sábado, 4 de abril de 2020

HOMILIA PARA O DOMINGO DE RAMOS – (Evangelho da benção e procissão, Mt 21,1-11):




A igreja inicia as celebrações do Mistério Pascal do Senhor com o Domingo da Paixão, o domingo de ramos, o qual se faz a memória da entrada de Jesus em Jerusalém, onde serão narrados e descritos para o fiel discípulo o acontecido com Jesus de Nazaré: os eventos de sua paixão, morte e ressurreição. No entanto, nossa reflexão se deterá somente sobre o evangelho que antecede a benção e procissão dos ramos, o qual narra a entrada de Jesus em Jerusalém. Vamos ao texto. E, para isso, se faz necessário contextualizá-lo no horizonte da catequese mateana.

O evangelho de Mateus foi escrito nos anos 80 d.C. Num período em que as comunidades cristãs estavam envolvidas numa crise de fé e de identidade. A primeira consistia no fato de serem questionadas por sua adesão e seguimento ao “rabino (e messias)” crucificado, Jesus de Nazaré. Principalmente a comunidade para a qual o evangelista Mateus destina o seu evangelho, constituída, em sua maioria, por judeus que estavam dando o passo na fé a Jesus. Uma comunidade judeu-cristã. Era ela perseguida pelo judaísmo da época, que não aceitava a crença num messias crucificado, e que começava a expulsar de seu meio todos os que aderissem a ele. Sofria perseguições, também, por parte do império romano. Perseguida de ambos os lados, a comunidade mateana começava a balançar na fé.

Para o judaísmo da época, um messias crucificado era inconcebível, pois pensavam e acreditavam num estilo de messias diferente, dominador, triunfante e poderoso, um descendente de Davi, e não um messias fracassado, que morrera da maneira mais vergonhosa possível, o que o tornava maldito perante a Lei de Israel, visto que Dt 22,22 declarava maldito quem morresse suspenso numa haste. O modo de vida, a missão e, principalmente, a morte ignominiosa desclassificavam e desacreditavam Jesus como o messias esperado. Em virtude disso, vendo o drama de sua comunidade questionada, Mateus transmite para ela a sua experiência com Jesus, animando a sua comunidade em tempos de crise.

A comunidade de Mateus trazia consigo todo o patrimônio religioso e histórico da vida do povo de Israel. Por isso, para facilitar a sua catequese e transmitir seu ensinamento acerca de Jesus de Nazaré, revelando e confirmando-o como o Messias esperando, o evangelista se serve de todo o patrimônio histórico-religioso da tradição judaica, bem como de seus personagens, fazendo uma releitura à luz de Jesus de Nazaré. Mas o evangelista tem uma segunda – e não menos importante – finalidade ao escrever seu evangelho: fazer discípulos de Jesus todos os que tomam contato com Sua vida e missão. Portanto, o evangelho de Mateus é um manual do discipulado a Jesus.

O que o mestre-Jesus viveu deverá servir para o discípulo do Reino. Jesus não enganou, tampouco iludiu alguém; ele sempre deixou bem claro o caminho que seguiria, e, nesse sentido, qual deveria ser o caminho pelo qual o discípulo deveria se pautar. A vida de Jesus passou pelo sofrimento da paixão e da cruz. A vida do discípulo, que fez sua opção pelo mesmo modo de vida de seu mestre, deverá ser perpassada pela lógica da cruz, se ele quiser, de fato, ser discípulo de Jesus e do Reino. Logo, o discipulado é perpassado pela cruz, e esta é o caminho-critério para aquele e aquela que decidiu viver segundo a vida do Filho de Deus. Isso posto, podemos tomar o texto de Mt 21,1-11, e meditá-lo. Uma pergunta se faz necessária: a que Jesus quero seguir e adentrar em Jerusalém?

“Jesus e seus discípulos aproximaram-se de Jerusalém e chegaram a Betfagé, no monte das Oliveiras” (v.1). Somos introduzidos na cena através da constatação geográfica que o evangelista faz. Jesus se aproxima de Jerusalém. Na perspectiva do mestre e do evangelista, aproximam-se os dias finais e o desfecho da missão, que culminará em Jerusalém. É claro que a localização que Mateus fornece não pretende ser tão somente geográfica, mas teológica, porque a localização de Betfagé é muito sugestiva; ela fica nas proximidades do monte das Oliveiras. A tradição religiosa de Israel acreditava que seria ali, no monte, a manifestação gloriosa do Messias esperado. No entanto, Betfagé significa “casa do figo”. Imediatamente após a entrada de Jesus em Jerusalém situa-se o episódio da figueira estéril, que nada produziu, a qual Jesus repreendeu a inutilidade. Ela simboliza o sistema religioso de Jerusalém, representado pelo Templo, que não produzia mais frutos de vida na vida do povo. Jesus se aproxima de um lugar que já perdeu o seu sentido, e que não era mais capaz de gerar vida. Muito pelo contrário, o sistema religioso da época de Jesus tomava a vida das pessoas. Tomará também a Dele.

Ao parar ali, Jesus envia dois de seus discípulos até o povoado para tomar emprestado um jumentinho, orientando-lhes responder a quem quer que os perguntassem, que “o Senhor precisa dele” (v.2). Sempre que nos evangelhos aparece o termo “povoado (vilarejo)”, remete-se ao tema da incompreensão da mensagem plena de novidade trazida por Jesus. O povoado representa a mentalidade fechada, a incompreensão e, até mesmo, a hostilidade. Basta lembrar a crise de Nazaré, sofrida por Jesus em Lc 4,16, na sinagoga.

No entanto, qual o significado da jumenta e do jumentinho neste trecho? O leitor-discípulo do evangelho mateano deve sempre recordar que o evangelista faz uso da tradição escriturística do Antigo Testamento, e carrega seu texto com estas citações. Devemos voltar-nos para Gn 49,10-11, o qual nos narra a benção de Jacó sobre Judá, dizendo que o cetro (governo / domínio) não será tirado de Judá, até que venha Aquele a quem ele pertence; Ele amarrará seu jumento a uma videira e o seu jumentinho, ao ramo mais seleto. Estes animais recordam, portanto, a expectativa da vinda do Messias, bem como a realização desta profecia segundo a perspectiva de Mateus.

A orientação de Jesus aos discípulos carrega consigo o termo Senhor. É a única vez que este termo aparece nos lábios de Jesus, “O senhor precisa dele” (v.3). O termo “Senhor (kyrios)”, para Jesus e Mateus, não é aquele que se coloca acima dos outros ou que comanda e domina, mas aquele que não encontra ninguém sobre si; aquele que é livre para dispor de sua própria vida. Um Senhor, portanto, que não comanda, não domina, mas que é livre e capaz de doar-se aos outros.

Novamente, o evangelista faz uso das Escrituras judaicas, citando um trecho do profeta Zacarias, ainda que não a transcreva literalmente: “Dizei à filha de Sião: Eis que o teu rei vem a ti, manso e montado num jumento, num jumentinho, num potro de jumenta” (v.5). Quando, na verdade, o texto original do profeta começava com um convite de exultação, de alegria e de júbilo. Para Mateus, não há motivos para exultar e se alegrar. Desde o início do evangelho, a filha de Sião que é Jerusalém, vem sendo apresentada num tom sinistro; é a cidade símbolo do poder e da instituição religiosa que sempre se encarrega de eliminar os enviados de Deus ao povo. Zacarias, no texto original, cita duas características deste rei, ele é justo e vitorioso. O justo era o fiel observante da Lei e o vitorioso era aquele que triunfava.

Mateus as omite, porque em Jerusalém, Jesus não triunfará através das forças das armas e do poder. O evangelista apenas o identifica como o “manso”. Este termo nos remete às Bem-aventuranças (Mt 5,1-12), através do qual se diz ser feliz aquele que é manso, porque possuirá a terra, e a Mt 11,28, onde Jesus se declara o “manso” por excelência. O manso é aquele que opta por não fazer uso do poder e do domínio, agindo na contramão destas mentalidades.

O v.5 continua a citação de Zacarias, dizendo que o rei esperado viria montado num jumento. Eis aqui onde o evangelista pretende chegar. Mateus relê a profecia de Zacarias e pretende ensinar para a sua comunidade que o messianismo de Jesus – o modo através do qual ele orienta sua vida e missão – não se reveste das insígnias reais. O rei, quando atravessava a cidade, vinha montado num cavalo. Logo o cavalo era símbolo da soberania. Jesus adentra a cidade santa montando um jumentinho, um animal desprovido de beleza e postura, e que era o meio de transporte da gente simples de seu tempo. Nesse sentido, não compactua Jesus com estas ideologias de poder e de domínio. Foi na contramão de tudo isso que ele delimitou e pautou sua vida. O catequista Mateus quer que sua comunidade assimile o modo de ser de Jesus. Deverá ser este o Jesus a ser seguido pelo discípulo e pela comunidade inteira.

“Trouxeram a jumenta e o jumentinho e puseram sobre eles suas vestes, e Jesus montou. A numerosa multidão estendeu suas vestes pelo caminho, enquanto outros cortavam ramos das árvores, e os espalhavam pelo caminho” (vv. 7-8). O texto litúrgico prefere o termo “vestes” à “manto”. Todavia, este exprime melhor o sentido desta cena. O manto, na tradição hebraica, simboliza a realidade e a condição da pessoa; portanto, o discípulo deve atender a esta imagem de um messias de paz, não violento, desarmado. No entanto, a compreensão desta realidade assumida por Jesus não encontrava lugar na cabeça das pessoas. Elas estendiam suas vestes (mantos) sobre o chão para que Jesus passasse sobre estes, fazendo eco às investiduras reais, comuns naquela época, para manifestar a submissão do povo ao soberano. As multidões não querem aquele messias de paz, mas um rei ao qual precisam submeter-se.

Comprova esta interpretação, o que nos é descrito a seguir: “As multidões que iam na frente de Jesus e os que o seguiam, gritavam: 'Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto dos céus!” (v.9). Interessante, não é Jesus quem vai à frente da multidão, mas ela é quem toma a dianteira. Recorde-se de quando o tentador levou Jesus ao pináculo do Templo. Aqui, nesta atitude da multidão, Jesus mais uma vez é tentado pela lógica do poder. As tentações sofridas no capítulo quatro continuam no decorrer do evangelho, e, principalmente, nestes momentos intensos e finais de sua vida, não poderia ser diferente. Jesus está diante da tentação que indicaria a estrada a ser tomada: a do poder e do domínio. Todavia, ele as rejeitará.

A multidão, que vai à frente, bem como os discípulos que vão depois de Jesus, gritam “Hosana ao filho de Davi”. A primeira aclamação – Hosana – significa “salvai-nos, Senhor”, e trata-se de uma súplica messiânica que o povo fazia, esperado a realização, por parte de Deus, da promessa acerca da vinda do messias. O título “filho de Davi” indica qual era a compreensão do povo a respeito da figura messiânica: ele seria um continuador dos sistemas e das ideologias de poder e submissão, porque a expressão filho de Davi remete às convicções de um messias nacionalista, que viria com a espada na mão, a fim de libertar o povo do julgo da dominação estrangeira. É um equívoco. Todavia, curioso é ver que, esta mesma multidão que grita “hosana”, ao constatar que a vida de Jesus segue por outra lógica, contrária àquela que possuía, gritará “crucifica-o!” Escolhendo Barrabás e não Jesus.

“Quando Jesus entrou em Jerusalém a cidade inteira se agitou, e diziam: Quem é este homem?” O Verbo usado pelo evangelista é aquele que indica uma atividade sísmica, um terremoto. A cidade ficou “num terremoto”. Do mesmo modo, quando no início do evangelho, a cidade ficou perturbada ao saber do nascimento de um novo rei (Mt 2,3). E se interrogam, “Quem é este homem?”, ou seja, a cidade santa não conhece o “Deus-conosco” como Jesus apresentou, porque seu deus é outro: o interesse, a conveniência, o Mammon (o dinheiro, conforto e prestígio).

A multidão responde, equivocadamente: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galiléia” (v.11). A Galileia era a região turbulenta, onde nasciam os revolucionários, os zelotes; aqueles que enfrentavam o domínio romano. Basta lembrar das revoltas realizadas por Judas, o Galileu, nos anos 6 e 7 depois de Cristo, que fora sufocadas pelos dominadores, deixando um banho de sangue. Eis o que a cidade de Jerusalém esperava. Mas ao caírem na conta de que Jesus toma outra direção, diferente daquelas expectativas, não assumindo a identidade de filho de Davi, mas a de Filho de Deus – o Emanuel, Deus-conosco –, não saberão o que fazer.

A narrativa da entrada de Jesus em Jerusalém, no horizonte do evangelho de Mateus, cumpre a sua função: 1) mostra a finalidade da entrada de Jesus em Jerusalém; 2) trata de confirmar a vida, a missão e o caminho assumido por Ele, que outro não é, senão o serviço e a doação da própria vida, rejeitando a tentação do poder e da submissão, domínio e da violência;  3) e qual deverá ser o discípulo que segue-o.

O texto questiona a cada um de nós: 1) a que Jesus eu sigo, o da minha cabeça e o das ideologias, ou o Jesus Servo e justo sofredor (me identifico com os justos e sofredores de hoje)? 2) em qual grupo me encontro, entre os discípulos que estão aprendendo e experimentando por onde passa a vida de Jesus e qual sentido ela tem para si; estou no grupo da multidão, que deseja moldar um messias à sua conveniência; ou estou no grupo dos de Jerusalém, que ainda se perturba, se opõe e se incomoda com a face de Deus apresentada por Jesus: um Deus que opta pelo anti-poder, pela não-violência, doando-nos a sua própria vida? 3) Estou disposto a seguir com Jesus pela Jerusalém da vida, assumindo o caminho da cruz?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

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