2. Livro de Jó:
2.1 Data e local:
Em Jó 3,14-15 a obra cita figuras da corte persa. Isso sugere uma datação
pós-exílica, ou no mínimo exílica. Contudo, a obra poderia ter surgido entre século V –
IV a.C e teria tido sua redação final por volta do século III. Mas se o Livro
faz uma autocritica do sistema teológico sapiencial, então deverá ser mais
tardio. Mas optamos por esta data, ainda que seja aberta.
Em relação ao local, a
Palestina é seu berço. Será que a experiência de
Jó espelharia a experiência dos exilados na Babilônia? Nas feridas de Jó
estaria a ferida nacional do exílio. A golá (povo exilado) é desafiada a permanecer
fiel como Jó, apesar da dor e do sofrimento. Mais ainda, os exilados estariam
sendo desafiados a saírem refeitos e inteiros da experiência do Exílio.
2.2 Gênero literário da
obra:
Para a boa compreensão do
texto bíblico, sempre será importante conhecer-lhe o gênero literário a que
pertence. A obra bíblica é um texto literário – uma literatura, oriunda de um
contexto e de uma realidade histórica – e, enquanto tal, possui um gênero literário
que ajuda na transmissão da mensagem do texto.
Alguns estudiosos defendem que o gênero literário ao qual pertença o livro de Jó seja uma queixa, um
lamento em forma de drama. No Antigo Testamento a queixa é, em parte, dirigida
a Deus e a denúncia aos inimigos, sejam reais ou não (personificações). Será só
isso? Mas esta consideração preliminar não abarca a totalidade da obra.
Outros pensam que Jó seja
um processo judicial. É como se a personagem levasse Deus ao tribunal (a
conciliação estaria no 4 – 14); um processo judicial de conciliação entre
amigos. É inegável o aspecto jurídico (judicial) durante a obra (terminologia
forense), pois Jó acusa a Deus muitas vezes. Por exemplo, a obra acena para uma
retomada do litígio com a personagem Eliú (32 – 37), e o julgamento final de
Deus e a declaração final de Jó renunciando à causa (restante final da obra).
Mas isso ainda não é suficiente para definir seu gênero literário.
Há quem defina a obra
como uma comédia, que para a época não excluía a tragédia. A comédia consiste num
gênero carregado de numa visão de anormalidade, onde o irônico, o ridículo, o
jocoso, aparecem no decorrer do texto. Mas tal, por si só não pode sustentar que a obra pertence a este gênero.
Alguns dirão que se trata
de uma obra poética. Mas isso só acontece no final da obra, e, portanto, é
insuficiente para definir seu gênero. O importante é que Jó rompe com a
teologia de seu tempo, bem como com o gênero sapiencial de seu tempo.
As categorias conhecidas
ajudam, mas não bastam. Definem aspectos da obra, mas não o todo. Encontramos
na obra o lamento, a queixa, o debate, o diálogo, o discurso, a confissão, mas
Jó não é um exclusivamente épico, lírico, dramático, exclusivo poético. Há quem defenda um gênero complexo para o escrito, que ninguém consegue definir. A conclusão comum que se
pode chegar é a seguinte: estamos diante de uma obra sui generis, algo de único
e original, por isso constitui uma obra prima do gênero literário sapiencial.
Importante lançar um
olhar para a estrutura da obra. O prólogo (Jó 1 – 2) e o epílogo (Jó 42,7-17)
formam como que a moldura da obra que cercam o seu núcleo, Jó 3,1 – 42-6.
Vejamos
A - Prólogo (1 – 2): é
uma narração em prosa e de cunho popular, uma historieta;
B - O corpo da obra (3,1
– 42,6): na medida que este corpo nos apresenta diálogos poéticos, marcados por
discursos (monologo). Esta parte em diálogo é dividida em 3 partes: a) 3,28:
troca de discursos entre Jó e seus 3 amigos; b) 29 – 37: discursos de Jó e Eliú
(uma espécie de ponte entre o pensamento dos amigos, e o discurso de Deus); c)
38,1 – 42,6: discurso de Deus (teofania), e as respostas de Jó.
No fundo, Jó é o
personagens que une os três blocos.
C – Epílogo: 42,7-17 com
duas cenas em prosa. A primeira, 42,7-9, que mostra o julgamento de Deus aos
amigos de Deus (parece que o livro assume a imagem de um tribunal). A segunda
cena 42,10-17, mostra a restituição feita por Deus à Jó.
Uma comparação: em 1Cor 1,19-20 (18-31), o catequista Paulo começa com uma pergunta: “onde está o homem sábio?”. O apóstolo, salvando as devidas
proporções, é o Jó do NT; como Jó poderia ser Paulo do AT. O apóstolo das nações, no NT, vai em
busca da verdadeira sabedoria, a qual só encontra no homem-Deus, Jesus Crucificado, loucura (para os sábio) e escândalo (para os religiosos).
O Livro de Jó é uma obra
prima poética e de sabedoria. O autor prefere ficar no anonimato para destacar
o personagem central da obra: Jó, que não é o autor do livro. O escrito revela um
autor culto, o qual demonstra seu domínio com a palavra, pela abundância de
imagens e cores.
A problemática
aparenta-se aquelas de alguns salmos de queixas, e, aproxima-se, ainda, a
alguns pontos dos profetas (particularmente os tons críticos). Isso faz do
autor um homem da fé javista e da Aliança, um homem embasado nas Escrituras.
Importa notar que a obra
não se trata de uma mera reflexão acerca do sofrimento humano. Esse
elemento entra, sim, na obra, mas não é o foco. Sua intenção é apresentar a
face oculta dos caminhos de Deus e sua relação misteriosa com o ser humano.
Nesse sentido, o
sofrimento é um elemento que ajuda a perceber aquele foco. Não é o sofrimento
do justo, nem relação ação-efeito (teologia da retribuição) o problema. Mas o
questionamento, “O homem pode ser justo? O homem pode exigir algo de Deus? (Jó
4,17;15,14; 25,4-6; 9,12-15). O foco do livro, portanto, não é o sofrimento.
Trata-se da questão da relação homem-Deus (criatura-Criador). Dito de outra
forma, o sofrimento de Jó é o elemento que faz emergir o problema central, a
questão de fundo: a relação com Deus e seu caminho misterioso.
Esta face oculta revela o
drama da fé. O encontro com Deus na noite escura da vida, no fracasso ou no
êxito aparente, a complexidade do diálogo com o sofredor, são dramas da fé que
tem a ver com Deus; que O tocam profundamente. No fundo, é a reflexão da fé
frente aos dramas da existência.
Diante da mentalidade da
época, tanto o autor e a personagem Jó pleiteiam inocência. No entanto, diante da
dramaticidade do sofrimento, o qual leva a relação entre criador e criatura à
uma ressignificação, ambos pedem que Deus preste conta, se justifique e dê
satisfações de seu comportamento, a ponto de acusa-Lo. Mas Deus não dá, nem
deve satisfações à Jó e à ninguém.
Os amigos de Jó (que
personificam a mentalidade religiosa da época e seus esquemas) respondem a seu
modo (tendo amigos como aqueles, inimigos não são necessários); respondem de
modo dogmático, dizendo que os bons são recompensados e os maus, punidos.
Se Jó sofre é porque
pecou, então maior é seu sofrimento. Sob essa perspectiva a vida deve se moldar
à Teologia, e não o contrário. Aqui, tanto Jó como seu autor contestam esta compreensão vigente. A personagem sabe sua experiência, se dá conta que a teologia que
aprendeu não funciona mais no seu caso. Ora, a vida evolui, as questões também,
e, portanto, a teologia e a espiritualidade deverão acompanhar esse caminho. Jó dirá que a visão
teológica de seus amigos é equivocada (Jó 10,4), bem como a teologia. Mas, e
agora? Põe-se em dúvida seus amigos e sua fé a em Deus?
Como ser gratuito frente
a dor e o sofrimento? A presença de Deus na vida do homem de fé, significa
ausência de dor e de sofrimento? Como dar ao justo ou inocente que sofre uma
resposta? Que sentido tem o amor de Deus e sua eleição, quando seus amados
sofrem? O sofrimento esconde a face de Deus, ou aponta para seu mistério?
Parece-nos que o autor de Jó tenta iluminar essas questões.
Os sofrimentos parecem
negar fé e desmentir o amor de Deus. E justamente por isso, é um dado da
existência que se rejeita e contra isso se revolta. Mas pode ser visto, também,
como chance e ocasião de abertura do homem para Deus. Portanto, aí está a
importância de se perseverar na fé mesmo quando o sofrimento nos leva para uma
noite escura, para a desolação, para aridez. Somos chamados a perceber no livro
de Jó uma mística.
Jó busca uma face de Deus
que não corresponde àquela tradicional. No final, Jó é vencido pelas maravilhas
de Deus, mas o mistério permanece. A aceitação do mistério, devolve a ele a
Paz. Com isso, ensina que deve se suspeitar de certas abordagens teológicas. Como
por exemplo, a teologia da retribuição, vulgo, teologia da prosperidade.
2.3 Teologia da
retribuição:
Se faz presente ao
interno do Livro de Jó a crítica ao sistema religioso judaico da época, que se
cristalizava a partir de uma sistemática chamada de Teologia da Retribuição.
Criticada também ao longo de todo o bloco da literatura sapiencial, como foi
dito anteriormente.
A estrutura deste esquema
religioso delineia-se do seguinte modo. Deus é Justo. Sendo ele justo, dá a
cada um aquilo que mereceu. Nesse sentido, o mal se paga com o mal, o bem, com
o bem. Esta mentalidade penetrou no modo de se compreender e viver a relação
com Deus através do esquema da Aliança. Assim, aquele obedecesse à lei receberia
a benção do Altíssimo. Do contrário, ruína e maldição. Esta fórmula pode ser esquematizado matematicamente: fidelidade à Lei acarretaria riquezas
(prosperidade) e Bênçãos. Já a infidelidade à Lei trazia consigo, de acordo com
a mentalidade deste sistema religioso, o pecado e a maldição, como consequência
(ex. pobreza, miséria, enfermidade).
Isso corresponde à
mentalidade da vida? Neste esquema sim! Mas onde reside, neste esquema, o lugar
para a compaixão e para a misericórdia? Lançando um olhar para as ações de Jesus,
veremos que elas serão sempre como que um tapa na cara desta leitura.
Importante, a teologia da Aliança, que
percorre o AT em si não está equivocada, mas a partir da penetração desta falsa
imagem de Deus e daquela matematização, a leitura da teologia e da espiritualidade poderão ser
ideológicas. A ética bíblica tem uma retribuição, mas o problema é a
matematização ou mecanização da fé, que outra coisa não é que a relação com Deus, a ponto de eliminar a
misericórdia e o amor de Dele, ficando apenas a lei pela lei. Talvez um resgate
da teologia da aliança seja mais pertinente. Contra aquele modelo, o autor do Livro, bem
como sua personagem, Jó se levantarão energicamente.
3. Uma possível síntese
do Livro:
Uma compreensão, ainda
que sintética do livro, necessita ter o texto bíblico nas mãos. Por isso, é
importante ter perto de si o livro de Jó, fazer dele uma primeira leitura,
coletar as personagens, suas falas e, refazer a sua leitura de modo mais atento
ainda, modo a compreender esta síntese, que visará introduzir-nos no tema que abordaremos
em breve.
3.1 Prólogo.
As primeiras cenas são os
cap.1 – 2 (prólogo). Satanás apresenta algumas suspeitas, com as provas
impostas à Jó. Satanás suspeita que a fé de Jó não era gratuita, e tenta provar
que ela era interesseira e coloca-a à prova, atingindo os bens de Jó
(1,10-11.14-19). Outro elemento de provação é o fato de que para salvar a vida,
o homem dá tudo o que possui (2,4).
Satanás fere Jó na carne
(2,5-7); no entanto, nestas duas provas, nossa personagem frustra o inimigo
(1,22;2,4). Todavia, Deus delimita, também, a atuação do inimigo. Contudo, Jó
responde que, “nu havia saído do ventre materno, nu terminaria sua jornada”. Nesse
sentido, os bens eram vestes inúteis (5,12-16). Então Jó se torna pobre e
vulnerável. Ele perde a vestimenta, mas fica com a vida. Foge a felicidade, permanecendo o fiel. O homem de fé permanece e Satanás perde o conflito.
Cabe, aqui, um
esclarecimento assaz pertinente sobre a figura de Satanás e sua atuação no
Livro de Jó (como em toda a Bíblia). No hebraico, a palavra Satã / Satanás
significa adversário. Contudo, dentro do contexto da antiguidade semita existia
um panteão de divindades, e isso, logo após a dominação persa, que injeta sua
concepção cosmológica na cultura e na fé de Israel. É bom lembrar que a redação
final do Pentateuco é dessa época (século V – IV) e que bebe deste ambiente da
cosmologia persa. Haja vista que numa primeira redação da Lei, os seres
celestiais – anjos – não eram contados na história.
Dentro deste contexto dos
seres intermediários a Deus e o homem existiam alguns seres antagônicos que desempenhavam o papel de acusadores. Esta imagem cresceu muito na apocalíptica. Muito
embora em Jó eles ainda não tenham toda aquela carga negativa que a teologia
cristã desenvolverá depois.
Esse personagem é “o
Satã” (com artigo masculino "o", o qual indica um título ou uma função = o opositor), e não
um nome próprio. Esse vínculo da função com o nome próprio se fundamentará posteriormente.
Trata-se de uma personagem. Um antagonista que põe a trama em movimento. Em 1,7
ele faz uma ronda na terra. Vê Jó com uma vida toda bonitinha e certinha,
e resolve provocar um problema que o faz questionar o sistema teológico. Nesse
sentido, é ele um crítico, um acusador, e, ao mesmo tempo, desconfiado em
relação ao homem; no entanto, ele é quem desencadeia toda a situação
concernente à Jó. Não precisamos, contudo, relacioná-lo com a “nossa” concepção
de Diabo.
Na trama, ele tem um
campo de ação que não pode colocar em risco a vida de Jó. Ele até defende a
Deus. Mas deixemos de ser ingênuos, a personagem Satã não deixa de ser um
cético em relação ao ser humano; é pessimista; e tem dificuldade em aceitar uma
relação de amor entre Deus e o homem. Ele fica procurando a culpa no homem,
para, enfim, derrotá-lo (1,11; 2,4-5). Entendida esta figura, podemos avançar
para o conteúdo da obra e fazer subir a cortina.
No cap.3, Jó abre a boca
e rompe o silêncio. Ele é tentado pelo Satanás, a fim de se rebelar contra Deus
(1,8-12; 2,1-6 // Mt 4,1-11, ver em paralelo com a tentação de Jesus). Ao
perder os bens, Jó torna-se pobre (1,14-17.21). Perde também os filhos
(1,18-19), dispositivo integrante da Benção que Deus promete e dá ao fiel piedoso.
Jó se torna no quadro 1
um pobre e aflito (//Mt 5,3.5, bem aventurados os pobres e aflitos). A expressão
“Abriu a Boca” em 3,1, é a mesma usada por Mateus para indicar o ensino de Jesus. Ou seja,
Jesus proclama bendito o homem, mesmo na aflição. Em Jesus essa situação é
reassumida e relida. No cap.3 Jó abre
a boca e começa a bombardear com os porquês, (v.3.10-12) trata-se do início da
caminhada. Aqui, é o homem incapaz de descobrir o plano de Deus nessa
existência humana (por hora), a qual mais parece um fracasso do poder divino. E
na sua aflição profere gritos de revolta e palavras de submissão. Alguns acham
que a personagem Jó se inspira em Jr 20,14-18. Tem momentos de crise e alívio.
Tem momentos de alternância entre a aridez, desolação e consolação. Essa
alternância chega a dois ápices: Jó 19 (primeiro ápice; Jó dá um grito de fé) e
Jó 31 (Jó dá um grito de inocência). Aos porquês, dirigidos a Deus, Ele recebe as respostas de Deus. Os porquês de Jó são confrontados com os “Quens”
perguntados por Deus, retirando-se do campo de batalha.
De 32 – 37, os discursos
de Eliú são colocados frente à Jó. Ele mostra o sentido incontestável da
transcendência de Deus. Ele é onipotente, com base na tradição profética e
sapiencial. Mas Deus também é onipresente. E sua providência é ativa na vida
dos homens e do universo. Eliú procura justificar o modo de agir de Deus. E,
nesse particular, o amigo de Jó antecipa os temas do discurso divino na
parte final da obra.
Qual o contributo de Eliu? Ver no sofrimento a expressão da pedagogia divina. Eliu se esforça a abrir
Jó para o trabalho pedagógico de Deus e, nessa parte, ele enriquece a teologia
do sofrimento. Este seria, inicialmente, medida educativa. Mesmo o sofrimento
do Justo. Evidentemente ele terá outra conotação.
A infelicidade pode ser
nas mãos de Deus um instrumento de salvação para o homem. Os amigos de Jó já
tinham abordado esse tema. Mas para Eliu, o sofrimento é elevado como meio de
salvação. Previne falta mais grave e cura o orgulho mal. Obviamente, em Jó, o
sofrimento do justo não tem valor redentor como mostrará Is 58, não tendo
ligação com terceiros. Mas já desloca o foco da causa para a meta e não deixa
de ser um grande passo significativo no drama de Jó.
No
Livro de Jó, temos no prólogo que o sofrimento é uma prova. Para os amigos é causado pelo pecado.
Mas para Eliu faz parte da pedagogia divina e, assim, meio e instrumento de
salvação. Mas para Jó, o sofrimento faz parte ou aponta para o mistério de Deus (em Is 53, o sofrimento atinge dimensão
de redenção aplicados a terceiros – vicário).
Por fim, o epílogo (38,1
– 42,6) – a Epifania. Em Jó 38,1 e 40,6, os textos apresentam as manifestações
de Deus, “Ele falou do meio da tempestade”. Em 23,3, Jó declara que deseja
encontrá-lo. Ele está numa busca. Nesse sentido, a mística é uma experiência de
busca. Mas ela não pode ser um exercício alienador das consciências dos fieis, senão um impulso, a partir debaixo, do chão de nossa existência, a fim de ser uma ocasião para a experiência com Deus.
Após um longo silêncio
que martiriza a Jó – em meio aos debates com os três amigos e Eliú – , Deus
finalmente entra em cena. A teofania é uma maneira de dizer que estamos na
esfera da mística. Aparece na tempestade e fala à Jó abertamente. Deus fez
assim com os patriarcas, com os profetas e, agora, diretamente com ele.
Deus
quer mostrar a ele os limites humanos: 1) 38,4, “Onde estavas quando criei o
universo?”, ou seja, o homem é limitado no tempo e no espaço; o que seria sua
existência diante da criação de Deus? Ele conhece só o momento histórico a
partir do qual vive. 2) O v.4 mostra que o ser humano é limitado no saber,
“você o sabe?”. Aparece nestes versículos um acumulo de verbos pertencentes ao
campo semântico do saber, que pretendem revelar o desconhecimento inerente ao homem:
o sábio não pode saber tudo. Jó não tem a Biná (a inteligência) que
penetra nas coisas, nem a razão última das coisas. Dar-se conta de que não se
sabe de tudo é um grande passo para o sábio, que o leva a procurar outras
esferas de conhecimento. 3) O termo hebraico Mihn (“quem?”, cf. 40,12-13.14) é uma
pergunta retorica de Deus, que empurra Jó para seus limites, e para os limites do ser humano. Algum dia o crente deverá
escolher entre a afirmação de sua própria justiça e poder e a adoração
incondicional da Justiça divina, e a qualquer momento podemos chegar a essa
encruzilhada.
Jó faz duas descobertas
fundamentais em sua busca: 1) o saber humano tem limites (42,2-3// Sr 3,21-24).
O sofrimento sem merecimento, e que às vezes revolta, pode ter um sentido oculto
em Deus (para fazer implodir a autossuficiência humana, sem penetrar no Mistério de
Deus). Se o saber humano tem
limites, Jó compreendeu mais uma coisa; 2) a teologia também tem limites
(42,5). Este trecho é o auge da descoberta: ele conhecia a Deus por meio de
terceiros. Mas agora, pela experiência feita com Deus, ele pode dizer que O
conhece. A espiritualidade e a teologia se fazem na experiência da vida vivida
com Deus. Jó, então, questiona a teologia dos amigos, reagindo contra aquela visão teológica e equivocada, mesmo sendo pertencente a esse ambiente. Ele
conhecia o Deus da transmissão teológica – da tradição: “Conhecia-te só de
ouvido”. Ora, o próprio esquema pré-concebido a respeito de Deus dificultava o
diálogo com ele.
O que é interessante é
que Deus não o condena por isso, antes, abre-o para que ele possa enxergar suas
maravilhas, que lhe ultrapassam. Todo o drama que Jó passou, não os chamou de
miséria ou desgraça, mas de maravilhas. Então pôde fazer a experiência de Deus:
“Agora viram-te meus olhos (42,5)”.
A teofania dá ao problema
de Jó (sofrimento – angustia) a única solução possível – ou a que o autor da
obra vislumbra: as ações do mistério de Deus. Isso leva-o a uma revisão
profunda do modo de perceber Deus. Jó caminha na direção da profecia e descobre
que a postura correta do homem frente ao sofrimento é o silêncio. Ele se dá
conta que o sofrimento aponta para o Mistério. Cai-lhe a ficha de que falava
coisas sem sentido (“falei levianamente”, 40,4). A atitude do profeta e do
teólogo é, frente aos dramas da vida, o silêncio.
O último verso ilustra
mais ainda a atitude do profeta-sábio: me retrato e arrependo-me no pó e na
cinza, e fico no silêncio (da confiança e da fé) diante de um mistério que me
ultrapassa. Nessa perspectiva é que Jó consegue passar da atitude de Guerra com
Deus, para a Paz com Ele.
Na verdade, o sofrimento
não desmente o amor de Deus, antes, revela seu mistério. Perscrutar, descobrir,
aceitar e mergulhar em seu mistério são o básico para se viver a fé de forma
autêntica, viver e fazer uma espiritualidade teologia sérias.
Na impossibilidade de compreender, acolher o mistério. Porque a mente não pode entender o que o
coração rejeita ou não experimenta. O mistério não se explica, não se compreende (no sentido de não se deixar definir e esgotar-se em definições), mas se acolhe,
se aceita e se aprofunda na ordem e no horizonte da Graça. Se perscruta, sim,
pois é tarefa da teologia e da fé; mas consciente dos limites e numa atitude de
abertura para acolher na fé quando a razão não mais alcança. A teologia não
deve e nem vai eliminar o mistério, mas nutrir-se dele. Não deve fugir do
conflito, mas ultrapassá-lo, ir além dele. Quando falamos dessa relação de Jó
com Deus, terminamos por empurrar-nos para experiência, e nos defrontamos com a
tradição; e quando esta não ajuda a ver / experimentar a Deus, então ela tem
alguma coisa de errada ou de atrofiada.
Em 42,7-17 finalmente
Deus confirma que, no conflito teológico com os amigos, Jó tem razão (v.7-8).
Os amigos que defenderam Deus o tempo todo, falaram mal Dele. Jó, que atacou
Deus o tempo todo, foi confirmado por Ele. Isso permite duas conclusões obvias:
1) nem sempre os defensores da Doutrina falam corretamente do Deus verdadeiro;
2) é legitimo contestar Deus como fez Jó. Diferentemente, é incentivar que se
fale negativamente contra Ele sempre. O modo de Jó questionar é legitimo.
No final os bens de Jó
são restituídos. Isso mostra que o destino final do homem não é o sofrimento
nem a dor, mas o amor misericordioso de Deus que tudo restaura. Vemos implícita,
aqui, a dinâmica pascal.
Qual foi afinal a
experiência feita por Jó, que mudou sua vida e deu-lhe Paz? Sugere-se que se
faça o mesmo caminho para descobrir. Essa é a pedagogia dos livros sapienciais.
Não sugere imediatamente, mas ajuda a descobrir.
Afinal, quem é Jó? Jó é
um formulário a ser preenchido, ou seja, um modelo proposto a todo o crente que
se encontre em semelhante situação e abre-se para um caminhar rumo ao mistério
de Deus; de todo aquele que se propõe a fazer um itinerário espiritual. Ele não é uma figura do
passado, mas uma pessoa que está dentro de cada um de nós, que sofre e busca. O
autor escreveu essa obra para mostrar um espelho que nos ajude a perceber o
nosso itinerário (o Jó escondido em nós).
Com efeito, o drama de Jó vai encontrar sua luz em Jesus,
tanto é que Jó pode ser visto como uma figura do Cristo sofredor. E, também, nos textos paulinos (Rm 8,18; Col 10,24). No fundo, a luz plena do
sofrimento e do drama de Jó se plenifica no Novo Testamento, através daquele e daquela opta pela vida de Jesus, justo, servo e sofredor, como fizeram as primeiras testemunhas oculares da fé, dentre elas, os discípulos-apóstolos do Senhor, e, dentre estes, o apóstolo Paulo.
Uma pergunta final: quer
o livro de Jó dar uma resposta à Teologia da Retribuição? Sim. Mas obra não se
reduz a uma única mensagem. Seria pobre reduzi-la a um objetivo negativo
apenas. Os discursos de Deus (38 – 41)
ajudam a penetrar um pouco mais fundo no sentido do Livro. Não respondem ao
drama de Jó, mas preparam-no uma resposta (42,5, “Agora conheço-te”). Ajudam a personagem e o leitor a mudarem a atitude, abri-lo para uma dimensão
mais ampla, onde ele possa contemplar a própria situação a partir do mistério
divino. Jó é inocente e sofre, e, no entanto, Deus é Justo. A justiça do homem
não pode ser medida pela Justiça de Deus, mas o contrário. A justiça divina é
diferente da nossa.
Nosso conceito
tradicional de justiça é dar a cada um o que seu por direito. Já o conceito
bíblico de Justiça é dar direitos a quem não tem. A justiça, nesse sentido, atinge outro nível, e passa a se chamar misericórdia. É preciso ter a
grandeza para saltar do conceito de Justiça para o da Misericórdia.
Deus não explica seus
planos, mas seus enigmas são melhores que nossas soluções. Ora, o sofrimento é
inerente à condição humana. Todo o drama de Jó é expressão de uma busca, que
culmina no ver da experiência (42,5). Evidentemente Deus não é o objeto visível ao meu olhar,
mas vê-lo significa fazer uma experiência pessoal com Ele. Essa experiência lhe
devolverá a paz.
O livro de Jó é um caminho místico, o que alguns
monges chamam de espiritualidade a partir de baixo. Que não pode ser a
espiritualidade dos amigos de Jó, que fazem a experiência da teologia da
retribuição; que se auto justificam e ignoram o sofrimento alheio; um espelho
daquela comunidade que se ausenta da realidade, e que faz uma experiência falsa
de Deus.
Jó consegue dar o passo para ver a Graça na desgraça.
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