A Quinta-feira Santa nos faz cruzar o limiar das celebrações
do Mistério Pascal de Cristo. Nesta noite santa, somos convidados a meditar nos
gestos de Jesus na ceia com os seus, o que ele realizará na oferta da vida na
Cruz. A última ceia carrega consigo, portanto, profecia e testemunho. Profecia,
porque ela se torna um gesto simbólico da entrega de Jesus mediante o gesto de
lavar os pés dos seus; e testemunho, porque convida, interpela e
questiona a conduta e a atitude do discípulo, provocando-o a “seguir o exemplo”
do mestre e Senhor, num fazer memória de Seu gesto, que institui o sacramento
do amor serviçal (Ministério Ordenado), e do sacramento de seu Mistério Pascal,
presente entre nós (Eucaristia). O “fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24),
alcança sua plenitude histórico-salvífica quando estreitamente vinculado ao “dei-vos
o exemplo para que façais como eu fiz” (Jo 13,15). Isto posto, podemos meditar
o texto desta noite santa retirado do Quarto Evangelho, Jo 13,1-15.
A primeira parte do evangelho de João (1,38 –
12,50) preparou o leitor para a hora de Jesus, através dos sinais realizados, e
dos ensinamentos que se seguiam aos gestos simbólicos operados por Ele. Eles
davam a conhecê-lo como o Enviado pleno do Pai, levando o fiel-leitor ou
ouvinte, bem como as pessoas a uma opção favorável ou contrária a Jesus. Todavia
eram sinais provisórios. Eles não eram sua Obra definitiva.
O leitor-discípulo é convidado, agora, neste capítulo 13, a tomar parte
do Ensinamento Final de Jesus; chamado a entrar na dinâmica da sua Glória.
Estes últimos ensinamentos constituem o Testamento de Jesus (Jo 13 – 17). O
testamento refere-se a algo muito precioso que é deixado ou dado para quem se
ama. O que Jesus deixará para seus amigos constitui o coração de todo o seu
ensinamento, concomitante à revelação que realiza acerca da Glória de Deus,
através de sua Hora: o seu enaltecimento na Cruz (Jo 18 – 19). Podemos adentrar
no horizonte do texto.
João situa a narrativa no tempo: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). O
autor do Quarto Evangelho, diferentemente da tradição sinótica (Mc, Mt e Lc),
situa a ceia de Jesus na véspera da solenidade pascal. Então, a ceia pascal
seria celebrada no dia seguinte (coincidentemente no Sábado, aquele ano). Não há
espaço para abordar esta divergência cronológica entre os sinóticos e o Quarto
Evangelho. Importa captar a intenção de João, a de situar a morte de Jesus no
dia da solenidade pascal, no exato momento em que era imolado o cordeiro no
templo. A ceia relatada por João não é de caráter pascal, esta será celebrada
um dia mais tarde, depois da morte de Jesus (cf. 18,28). Aqui se trata de uma
ceia de despedida, quem nem por isso deixa de ter sua importância.
O evangelista não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou
com seus discípulos, mas pretende diferenciar, ou seja, quer dizer que a páscoa
celebrada por Jesus já não é mais a mesma do templo. A páscoa de Jesus não
exige ofertas e sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava
no templo. Celebrando antes, Jesus substitui: aquela que será celebrada um ou
dois dias depois pelos praticantes da religião oficial perdeu a sua validade,
está caduca e vencida. Na páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o
sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto na páscoa de Jesus com
sua comunidade se celebra o triunfo da vida em forma de serviço, a mais eficaz
manifestação visível do amor; nessa, não há morte, há doação de vida por amor.
Morte é coisa da antiga aliança; na nova aliança, há doação de vida. Com essa
introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma nova
páscoa, subversiva, por sinal; é essa que a comunidade cristã deve celebrar
(CORNÉLIO, F, Homilia Dominical in. porcausadeumcertoreino.blogspot).
O v.1 inicia a sessão com uma solenidade ímpar. Anuncia a chegada da
hora, que vinha sendo preparada desde os primeiros sinais realizados por Jesus,
e, que, agora, começa a levar a termo. Esta forma solene aponta para a
finalidade da missão de Jesus: manifestar o amor do Pai até o fim para os seus,
que estavam no mundo. É a hora de Jesus glorificar ao Pai, não com ritos, mas
com a doação livre da sua própria vida. A expressão, “até o fim” pode
significar “até à plenitude”, ou “até o último momento”, e está
relacionada à última expressão de Jesus na cruz: “Tudo está consumado” (Jo
19,28.30, literalmente, “está finalizado”). “Amou-os até o fim” pretende indicar
a plenitude e a intensidade do gesto de Jesus!
Após João situar o leitor no tempo e, com isso, introduzi-los na cena,
ele narra um evento: inicia-se um Jantar (note-se a ausência do artigo
definido). No entanto, não se trata de uma refeição qualquer. Trata-se de uma
refeição de caráter comunitário (com em Ex 12, “Que todos comam o cordeiro em
família, e se for muito para aquela, que se convide outra família”). É
importante compreender o simbolismo das refeições para os povos do oriente, em
especial para os semitas. A refeição era o momento privilegiado para se partilhar
a vida entre os comensais. Uma pessoa ao ser convidado para uma refeição
deveria encarar tal convite como uma honra, porque era o sinal de que anfitrião
nutria muita estima pelos seus convidados e, fundamentalmente, tinha a intenção
de torná-los participantes de sua vida e de sua alegria. Os discípulos estão
reclinados sobre almofadas, apoiados por sobre o braço esquerdo.
O evangelista dramaticamente focaliza internamente a consciência
diabólica de Judas Iscariotes, ao informar que “o Diabo” o havia seduzido (lit:
“tinha posto no coração de Judas... que entregasse Jesus”). A consciência
diabólica (cindida / dividida) de Judas opera um contraste com a Consciência
livre e orientada para o projeto de Deus que Jesus possui: o Pai “tudo”
(semitismo para Todos) havia colocado nas mãos do Filho (o Pai colocou Tudo e
Todos nas mãos do Filho), e de que a partir daquele momento começava seu
retorno para Deus, afim de prestar contas de sua missão, enquanto seu enviado.
Ora, Jesus seria capturado, independentemente da traição de Judas, pois
há muito tempo as autoridades religiosas e políticas o almejavam; daquela
páscoa ele não passaria. O mal de Judas foi ter sido aliado e cúmplice do poder
que gera morte e, ainda mais, movido por dinheiro. Sempre que o cristianismo
permite alianças com grupos e sistemas de poder, sempre que silencia diante das
injustiças, está permitindo que o “diabo seja posto em seu coração” (CORNÉLIO,
F, Homilia in. porcausadeumcertoreino.blogspot).
Mas o Jesus joanino tem tudo em suas mãos; tudo sob controle. Não é pego
de surpresa, tampouco é vítima da situação. Ao contrário, voluntaria e
livremente, ele se coloca ao lado das vítimas do Anti-Reino, neste mundo. É
totalmente soberano em seu agir nada o toma de surpresa. Não por que tenha atributos
de onisciência, mas porque é um homem inteiramente livre, e é com essa
liberdade, na fidelidade ao projeto de seu pai, que leva a sua vida até as
últimas consequências.
Então, com tal consciência, Jesus levanta-se da mesa. Depõe seu manto.
Um gesto simbólico: ao depor o manto está, na verdade, despojando-se da imagem
de mestre. Cinge-se com uma toalha à cintura (lembrar, aqui, o sentido do
“cingir” em 21,18, no diálogo com Pedro, bem como daquela passagem em Lc 12,37,
onde o dono da casa se levanta para cingir os servos fiéis). Em seguida derrama
água na bacia e começa a lavar os pés dos discípulos. Trata-se de um gesto
profético. Ele era realizado sempre antes que os convivas se colocassem à mesa,
deveriam se purificar (ficar limpos) devido as estradas poeirentas daquele
tempo. Esta purificação, geralmente, era feita por um escravo; quando não,
pelos filhos ou pela esposa, e, numa demonstração de profunda estima, pelo
próprio anfitrião. Todavia, continuava sendo um gesto de muita humilhação. Certos
rabinos até orientavam escravos judeus a não realizarem este gesto para com
seus patrões.
Tirar o manto em público significa renunciar ao próprio prestígio e à
dignidade pessoal. Amarrar um avental na cintura (cingir-se) acena para a
atitude do serviço, assumindo a forma e a condição de um escravo. O que se
fazia somente por imposição, Jesus o faz voluntariamente. Ele quer ensinar que
o destino de sua comunidade e de seus discípulos é o serviço! Esta é a sua real
e mais essencial identidade.
Estes símbolos servem para explicar o gesto de Jesus: como que numa
transfiguração às avessas, Jesus depõe a sua imagem de Senhor, e assume a forma
de servo (Fl 2,7). O Jesus joanino não veste os paramentos sagrados dos sumos
sacerdotes, mas os do serviço; não as alfaias da casta sacerdotal, mas o
avental dos servos (MAGGI, A loucura de Deus, p.133).
Agora, desloquemos o olhar para outro personagem que o evangelista faz
aparecer na narrativa: Pedro. Consciente da conotação humilhante daquele gesto,
ele protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?”. Ele, por um lado, vê no gesto de
Jesus, humilhação. Este, por outro, vê, porém, a dedicação da própria vida.
Para o discípulo pescador de Betsáida e para os demais, o gesto de Jesus é
incompreensível. E, de fato, o é para aqueles que ainda não conheceram em
profundidade o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma, que, por
hora, eles não sabem o significado daquele gesto (ainda não chegou a hora de
compreender, porque isto só acontecerá à luz do enaltecimento na cruz e
mediante o dom do Espírito de Jesus Ressuscitado).
O v.8, mostra a incompreensão de Pedro. Ele pensa ser o gesto de Jesus
uma humilhação e, por isso, inaceitável para ele. Evidentemente, porque para
aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar
quando o superior se torna inferior! “Tu não me lavarás os pés, nunca!”,
declara o discípulo. Mas Jesus retruca, dizendo “que não terá parte com ele,
caso não deixe lavar os pés”. O que Pedro não quer aceitar e, demora a
assimilar, é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão de que o
mestre se faça servo, e que o senhor se torne escravo. A profundidade do gesto
de Jesus reside no fato de que este é um gesto simbólico-profético da entrega /
doação da própria vida. O gesto de lavar os pés é um símbolo para o que ele
realizará mais adiante: sua vida consumada na cruz.
A alocução “Ter parte” remete o leitor do Quarto Evangelho ao Antigo
Testamento, para o tema da herança da Terra, e, em última análise, à Salvação. No
entanto, em termos joaninos, “não ter parte” com Jesus significa não ter a sua vida;
não participar da vida eterna. Ter parte com Jesus, significaria, por outro
lado, ter em si a vida de Jesus, e torná-la existencialmente vivida de novo,
através da vida do discípulo e da comunidade. Não é possível comungar da vida
do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical. Se Pedro (e qualquer outro
discípulo) não aceitar o gesto de Jesus, não participará do efeito da obra
messiânica de Jesus (KONINGS, 2005, p. 259).
Pedro, carregado pelo seu costumeiro exagero, pede que não lhe seja
lavado somente os pés, mas as mãos e a cabeça. Ele ainda não entendeu nada do
gesto de Jesus, ficou parado na materialidade. Ainda não consegue pensar em
termos de serviço. Os discípulos, personificados por Pedro, não
aceitam a igualdade e não admitem ter que servir ao próximo com a mesma
intensidade com que Jesus servia.
O Jesus joanino volta à mesa, retoma sua condição de mestre e
explica-lhes, então, o gesto. Ora, os discípulos reconhecem-no como Mestre e
Senhor, explica-lhes Jesus (o que de fato é verdade!). Mas se ele, enquanto
mestre e Senhor lhes lava os pés, eles devem fazer a mesma coisa: lavar os pés
uns dos outros, tornando-se escravos uns dos outros pelo amor fraterno. Sentar-se
à mesa era um direito exclusivo das pessoas livres. Sentar-se à mesa e servir
eram papéis incompatíveis: quem servia não tinha direito de sentar-se, e quem
sentava não se humilhava servindo. De outro modo, não há como sentar-se à mesa
(tomar parte da ceia do Senhor, comungando de sua vida, corpo e sangue) sem que
se tenha lavado os pés dos irmãos, comungado do gesto de Jesus de lavar os pés
das pessoas. Não há Eucaristia sem lava-pés! Em João, são os doze, ou seja, os
chefes, as lideranças da comunidade cristã, que devem fazer isso primeiramente.
O lava-pés de Jesus é um símbolo. Ele não pode ser interpretado
unicamente por sua materialidade. Interpretar o Dom de Jesus, através deste
gesto profético, significa não considerar Jesus como um herói, fácil de se
copiar em suas façanhas, mas deixar transparecer em nosso agir, o esvaziamento
de Deus.
Importa “deixar lavar os pés” (=ser salvo) por Jesus, mas devemos também
“lavar os pés uns dos outros” (=serviço fraterno). Aceitar que Jesus seja o
escravo, o “ninguém”, que faz de nós, “ninguéns”, o centro da atuação de Deus. É
no fato de segui-lo, ativamente, que mostramos em nossa vida a aceitação de
Jesus-Servo, que dá a própria vida (cf. Is 53; Jo 12,38). Em Jesus acontece o
“esvaziamento” de Deus para nós. Só quando tivermos assimilado esse fato
seremos capazes de “lavar os pés” uns aos outros sem nos julgarmos importantes
ou impormos nossa “caridade” ou “filantropia” como mérito nosso. Imitar Jesus é
imitar Deus que se esvazia por nós (KONINGS, 2005, p.260).
O texto suscita algumas perguntas para nós mediante este Sagrado Tríduo:
1) Com qual das peronagens me identifico: Judas, que não mais se identifica com
Senhor, a ponto de tornar-se adversário do projeto de Jesus e de seu Pai, ou
com Pedro, que reluta ainda em assimilar a forma servidora de Jesus? 2) Tenho
me deixado lavar os pés por Jesus (e com isso aceitado o Seu Dom-Salvação),
para poder lavar os pés dos irmãos (através do serviço do amor/doação
fraterno)? 3) Tenho crescido na consciência de que ao comungar da Vida do
Senhor (através de seu Corpo e Sangue), devo igualmente comungar (assimilar e
realizar) no lava-pés do Senhor? Não há Eucaristia sem lava-pés!
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP
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