A narrativa da paixão que meditamos
nesta ocasião da sexta-feira Santa, é retirada do Quarto Evangelho. Ela toma
dois capítulos, começando em 18,1 e estendendo-se à 19,42 A narrativa situa-se
no chamado livro da Glória (Jo 13,1 – 20). Um modo eficaz de lê-lo consiste em
situá-lo no contexto da pedagogia litúrgica, isto é, na sequência do texto da
quinta-feira santa da ceia do Senhor. A partir dali o discípulo que segui Jesus
até à “bacia e o Jarro” e até à “mesa”, cruza o umbral e adentra na hora da glorificação.
Chegou a Hora de Jesus. A Hora de levar
tudo (e todos) até o Fim, como declarará no momento de sua morte, que “tudo
está consumado (finalizado)”, através de sua entrega que revela seu
enaltecimento na Cruz. A hora da Cruz é o momento em que Deus revela a sua
presença e todo o seu poder em Jesus crucificado. A Hora da Glória constitui o
momento culminante do Quarto Evangelho, no qual Jesus realiza a sua obra
definitiva.
Um esclarecimento importante. Todas as vezes
em que o Quarto Evangelho toca no tema da glória ou da glorificação, ele não
pretende acenar para uma realidade resplandecente ou luminosa. A Glória lida em
chave das atuações de Jesus aludem para a sua entronização/elevação junto de
Deus: seu enaltecimento. Mas o termo gloria (gr. Doxa) quando referido à
Jesus e ao Pai, acenam para a palavra hebraica Kabod, que indica a
presença de Deus. O evangelista, ao recordar os ditos de Jesus sobre a glória
de Deus em Jesus, quer ensinar para a sua comunidade e para seus leitores, que
a Deus está substancialmente presente em Jesus de Nazaré, através de sua vida,
obras e palavras.
Feitas as devidas contextualizações se
faz necessário, antes de assumirmos a meditação de partes importantes da
narrativa, dizer que a narrativa evangélica da paixão segundo João é diferente
das demais. Apresenta um Jesus soberano e senhor de si, adquirindo tons de
realeza. É importante, também, fazer uma apresentação das personagens que, para
este propósito, julgamos relevantes.
No Jardim (Jo 18,1-12):
Lancemos um olhar para Jesus. Na
teologia do Quarto Evangelho, João o apresenta sempre consciente e onisciente. Não
seria diferente na narrativa da paixão: ele tem tudo em suas mãos. Ele não é
feito vítima da situação. Não permite que ninguém, exceto o Pai, tenha a Sua
vida nas mãos. É um Jesus senhor de si.
Por isso, não é surpreendido por Judas e pelas pessoas que vieram
prendê-lo.
Ele vai ao encontro do traidor, por
quem estava esperando (18, 4). Típica ironia joanina, o evangelista nos conta
que Judas vem equipado com lanternas e tochas. Judas preferiu as trevas à luz
que veio no mundo (3, 19). Ou seja, quando ele deixou Jesus, já era noite
fechada (13, 30); fez a opção por sair da luz; de cindir com ela. E agora, ele
é quem precisa de luz artificial.
Na casa de Anás (Jo 18,13-27):
Temos três personagens. Um deles é
Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote em exercício. O segundo personagem é
Pedro. Notemos um contraste operado pelo evangelista: enquanto Jesus está
mostrando sua inocência, seu mais conhecido seguidor está mostrando fraqueza. Emerge
uma outra personagem, presumivelmente “o discípulo que Jesus amava”. Não
há fundamento em identificá-lo com João, o autor do Quarto Evangelho (o que
seria demasiado simplista). Mas, fato é, ele está à frente de Pedro e contrasta
com ele. Ele é sempre mais rápido ao ver, ao compreender e em acreditar,
precisamente porque fez a experiência com o amor de Jesus, que é uma marca da
verdadeira condição de discípulo
No palácio de Heródes, diante de
Pilatos ( Jo 18, 28-42): um diálogo [repleto] de Verdade.
O evangelista apresenta uma personagem
confusa. Um camaleão. Um amedrontado Pilatos. Soma-se a isso a alternância dos
cenários externos e internos. Nesse vai-e-vem, Pilatos vai mudando e
assimilando as imagens de seus ambientes. Ao interno do palácio ocorre a
alternância entre luz (externo) e trevas (interno). Na maneira como João dispõe
a narrativa, o inquérito acontece ao interno do palácio, para revelar esta
oposição típica de seu evangelho: luz / trevas. A intenção (ainda que através
de sua ironia) é revelar Jesus, mesmo solitário e recluso no palácio, como Luz
diante de Pilatos, envolvido em dúvidas e trevas. Note-se também o contraste:
fora do palácio há incessante pressão, conspiração e tumulto; dentro, há calma
e diálogo penetrante. É sobre este diálogo que manteremos nossa atenção.
De madrugada (ao raiar um novo dia). Eis,
que se inicia o processo do Mundo, representado pelo Império. O mundo não o
conheceu, e os seus não o acolheram. Jesus está diante do procurador romano. Este,
o interroga com base naquilo que ouviu. “Tu és o rei dos judeus?” A
resposta de Jesus soa desafiadora: “Estas dizendo isso por ti mesmo, ou
outros te disseram isso de mim?” Jesus não responde nem que sim, nem que
não. Ele deixa que o próprio Pilatos tome sua decisão e tire suas conclusões. Acaba
se esquivando, dizendo que não é judeu, e insiste sobre a culpabilidade de
Jesus. A Sua resposta é paradigmática: “O meu reino não é deste mundo. Se o
meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse
entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui”.
O que o Jesus joanino quer revelar
através desta resposta? É preciso tomar o texto original que se expressa assim
“o meu reino não vem deste mundo (ek tou kosmou tuotou)”. Isso revela
que a realeza de Jesus não advém das realidades mundanas, das estruturas de
poder, domínio, opressão. Vem do alto. Jesus declara, pois, que sua realeza depende
de Deus. A autoridade que ele exerce, só a faz porque é da vontade do
Pai (KONINGS, 2005, p.328).
As palavras “meu reino não é daqui (=
deste mundo)”, portanto, não sugerem fuga do mundo, nem justificam a alienação
política (17,15). Pelo contrário, convocam o cristão a uma lucidez superior.
Aderir ao reino de Jesus é aderir à verdade daquele que, em tudo o que faz, é
palavra de Deus e que liberta de toda escravidão. No âmbito da história humana,
Deus está do lado da liberdade verdadeira, que fomenta a verdadeira dedicação
mútua das pessoas na solidariedade e na responsabilidade (KONINGS,
2005, p.328).
Aqui ele se identifica como testemunha
da verdade. "Da verdade" é um genitivo de pertença. “Verdade” deve
ser entendida a partir do fundo bíblico (cf. 1,14; 14,6): lealdade, fidelidade,
coerência e firmeza no pacto, na amizade, no amor. O que Jesus vem atestar
é o reinado da veracidade do Deus fiel, que se manifesta em sua práxis e em sua
palavra (KONINGS, 2005, p.327).
Jesus encaminha o diálogo com Pilatos,
após a pergunta em tons afirmativos “Então, tu és rei?”. O nazareno
responde: “é você quem está dizendo isso”, em outras palavras “Tire
as consequências você mesmo, Pilatos”. Pilatos, sim, é “deste mundo”.
Não deseja abrir-se à verdade.
Mas neste diálogo emerge uma novidade
muito profunda e marcante. Pensemos. Pela lógica do inquérito, Pilatos faz as
vezes do juiz que interroga, questiona e apura os fatos para dar cabo de uma
sentença. Entretanto, a partir das respostas eloquentes que Jesus dá aponta
para uma revelação importante: o juiz não é Pilatos.
No inquérito, quem assume a figura do
juiz é Jesus, deixando para Pilatos o papel de investigado. Na verdade, o
procurador romano é que foi colocado na berlinda por Jesus. João quer acenar
para aquela característica de Jesus: o soberano e senhor de si e da situação,
que não é pego nem surpreendido. Que não é entregue, mas que se entrega livre e
voluntariamente até o fim (KONINGS, 2005, p.328).
A morte (19,28-37):
Após um caminho longo, Jesus chega ao
lugar da crucifixão. Depois de tomar o vinho azedo, Jesus exclama: “Tudo
está consumado” (mesma expressão do v. 28), inclina a cabeça e “entrega
o espírito”. Nestes versículos 28-30 ocorre duas vezes o verbo teléo,
“consumar/levar ao fim” (vv. 28 e 30). O cumprimento da missão até o fim é
idêntico ao testemunho do amor até o fim, e ao cumprimento das Escrituras:
nestas três realidades devemos ver o Pai que, permanecendo em Jesus, realiza a
sua obra (14,10) (KONINGS, 2005, p.342).
O dito “Tudo está consumado” acena para
a realidade de que toda a vida de Jesus, através de suas obras e Palavra, refletem
a vontade de Deus. Significa, ainda, que a vida e obra de Jesus atingem a
Plenitude. Mas também revela a superação dos sistemas antigos dos sacrifícios levítico-cultuais.
Eles estão superados.
Assim, João faz coincidir a morte de
Jesus no calvário com o exato momento em que se imolavam os cordeiros no
templo, por ocasião da festa da pascoa. Jesus supera, com o dom de sua vida em
amor, os antigos sacrifícios e se torna, pois, o único mediador entre a
humanidade e Deus. Não é mais a observância da Lei, nem das prescrições
levítico-cultuais os meios necessários para se ter acesso a Deus, mas a
humanidade, a vida e a obra de Jesus. Esta vida, Ele a entrega nas mãos do Pai.
O “entregar o espírito” (a existência)
acena para aquela onisciência e senhorio de Jesus, de que falou-se a pouco. O
verbo grego paradidomai (entregar/doar) percorre toda a narrativa da
paixão, mas aqui ele revela e, ao mesmo tempo, afirma o domínio de Jesus diante
da situação: quem entrega sua vida é ele mesmo, sabendo que tem o poder de
retoma-la novamente. Ninguém a entrega. Ele livremente a doa, para que o Pai
reconheça esta mesma vida como salvífica e redentora, dizendo a última palavra
na vida do Filho.
A morte de Jesus, de maneira tão crua, só pode ser entendida
à luz de sua vida vivida, através de seu ministério. Sua atuação pré-pascal
(antes dos eventos de sua prisão, paixão e morte). A morte é o resultado da
vida, das opções, decisões, vividas à luz do amor fiel ao Pai e aos irmãos, mesmo
em face às hostilidades dos chefes do povo. Isso não é fazer uma leitura
política da vida de Jesus. Sua vida era conflituosa pelas questões que
provocava e pelos interesses que abalava. Isto vê-se no seu modo de viver, na
sua práxis escandalosa, não facilmente aceita; em Sua opção pelos
últimos. O modo de Jesus desmascarar determinadas situações incomodou que
estava apegado às estruturas do reino deste mundo. Nesse sentido, pregação de
Jesus foi uma inversão de valores. Rompeu com os esquemas estabelecidos. Ora, a
condenação de Jesus é uma rejeição a sua pessoa e a tudo o que Ele faz durante
sua vida.
O relato de hoje nos deixa diante de
duas perguntas: 1) Com quais personagens me identifico? 2) Como tenho vivido
minha existência cristã e meu discipulado?
A chave e o modo para viver o
discipulado é a forma da Paixão. Não existe discipulado que não seja perpassado
pela Cruz. Mas Ela não será a última palavra.
Arquidiocese de Botucatu - SP.
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