediatamente, Maria corre até os discípulos para contar-lhes o acontecido. Aqui, se faz necessário entender o seguinte, as mulheres não eram bem vistas pela sociedade da época de Jesus; elas não tinham voz e nem vez; inclusive, seu testemunho não valia. Daí, o fato de correr até os discípulos, homens, que funcionariam como testemunhas qualificadas para o evento. Mas, na verdade, Maria Madalena tem a função de arrebanhar o grupo dos discípulos que haviam dispersados após a morte de Jesus. Sua missão será a de reunir novamente o grupo. E lhes anuncia, então, o seguinte: "'Tiraram o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o colocaram"  (v.2). É interessante, que ela não fala de um cadáver ou de um corpo, mas refere-se a Jesus como "o Senhor". O evangelista, com essa afirmação de Madalena, quer aludir ao fato de que esse Jesus está vivo, e não morto. 

O que fazem Pedro e o outro discípulo? Justamente o que não se esperaria que se fizesse: vão ao sepulcro. O último lugar que deveriam ir. Porque Jesus não se encontrava ali. No evangelho segundo Lucas, inclusive, o evangelista insere os dois homens-mensageiros, que se interpõem entre as mulheres que também vão ao sepulcro, para adverti-las de que o Jesus não estava ali. Pedro e o outro discípulo vão justamente ao lugar onde Jesus não está, no lugar da morte (v.3). Ora, Jesus não pode ser retido na sepultura, lugar da morte, porque Ele é o vivente.

"Os dois corriam juntos,mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo" (v.4). As duas personagens são intrigantes. Os dois correm juntos, mas o discípulo - que Jesus amava (o amado) - chega primeiro que Pedro. João trata de estabelecer um contraste entre os dois. O discípulo amado - não é João, o autor do Quarto Evangelho - é aquele que guardou as palavras de Jesus, que fez uma experiência de amor com o mestre, e que está em condições de assumir a vida e o projeto de Jesus em sua vida. Sua atitude nesta cena é exemplar: ele corre mais depressa (por ter feito uma experiencia profunda com Jesus, ele consegue processar mais rapidamente os eventos), chega ao sepulcro, olha para dentro, vê as faixas no chão e não entra (v.5). O evangelista trabalha aqui com o verbo grego Theorein, que significa ver. Mas este "ver" não corresponde tão somente a uma capacidade física. Theorein (Theoreo) significa "contemplar", "olhar desde dentro". Mas o verbo "ver" na teologia indica para a capacidade de se viver e fazer uma experiência profunda com Deus. O discípulo amado, portanto, é aquele que está em condições de fazer a experiência com o ressuscitado. 

Diferentemente de Pedro. Ele tem dificuldades. Ele se recusou e fez dificuldade a Jesus no gesto de lavar os pés; descomprometeu-se com Jesus na ocasião do processo judaico na casa do sumo sacerdote, negando a Jesus. Não aceitou o gesto e a condição de Jesus de lavar os pés e colocar-se a serviço. Por isso, chega depois no sepulcro. Mas o discípulo amado se retém, e deixa que Pedro , o discípulo descompromissado e que fez a experiência com a morte adentre no sepulcro e faça sua experiência com o evento da vida (v.6).

"Então entrou também o outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo. Ele viu, e acreditou. De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos" (vv.8-9). A advertência que o evangelista faz no v.9 é importante. A preocupação de João é que se possa crer na ressurreição de Jesus somente vendo os "sinais" (sepulcro vazio; toalhas e panos ao chão) de sua vitória sobre a morte. Mas a ressurreição de Jesus não é um privilégio concedido a um grupo restrito de pessoas, num determinado tempo e espaço, ha dois mil anos atrás. E, sim, uma possibilidade a todos os crentes. Como? Através do exame e da compreensão das Escrituras. 

No evangelho joanino, soma-se às Escrituras Sagradas do AT as palavras e ensinamentos de Jesus. Para ele e sua comunidade as palavras de Jesus ganham e adquirem estatuto de Palavra de Deus. Principalmente "aquelas segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos". O acolhimento das Escrituras e da Palavra do Senhor e Mestre no discípulo, o enraizamento de Sua mensagem em sua vida, permitem ao discípulo viver uma vida de qualidade tal que poderá experimentar o ressuscitado na sua própria vida. Não se crê que Jesus ressuscitou apenas porque o sepulcro está vazio. Mas somente se O encontra vivo e edificante na própria vida do discípulo.  

A ressurreição de Jesus ninguém viu. Ela aconteceu na noite da história humana, mas ainda continua sendo uma experiência "familiar", ou seja, pertencente ao mistério do Deus Uno e Trino. Só temos acesso às experiências que as primeiras testemunhas oculares nos transmitiram através dos relatos bíblicos, e, tão somente com o Ressuscitado, e não com o evento da Ressurreição, de modo que as mesmas narrativas só podem transmitir esta experiência a partir de uma linguagem repleta de simbologia. O que, jamais, poderá empobrecer o evento, tampouco nega-lo. 

Mas, a partir da própria linguagem é que se pode elaborar verbalmente aquela experiência fundante da fé cristã. Por isso, poderíamos dizer com toda a segurança que a ressurreição de Jesus é a mais perfeita, profunda e plena afirmação da vida de Jesus que o Pai faz. Deus, ao ressuscitar Jesus dentre os mortos, confirma a sua vida (missão, modo de ser, história, obra, paixão e morte), como aquela vida sonhada e desejada por Ele a todo gênero humano. A ressurreição é o grande  e definitivo Sim de Deus à vida de Jesus. 

O texto sempre nos questiona: 1) Com qual personagem me identifico: Madalena (símbolo da comunidade impedida de fazer a experiência da Ressurreição); Pedro, resistente; ou com o discípulo amado (capaz de acolher a novidade da Ressurreição)? 2) Em que nível encontro-me na vida da fé: na noite (trevas / impossibilidade de vida e de experimentar Jesus Ressuscitado) ou no amanhecer (quando as coisas e a vida começam a se encaminhar segundo o projeto de Deus)? 

Feliz Páscoa!

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP.


sábado, 11 de abril de 2020

Homilia para a Vigília Pascal – Mt 28,1-10:


A liturgia desta noite santa, Mãe de todas as vigílias, nos convida a tomar o texto mateano que narra a experiência da ressurreição, Mt 28,1-10, o último capítulo da catequese de Mateus. Este capítulo amarra de modo magnifico toda a catequese de Mateus para a sua comunidade e para as gerações futuras dos leitores-discípulos.

Dissemos, anteriormente, que o evangelista tem uma finalidade ao escrever seu evangelho: fazer discípulos de Jesus todos os que tomam contato com Sua vida e missão. Portanto, o evangelho de Mateus é um manual do discipulado a Jesus. Por isso, o primeiro discurso de Jesus no evangelho segundo Mateus é o Sermão da Montanha (Mt 5 – 7), o qual trata de dar as balizas para os discípulos de como ser discípulo do Reino. Este primeiro ensinamento começa com as Bem-aventuranças (Mt 5,1-12).

Este primeiro ensinamento dado por Jesus atinge sua plenitude através do relato pascal contido em Mt 28. Mas é sempre válido recordar que o discípulo, que deseja assumir a vida de Jesus para si, deverá ter presente que precisará passar pelos eventos de sua paixão e morte. Só assim poderá saber por onde passou a vida do mestre; só assim estará apto para o discipulado-missionário.

Nenhum evangelho descreveu a ressurreição de Jesus. A imagem clássica e tradicional do Cristo triunfante, de fato, não pertence ao evangelho, mas a um escrito apócrifo do Século II, chamado “evangelho de Pedro”. Mas os quatro evangelistas dão indicações, através de seus escritos e das experiências comunitárias com o ressuscitado, de como puderam encontrar com o Senhor vivente. A experiência com o Jesus ressuscitado não foi um privilégio concedido a um pequeno grupo dois mil anos atrás, mas se torna uma possibilidade aos crentes de todos os tempos. Apropriemo-nos também nós desta experiência, meditando o texto.

“Depois do sábado, ao amanhecer do primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro” (v.1). O evangelista inicia o relato com uma observação temporal, “Depois do sábado”. A observância deste preceito faz com que a comunidade dos discípulos retarde a experiência com o ressuscitado.

“Ao amanhecer do primeiro dia da semana”, o evangelista faz memória do primeiro dia da criação, mas que também é o oitavo, dado que o sábado é o sétimo dia. O número oito, na Igreja primitiva foi associado ao Cristo ressuscitado. E, se recordarmos bem o discurso inaugural de Jesus em Mt 5 – 7, é o número das bem-aventuranças. O evangelista pretende ensinar à sua comunidade que aquele oitavo/primeiro dia é, agora, o novo e definitivo dia da Nova Criação.  

“Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro”, mas falta uma mulher, porque próximo à cruz de Jesus estavam Maria, mãe de Jesus, Maria de Magdala, e a mãe dos irmãos Zebedeu. Esta não está no grupo que vai ao sepulcro. Por quê? Era ela uma mulher ambiciosa, lembremos que ela havia pedido os lugares de honra para seus filhos, mas quando se deu conta de que aquele Jesus fracassou no seu projeto de messias, perde toda a sua esperança e não poderá ser testemunha da ressurreição.  

“De repente, houve um grande tremor de terra: o anjo do Senhor desceu do céu e, aproximando-se, retirou a pedra e sentou-se nela” (v.2). O terremoto, na teologia bíblica é um sinal simbólico da manifestação divina. Acontece, ali, portanto, uma teofania reveladora.

“o anjo do Senhor desceu do céu”, a personagem angelical aqui presente não pode ser tomada ao pé da letra; não é uma criatura intermediária ou etérea. O anjo, na bíblia, simboliza a atuação de Deus, ao entrar em contato com o ser humano. No evangelho de Mateus, esta figura simbólica aparece por três vezes: para anunciar o nascimento de Jesus; para protege-lo do olhar homicida de Heródes; e, por fim, para anunciar àquelas primeiras testemunhas a novidade da vida indestrutível de Jesus de Nazaré. Fato que comprova, é o ato de sentar-se sobre a pedra retirada do sepulcro: sentar-se sobre, na antiguidade era símbolo da conquista. A diferença das mulheres que, no capítulo precedente, ficaram sentadas diante do sepulcro fechado, o mensageiro celeste – que é o próprio Deus, senta-se sobre a pedra, sinal da vitória.

Mateus descreve o mensageiro com os mesmos tons e cores da cena da transfiguração, em 17,1-13: “Sua aparência era como um relâmpago, e suas vestes eram brancas como a neve” (v.3). São as cores da glória de Deus, por assim dizer.

“Os guardas ficaram com tanto medo do anjo, que tremeram, e ficaram como mortos” (v.4), nos informa Mateus. Diante de uma experiência que pertence ao âmbito da vida, qualquer um que pertença aos sistemas e realidades de morte, como os soldados do império, fazem apenas uma experiência de morte. O evangelista é irônico. Aqueles que pensavam estar morto, está vivo; e aqueles que pensavam-se vivos, ficam, agora, como mortos.

“Então o anjo disse às mulheres: 'Não tenhais medo!” (v.5), curioso, pois os que tiveram medo foram os guardas, os quais deveriam ser corajosos, mas o anjo os ignora e se volta para as mulheres e lhes encoraja a não ter medo. O medo, na bíblia é o contrário da fé. E continua, “Sei que procurais Jesus, que foi crucificado” (v.5b), isto é, o maldito perante a Lei (Dt 21,22), e lhes faz uma revelação; lhes dá uma boa notícia: Ele não está aqui! Ressuscitou, como havia dito! Vinde ver o lugar em que ele estava” (v.6). O anjo não diz “ele não está mais aqui”, mas, “Ele não está aqui”, o sepulcro não pode conter o vivente! Ele lhes apresenta uma prova, as palavras de Jesus: “como havia dito”. As palavras de Jesus são o critério para a comunidade fazer a memória de sua vida e experimentar a ressurreição. As mulheres são chamadas a fazerem primeiro esta memória, e, com isso, a experimentar o triunfo da vida. Todavia, esta experiência não deve ficar “sepultada”, como que guardada unicamente para elas; antes, devem ir “de pressa contar aos discípulos
que Jesus ressuscitou dos mortos”.

Mas o mensageiro estabelece mais um critério pedagógico para as mulheres, e para todo o grupo dos discípulos: retornar para a Galileia. Porque o mestre “vai à vossa frente para a Galiléia. Lá vós o vereis” (v.7). A localidade da Galileia parece ser importante para o evangelista, porque ela aparece três vezes. Lá a comunidade dos discípulos poderá ver o ressuscitado. É importante o verbo “ver” de que Mateus faz uso. Ele aparece também nas Bem-aventuranças (Mt 5,8, “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”). Este verbo não indica apenas uma capacidade física atrelada aos sentidos do ser humano, mas uma profunda experiência interior com Deus; ver, significa, na bíblia, fazer experiência com Deus.

Jesus ressuscitado não se manifestará em Jerusalém, sede do poder e da dominação (cidade assassina dos enviados de Deus), mas na Galileia, lugar das primeiras experiências que os discípulos fizeram com Jesus; lugar de sua pregação e anúncio do Reino.

“As mulheres partiram depressa do sepulcro. Estavam com medo, mas correram com grande alegria, para dar a notícia aos discípulos” (v.8). A medida que as mulheres vão se afastando do sepulcro, que remete à impossibilidade de vida, vão recuperando a alegria, e se preparando para transmitirem o anúncio.

No meio do caminho acontece algo: “Jesus foi ao encontro delas, e disse: 'Alegrai-vos!” (v.9). Enquanto estão indo pelo caminho para anunciar a vida, aparece o Senhor e lhes vem ao encontro, para com Sua presença reforçar o anúncio. Alegrai-vos, dito por Jesus, liga-se ao convite feito por ele na última bem-aventurança, “Alegrai-vos e exultai, pois será grande a vossa recompensa nos céus (Mt 5,9). Eis a recompensa: uma vida indestrutível, capaz de superar a morte. Então as mulheres se aproximaram, prostraram-se e beijaram os pés de Jesus. A menção dos pés indica e confirma que as mulheres tiveram um encontro real com Jesus; indica a realidade física de alguém. Trata-se de um encontro com alguém real, e não com um espírito ou fantasma. O gesto da prostração recorda o reconhecimento e a reverência do ser humano diante da glória divina.

De fato, trata-se do encontro com alguém que está vivo. Jesus fala com elas, e lhes recomenda, mais uma vez, a não terem medo. E confirma as palavras do mensageiro celeste: “Ide anunciar aos meus irmãos que se dirijam para a Galiléia. Lá eles me verão” (v.10). Novamente, são encorajadas a cumprirem a função do anjo: elas devem se tornar as anunciadoras da vitória do Mestre; devem ser as mensageiras da grande notícia do triunfo da vida sobre a morte. Devem fazê-lo, primeiramente aos discípulos, os quais são chamados de “irmãos”, por Jesus. Repete, novamente, a ordem de se dirigirem para a Galileia. Por quê esta insistência de Jesus, que Mateus recupera?

Porque somente refazendo os passos de Jesus, de sua vida, de seu ensinamento se pode fazer experiência com o ressuscitado. Esta indicação cumpre o propósito catequético-teológico do evangelista, que narrará mais adiante que os discípulos seguirão para a Galileia, sobre o monte que Jesus havia indicado. Mas até este momento, Jesus não tinha indicado nenhum monte. O monte do qual se refere Mateus é a montanha das Bem-aventuranças, onde o mestre iniciou o seu programa de vida e seu ensinamento. Com isso, é possível captar a mensagem central deste relato pascal: acolhendo e vivendo as bem-aventuranças, manifestando em plenitude a Boa Nova de Jesus, se tem a possibilidade de encontrar na própria vida Aquele que é o vivente!

Feliz e santa Páscoa.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

Desperta, tu, que dormes!



De uma antiga Homilia no grande Sábado Santo

(PG43,439.451.462-463, in Liturgia das Horas, Ofício das leituras) 
(Séc.IV)

A descida do Senhor à mansão dos mortos

Que está acontecendo hoje? Um grande silêncio reina sobre a terra. Um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque o Deus feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há séculos. Deus morreu na carne e despertou a mansão dos mortos.

Ele vai antes de tudo à procura de Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Faz questão de visitar os que estão mergulhados nas trevas e na sombra da morte. Deus e seu Filho vão ao encontro de Adão e Eva cativos, agora libertos dos sofrimentos.

O Senhor entrou onde eles estavam, levando em suas mãos a arma da cruz vitoriosa. Quando Adão, nosso primeiro pai, o viu, exclamou para todos os demais, batendo no peito e cheio de admiração: “O meu Senhor está no meio de nós”. E Cristo respondeu a Adão: “E com teu espírito”. E tomando-o pela mão, disse: “Acorda, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará.

Eu sou o teu Deus, que por tua causa me tornei teu filho; por ti e por aqueles que nasceram de ti, agora digo, e com todo o meu poder, ordeno aos que estavam na prisão: ‘Saí!’; e aos que jaziam nas trevas: ‘Vinde para a luz!’; e aos entorpecidos: ‘Levantai-vos!’

Eu te ordeno: Acorda, tu que dormes, porque não te criei para permaneceres na mansão dos mortos. Levanta-te dentre os mortos; eu sou a vida dos mortos. Levanta-te, obra das minhas mãos; levanta-te, ó minha imagem, tu que foste criado à minha semelhança. Levanta-te, saiamos daqui; tu em mim e eu em ti, somos uma só e indivisível pessoa.

Por ti, eu, o teu Deus, me tornei teu filho; por ti, eu, o Senhor, tomei tua condição de escravo. Por ti, eu, que habito no mais alto dos céus, desci à terra e fui até mesmo sepultado debaixo da terra; por ti, feito homem, tornei-me como alguém sem apoio, abandonado entre os mortos. Por ti, que deixaste o jardim do paraíso, ao sair de um jardim fui entregue aos judeus e num jardim, crucificado.

Vê em meu rosto os escarros que por ti recebi, para restituir-te o sopro da vida original. Vê na minha face as bofetadas que levei para restaurar, conforme à minha imagem, tua beleza corrompida.

Vê em minhas costas as marcas dos açoites que suportei por ti para retirar de teus ombros o peso dos pecados. Vê minhas mãos fortemente pregadas à árvore da cruz, por causa de ti, como outrora estendeste levianamente as tuas mãos para a árvore do paraíso.

Adormeci na cruz e por tua causa a lança penetrou no meu lado, como Eva surgiu do teu, ao adormeceres no paraíso. Meu lado curou a dor do teu lado. Meu sono vai arrancar-te do sono da morte. Minha lança deteve a lança que estava dirigida contra ti.

Levanta-te, vamos daqui. O inimigo te expulsou da terra do paraíso; eu, porém, já não te coloco no paraíso mas num trono celeste. O inimigo afastou de ti a árvore, símbolo da vida; eu, porém, que sou a vida, estou agora junto de ti. Constituí anjos que, como servos, te guardassem; ordeno agora que eles te adorem como Deus, embora não sejas Deus.

Está preparado o trono dos querubins, prontos e a postos os mensageiros, construído o leito nupcial, preparado o banquete, as mansões e os tabernáculos eternos adornados, abertos os tesouros de todos os bens e o reino dos céus preparado para ti desde toda a eternidade”.

Artigo de Alberto Maggi: "Melhor morto, que ressuscitado".


Melhor morto, do que ressuscitado: o profundo significado da Páscoa.

por Alberto Maggi.



“Se Cristo não ressuscitou, vazia é, então, a nossa pregação, vazia é, também, a nossa fé”, afirma peremptório Paulo aos coríntios (1Cor 15,14).

Nenhum evangelista dá, também, a descrição do momento da ressurreição do Cristo. Este fato criou, assim, tanto embaraço nas comunidades cristãs primitivas que se remediou essa lacuna com um falso autor que teve um grande sucesso. De fato, a imagem tradicional do Cristo ressuscitado, que sai triunfante do sepulcro, com os guardas inoperantes, não pertence aos evangelhos reconhecidos como inspirados, mas a um texto apócrifo do século II, conhecido como o “evangelho de Pedro”: “Durante a noite, na qual despontava o domingo, enquanto os soldados montavam guarda em seu turno, dois a dois, ressoou nas alturas uma voz, viram abrir-se os céus e descer de lá dois homens, num grande esplendor, e aproximarem-se da tumba. A pedra que estava apoiada à porta do sepulcro rolou e se colocou ao lado, abriu-se o sepulcro e os dois jovens entraram (Ev. de Pedro 9,35-37).



Ninguém foi capaz de descrever a ressurreição de Cristo, porque nem um único discípulo estava presente, embora Jesus tivesse insistido que sim, ele morreria, da maneira mais difamatória, a crucificação, mas depois de três dias ele ressuscitaria (Mt 16:21; 17,22; 20,19). Mas ninguém acreditou, porque ninguém realmente queria sua ressurreição.

A prova de que o Messias era enviado por Deus, se devia ao fato de que ele não poderia morrer, porque "o Cristo permanece para sempre" (Jo 12:34). Portanto, se Jesus morreu, e dessa maneira infame, com a morte dos amaldiçoados por Deus (Dt 21,23; Gl 3,13), paciência, significava que eles estariam errados, e haveriam apenas que esperar o verdadeiro Messias, aquele que derrotaria os inimigos, subjugaria os povos pagãos e inauguraria o reino de Israel. Além disso, não foi a primeira vez que alguns exaltados se proclamaram o esperado libertador, começando uma revolta contra os odiados romanos e tendo tudo terminado num banho de sangue, como mostrado pelo trágico epílogo das insurreições lideradas por Teudas e Judas Galileu, messias autodenominados que persuadiram as pessoas a segui-los; e aqueles que o fizeram "foram dissolvidos e acabaram em nada" (Atos 5,36-37).

Afinal, melhor morrer do que ressuscitar. Porque se Jesus estava morto, era um sinal de que ele não era o Messias e que outro era esperado. Mas se ele ressuscitou, então adeus sonhos de glória, de restauração do reino tardio do rei Davi, de supremacia sobre os povos pagãos, de acumulação de riquezas de outras nações, como os profetas sonhavam ("Você se alimentará da riqueza das nações, ali você se gabará dos seus bens ”, Is 61,6).  Portanto, depois que Jesus morreu, seus discípulos, desapontados ("Esperávamos que ele fosse libertar Israel ...", Lc 24,21), haviam retornado às ocupações de todos os tempos, e o Ressuscitado deve ir procurá-los um a um para fazê-los experimentar que ele realmente havia ressuscitado, repreendendo-os "por sua incredulidade e dureza de coração" (Mc 16:14; Lc 24,25). Jesus em sua vida terrena havia falado inutilmente com seus discípulos sobre o reino de Deus, uma vez que eles o entenderam como reino de Israel.

Jesus falou de serviço e os discípulos pensaram em poder; o Mestre ensinou a colocar-se no nível dos últimos e os discípulos brigaram entre si para garantir o lugar mais importante; o Senhor os convidou a descer e eles apenas pensaram em subir. Por isso, o Ressuscitado, reunindo os seus, lhes dá uma espécie de curso intensivo que durou quarenta dias "falando sobre coisas relativas ao reino de Deus" (Atos 1,3). No entanto, não há o que fazer: quando a ideologia religiosa se entrelaça com a nacionalista, mesmo se você tem ouvidos para ouvir, não ouve, e se tem olhos para ver, não vê (Mc 8,18). De fato, no quadragésimo dia, os discípulos, que evidentemente não estavam interessados nesse tema do reino de Deus, perguntaram-lhe: "Senhor, é este o momento em que reconstituirás o reino de Israel?" (Atos 1.6). O evangelista escreve que, nesse momento, "uma nuvem o tirou dos olhos deles" (Atos 1,9). Cristo não se foi, mas são os discípulos que não conseguem vê-lo. Quem é movido pelo poder não consegue perceber o Amor, quem pensa em si mesmos não consegue reconhecer a presença do Outro. Ainda levará tempo, e quando os discípulos finalmente entenderem que o pão não deve ser acumulado, mas partido e compartilhado, eles abrirão os olhos e reconhecerão o Cristo ressuscitado (Atos 24.31) que os acompanhará em sua missão (Mc. 16,20).

Sobre o autor: Alberto Maggi, presbítero italiano, Frade da Ordem dos Servos de Maria, estudou nas Faculdades Teológicas Marianum e Gregoriana de Roma e na École Biblique et Archéologique Française em Jerusalém. Fundador do Centro de Estudos Bíblicos G. Vannucci, em Montefano (Macerata), cuida da divulgação das Sagradas Escrituras. Maggi publicou vários livros, incluindo: Chi non non muore si rivede - Minha jornada de fé e alegria entre dor e vida, Coisas para padres; Nossa Senhora dos Hereges; Como ler o Evangelho (e não perder a fé); A loucura de Deus; A última bem-aventurança - Morte como plenitude de vida; Estes dias.


Disponível in:

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Provocações:


PROVOCANDO a partir de um provocado:
Deus quer a MORTE do inocente?



Quantos homens e mulheres inocentes padecem de uma morte violenta - até mesmo em lugar de outrem? Poderíamos pensar que o sofrimento é da vontade de Deus?


Só nos é possível responder às indagações acima, e propor uma ressignificação ou mesmo uma chave de leitura para o sofrimento e para a morte do inocente, se lançarmos o olhar para o Crucificado.

O crucificado nos interpela. 

O dado da paixão e Morte de Jesus é o dado histórico mais certo. É preciso nos determos e analisarmos mais de perto o que significou esse acontecimento. É importante para nós, do ponto de vista cristológico (ou seja, diante de tudo que se possa dizer acerca de Jesus no horizonte da fé), que sintamos o choque, o escândalo que isso produziu nos discípulos.

Em Jo11,48, após a ressurreição de Lázaro, temos o diálogo entre as autoridades componentes do sinédrio. Eles chegam a conclusão de que: “Se o deixarmos assim, todos crerão nele e os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e a nação”. Equivaleria dizer: Temos que acabar com ele. É um complô das autoridades judaicas, cuja razão é muito clara. É razão de Estado. É necessário que morra um para que a nação se salve.

Se parássemos aqui, veríamos pura e simplesmente um Jesus ingênuo ou inconsequente; ou, tão somente uma trama política. E, em último caso uma vontade soberanamente cruel e masoquista de um deus que só poderia ser aplacado em toda a sua ira, e, portanto, satisfeito, com a morte de alguém. Ainda por cima, justo e coerente.

Não é isso que os evangelhos mostram e narram; não foi essa a experiência testemunhada pelas primeiras testemunhas oculares.Em última análise, não foi esse o desejo de Deus. A morte de Jesus, de maneira tão cruenta e ignominiosa só pode ser entendida à luz de sua vida vivida, através de seu ministério. Sua atuação pré-pascal, antes dos eventos de sua prisão, paixão e morte. 

A sua morte é o resultado da sua vida, das suas opções, decisões, em face às hostilidades dos chefes do povo. Isso não é fazer uma leitura política da vida de Jesus. Sua vida era conflituosa pelas questões que provocava e pelos interesses que abalava. Isto vê-se no seu modo de viver, na sua práxis escandalosa, não facilmente aceita. Em Sua opção pelos últimos. 

O modo de Jesus desmascarar determinadas situações incomodava os outros. A sua pregação era uma inversão de valores para a sociedade de seu tempo. Rompia com os esquemas estabelecidos. Nesse sentido, a condenação de Jesus é uma rejeição a sua pessoa e a tudo o que Ele faz durante sua vida.

Deus quis que Jesus morresse derramando seu sangue? Foi um fracasso total a vida de Jesus? Diante desse fim, tudo veio por terra para os que o seguiam. Aparentemente tudo se pôs contra Jesus: a lei (o condenaram em nome da lei), os representantes oficiais de Deus (os intérpretes da lei), o Estado (pois ele fora declarado subversivo e revolucionário, como pretenso messias, e segundo a ordem do Império deveria ser exterminado, porque não poderia haver outro soberano a não ser o Cesar). Ele morre nas condições mais escandalosas. 

Impera, aparentemente, o silêncio de Deus. De que lado estava? De fato O abandonou? Em tempos de pandemia algum cético (ou até mesmo um cristão ou crente meio confuso ou desiludido da vida) poderia se questionar diante do silêncio; ou mesmo o fiel desavisado - das missas ou dos cultos espetaculares - interpelasse à Deus assim: "Por que o Senhor não realiza milagres, prodígios, portentos para que sejamos libertos desse mal que  nos assola e que mexe com nosso estilo de vida?"

Isso contradiz o que se afirma no NT: Deus como Amor derramado, que se entrega e que se doa. Deus não queria e não quer o sofrimento de ninguém. Este sofrimento - como todos - aconteceu por causas humanas e históricas. 

Ao querer livremente, e ao aceitar livremente dar-nos o seu Filho, Deus aceitou todas as situações humanas. Com isso, podemos preservar a imagem de um Deus verdadeiro e fiel que nos dá seu Filho por amor. Doa-nos o seu Filho para nos reconduzir novamente a Si.

As Escrituras tornam-se elemento de compreensão. De modo especial os profetas. A experiência dos profetas serviu a Jesus para compreender sua vida e por onde ela deveria passar, diante da fidelidade ao Deus que chamou de Pai e ao Reino que tornou-se sua causa de vida. Muito aceito que Is 52 – Cântico do Servo de YHWH, tenha iluminado a vida de Jesus. Bem como a figura do Justo sofredor iluminou os passos de Jesus. Justo, humilhado, sofrendo mesmo sendo fiel. Experiência que marca história de Israel, e a sua própria vida e experiência humana. 

Vida filialmente voltada para o que o Pai quisesse dele. 

Sua Vida estava empenhada em descobrir a vontade do Pai e aderir a ela. É essa referência ao pai que nos ajuda a perceber que a eventualidade da morte de Jesus tinha sido colocada no horizonte da relação com o Pai. É mais do que perguntar se “o Pai quis”. Mas, o que o Pai, através disso, está a manifestar para Jesus (e para o discípulo)? 

Devemos entender uma frase que aparece nos Evangelhos, que pode ser deturpada, “Era necessário que tudo isso acontecesse”.

De que necessidade se trata? Significa que tudo estava decretado por Deus? Que Ele queria a morte sangrenta do Filho? Isso posto, equivaleria destruir a imagem que o AT transmite de um Deus que ama profundamente. Deus aceitou que, entrando nessa vida, o Filho corresse riscos como nós. 

Deus não quer a morte do Inocente - e de ninguém! O sentido que Jesus deu à sua Morte não podia ser diferente do sentido que Ele tinha dado à sua vida. Aí aparece a coerência de Jesus e de Deus-Pai. A Morte violenta por mais absurda que possa ser, pode ser vista da mesma maneira como Ele viveu sua vida. Entregando-a e vivendo-a para os outros.

Importa perceber que o sofrimento de Jesus ilumina o sofrimento humano. Porque tendo passado por ele, dá sentido ao nosso. Não o transformando magicamente! 

Fato é, que nós continuamos nesse contexto histórico e humano, mas à luz de Jesus podemos encará-lo de outro modo. Por isso, não há outra explicação para o sofrimento, a não ser a limitação e a liberdade humana. Isso é um fato. Sofrimento faz parte da vida. Mas ele pode ser vivido com um sentido; caso contrário, poderá ele deteriorar, de tal modo, a experiência humana, a ponto de leva-la à revolta e à negação de si próprio. 

O que é revelador na morte de Jesus, é que tendo vivido e passado por circunstâncias iguais às nossas, Ele não foi vítima das circunstâncias. Foi livre e fiel ao sentido de sua vida vivida até às últimas consequências!

Será possível ler a vida e a morte daqueles e daquelas que amamos sob a perspectiva de vida e da morte salvífica de Jesus? Sua morte só foi salvífica, porque sua vida, suas opções (obras e palavras) também o foram. 

A ressurreição será a resposta ao grito de confiança de Jesus na Cruz, que nas mãos do Pai deposita sua vida (Lc 23,46); é a tomada de posição de Deus a respeito da vida e da morte de Jesus. O acontecido na Páscoa é uma palavra de Deus sempre afirmativa a Jesus. É um sim grandioso à vida vivida por ele. Um sim ao amor humano vivido até o fim. A Ressurreição foi e será sempre a Ressurreição do Crucificado.


Creio na silenciosa Presença de Deus na vida do povo e das histórias sofridas. Creio que seu silêncio-presença confirma e ressuscita a vida das vítimas, para uma vida qualitativamente perfeita junto de si. Como o acontecido com Jesus de Nazaré, Senhor e Cristo. Creio na Ressurreição!

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP

TRÍDUO PASCAL: Sexta-Feira da Paixão do Senhor - Meditação Jo 18,1 - 19,42:



A narrativa da paixão que meditamos nesta ocasião da sexta-feira Santa, é retirada do Quarto Evangelho. Ela toma dois capítulos, começando em 18,1 e estendendo-se à 19,42 A narrativa situa-se no chamado livro da Glória (Jo 13,1 – 20). Um modo eficaz de lê-lo consiste em situá-lo no contexto da pedagogia litúrgica, isto é, na sequência do texto da quinta-feira santa da ceia do Senhor. A partir dali o discípulo que segui Jesus até à “bacia e o Jarro” e até à “mesa”, cruza o umbral e adentra na hora da glorificação.

Chegou a Hora de Jesus. A Hora de levar tudo (e todos) até o Fim, como declarará no momento de sua morte, que “tudo está consumado (finalizado)”, através de sua entrega que revela seu enaltecimento na Cruz. A hora da Cruz é o momento em que Deus revela a sua presença e todo o seu poder em Jesus crucificado. A Hora da Glória constitui o momento culminante do Quarto Evangelho, no qual Jesus realiza a sua obra definitiva.

Um esclarecimento importante. Todas as vezes em que o Quarto Evangelho toca no tema da glória ou da glorificação, ele não pretende acenar para uma realidade resplandecente ou luminosa. A Glória lida em chave das atuações de Jesus aludem para a sua entronização/elevação junto de Deus: seu enaltecimento. Mas o termo gloria (gr. Doxa) quando referido à Jesus e ao Pai, acenam para a palavra hebraica Kabod, que indica a presença de Deus. O evangelista, ao recordar os ditos de Jesus sobre a glória de Deus em Jesus, quer ensinar para a sua comunidade e para seus leitores, que a Deus está substancialmente presente em Jesus de Nazaré, através de sua vida, obras e palavras.

Feitas as devidas contextualizações se faz necessário, antes de assumirmos a meditação de partes importantes da narrativa, dizer que a narrativa evangélica da paixão segundo João é diferente das demais. Apresenta um Jesus soberano e senhor de si, adquirindo tons de realeza. É importante, também, fazer uma apresentação das personagens que, para este propósito, julgamos relevantes.

No Jardim (Jo 18,1-12):

Lancemos um olhar para Jesus. Na teologia do Quarto Evangelho, João o apresenta sempre consciente e onisciente. Não seria diferente na narrativa da paixão: ele tem tudo em suas mãos. Ele não é feito vítima da situação. Não permite que ninguém, exceto o Pai, tenha a Sua vida nas mãos. É um Jesus senhor de si.  Por isso, não é surpreendido por Judas e pelas pessoas que vieram prendê-lo.

Ele vai ao encontro do traidor, por quem estava esperando (18, 4). Típica ironia joanina, o evangelista nos conta que Judas vem equipado com lanternas e tochas. Judas preferiu as trevas à luz que veio no mundo (3, 19). Ou seja, quando ele deixou Jesus, já era noite fechada (13, 30); fez a opção por sair da luz; de cindir com ela. E agora, ele é quem precisa de luz artificial.

Na casa de Anás (Jo 18,13-27):

Temos três personagens. Um deles é Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote em exercício. O segundo personagem é Pedro. Notemos um contraste operado pelo evangelista: enquanto Jesus está mostrando sua inocência, seu mais conhecido seguidor está mostrando fraqueza. Emerge uma outra personagem, presumivelmente “o discípulo que Jesus amava”. Não há fundamento em identificá-lo com João, o autor do Quarto Evangelho (o que seria demasiado simplista). Mas, fato é, ele está à frente de Pedro e contrasta com ele. Ele é sempre mais rápido ao ver, ao compreender e em acreditar, precisamente porque fez a experiência com o amor de Jesus, que é uma marca da verdadeira condição de discípulo

No palácio de Heródes, diante de Pilatos ( Jo 18, 28-42): um diálogo [repleto] de Verdade.

O evangelista apresenta uma personagem confusa. Um camaleão. Um amedrontado Pilatos. Soma-se a isso a alternância dos cenários externos e internos. Nesse vai-e-vem, Pilatos vai mudando e assimilando as imagens de seus ambientes. Ao interno do palácio ocorre a alternância entre luz (externo) e trevas (interno). Na maneira como João dispõe a narrativa, o inquérito acontece ao interno do palácio, para revelar esta oposição típica de seu evangelho: luz / trevas. A intenção (ainda que através de sua ironia) é revelar Jesus, mesmo solitário e recluso no palácio, como Luz diante de Pilatos, envolvido em dúvidas e trevas. Note-se também o contraste: fora do palácio há incessante pressão, conspiração e tumulto; dentro, há calma e diálogo penetrante. É sobre este diálogo que manteremos nossa atenção.

De madrugada (ao raiar um novo dia). Eis, que se inicia o processo do Mundo, representado pelo Império. O mundo não o conheceu, e os seus não o acolheram. Jesus está diante do procurador romano. Este, o interroga com base naquilo que ouviu. “Tu és o rei dos judeus?” A resposta de Jesus soa desafiadora: “Estas dizendo isso por ti mesmo, ou outros te disseram isso de mim?” Jesus não responde nem que sim, nem que não. Ele deixa que o próprio Pilatos tome sua decisão e tire suas conclusões. Acaba se esquivando, dizendo que não é judeu, e insiste sobre a culpabilidade de Jesus. A Sua resposta é paradigmática: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui”.

O que o Jesus joanino quer revelar através desta resposta? É preciso tomar o texto original que se expressa assim “o meu reino não vem deste mundo (ek tou kosmou tuotou)”. Isso revela que a realeza de Jesus não advém das realidades mundanas, das estruturas de poder, domínio, opressão. Vem do alto. Jesus declara, pois, que sua realeza depende de Deus. A autoridade que ele exerce, só a faz porque é da vontade do Pai (KONINGS, 2005, p.328).

As palavras “meu reino não é daqui (= deste mundo)”, portanto, não sugerem fuga do mundo, nem justificam a alienação política (17,15). Pelo contrário, convocam o cristão a uma lucidez superior. Aderir ao reino de Jesus é aderir à verdade daquele que, em tudo o que faz, é palavra de Deus e que liberta de toda escravidão. No âmbito da história humana, Deus está do lado da liberdade verdadeira, que fomenta a verdadeira dedicação mútua das pessoas na solidariedade e na responsabilidade (KONINGS, 2005, p.328).

Aqui ele se identifica como testemunha da verdade. "Da verdade" é um genitivo de pertença. “Verdade” deve ser entendida a partir do fundo bíblico (cf. 1,14; 14,6): lealdade, fidelidade, coerência e firmeza no pacto, na amizade, no amor. O que Jesus vem atestar é o reinado da veracidade do Deus fiel, que se manifesta em sua práxis e em sua palavra (KONINGS, 2005, p.327).

Jesus encaminha o diálogo com Pilatos, após a pergunta em tons afirmativos “Então, tu és rei?”. O nazareno responde: “é você quem está dizendo isso”, em outras palavras “Tire as consequências você mesmo, Pilatos”. Pilatos, sim, é “deste mundo”. Não deseja abrir-se à verdade.

Mas neste diálogo emerge uma novidade muito profunda e marcante. Pensemos. Pela lógica do inquérito, Pilatos faz as vezes do juiz que interroga, questiona e apura os fatos para dar cabo de uma sentença. Entretanto, a partir das respostas eloquentes que Jesus dá aponta para uma revelação importante: o juiz não é Pilatos.

No inquérito, quem assume a figura do juiz é Jesus, deixando para Pilatos o papel de investigado. Na verdade, o procurador romano é que foi colocado na berlinda por Jesus. João quer acenar para aquela característica de Jesus: o soberano e senhor de si e da situação, que não é pego nem surpreendido. Que não é entregue, mas que se entrega livre e voluntariamente até o fim (KONINGS, 2005, p.328).

A morte (19,28-37):

Após um caminho longo, Jesus chega ao lugar da crucifixão. Depois de tomar o vinho azedo, Jesus exclama: “Tudo está consumado” (mesma expressão do v. 28), inclina a cabeça e “entrega o espírito”. Nestes versículos 28-30 ocorre duas vezes o verbo teléo, “consumar/levar ao fim” (vv. 28 e 30). O cumprimento da missão até o fim é idêntico ao testemunho do amor até o fim, e ao cumprimento das Escrituras: nestas três realidades devemos ver o Pai que, permanecendo em Jesus, realiza a sua obra (14,10) (KONINGS, 2005, p.342).

O dito “Tudo está consumado” acena para a realidade de que toda a vida de Jesus, através de suas obras e Palavra, refletem a vontade de Deus. Significa, ainda, que a vida e obra de Jesus atingem a Plenitude. Mas também revela a superação dos sistemas antigos dos sacrifícios levítico-cultuais. Eles estão superados.

Assim, João faz coincidir a morte de Jesus no calvário com o exato momento em que se imolavam os cordeiros no templo, por ocasião da festa da pascoa. Jesus supera, com o dom de sua vida em amor, os antigos sacrifícios e se torna, pois, o único mediador entre a humanidade e Deus. Não é mais a observância da Lei, nem das prescrições levítico-cultuais os meios necessários para se ter acesso a Deus, mas a humanidade, a vida e a obra de Jesus. Esta vida, Ele a entrega nas mãos do Pai.

O “entregar o espírito” (a existência) acena para aquela onisciência e senhorio de Jesus, de que falou-se a pouco. O verbo grego paradidomai (entregar/doar) percorre toda a narrativa da paixão, mas aqui ele revela e, ao mesmo tempo, afirma o domínio de Jesus diante da situação: quem entrega sua vida é ele mesmo, sabendo que tem o poder de retoma-la novamente. Ninguém a entrega. Ele livremente a doa, para que o Pai reconheça esta mesma vida como salvífica e redentora, dizendo a última palavra na vida do Filho.

A morte de Jesus, de maneira tão crua, só pode ser entendida à luz de sua vida vivida, através de seu ministério. Sua atuação pré-pascal (antes dos eventos de sua prisão, paixão e morte). A morte é o resultado da vida, das opções, decisões, vividas à luz do amor fiel ao Pai e aos irmãos, mesmo em face às hostilidades dos chefes do povo. Isso não é fazer uma leitura política da vida de Jesus. Sua vida era conflituosa pelas questões que provocava e pelos interesses que abalava. Isto vê-se no seu modo de viver, na sua práxis escandalosa, não facilmente aceita; em Sua opção pelos últimos. O modo de Jesus desmascarar determinadas situações incomodou que estava apegado às estruturas do reino deste mundo. Nesse sentido, pregação de Jesus foi uma inversão de valores. Rompeu com os esquemas estabelecidos. Ora, a condenação de Jesus é uma rejeição a sua pessoa e a tudo o que Ele faz durante sua vida.

O relato de hoje nos deixa diante de duas perguntas: 1) Com quais personagens me identifico? 2) Como tenho vivido minha existência cristã e meu discipulado?

A chave e o modo para viver o discipulado é a forma da Paixão. Não existe discipulado que não seja perpassado pela Cruz. Mas Ela não será a última palavra.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP.