A igreja inicia as celebrações do Mistério
Pascal do Senhor com o Domingo da Paixão, o domingo de ramos, o qual se faz a
memória da entrada de Jesus em Jerusalém, onde serão narrados e descritos para
o fiel discípulo o acontecido com Jesus de Nazaré: os eventos de sua paixão,
morte e ressurreição. No entanto, nossa reflexão se deterá somente sobre o
evangelho que antecede a benção e procissão dos ramos, o qual narra a entrada
de Jesus em Jerusalém. Vamos ao texto. E, para isso, se faz necessário
contextualizá-lo no horizonte da catequese mateana.
O evangelho de Mateus foi escrito nos anos
80 d.C. Num período em que as comunidades cristãs estavam envolvidas numa crise
de fé e de identidade. A primeira consistia no fato de serem questionadas por
sua adesão e seguimento ao “rabino (e messias)” crucificado, Jesus de Nazaré. Principalmente
a comunidade para a qual o evangelista Mateus destina o seu evangelho, constituída,
em sua maioria, por judeus que estavam dando o passo na fé a Jesus. Uma
comunidade judeu-cristã. Era ela perseguida pelo judaísmo da época, que não
aceitava a crença num messias crucificado, e que começava a expulsar de seu
meio todos os que aderissem a ele. Sofria perseguições, também, por parte do império
romano. Perseguida de ambos os lados, a comunidade mateana começava a balançar
na fé.
Para o judaísmo da época, um messias crucificado
era inconcebível, pois pensavam e acreditavam num estilo de messias diferente,
dominador, triunfante e poderoso, um descendente de Davi, e não um messias
fracassado, que morrera da maneira mais vergonhosa possível, o que o tornava maldito
perante a Lei de Israel, visto que Dt 22,22 declarava maldito quem morresse
suspenso numa haste. O modo de vida, a missão e, principalmente, a morte
ignominiosa desclassificavam e desacreditavam Jesus como o messias esperado. Em
virtude disso, vendo o drama de sua comunidade questionada, Mateus transmite para
ela a sua experiência com Jesus, animando a sua comunidade em tempos de crise.
A comunidade de Mateus trazia consigo todo
o patrimônio religioso e histórico da vida do povo de Israel. Por isso, para facilitar
a sua catequese e transmitir seu ensinamento acerca de Jesus de Nazaré,
revelando e confirmando-o como o Messias esperando, o evangelista se serve de
todo o patrimônio histórico-religioso da tradição judaica, bem como de seus
personagens, fazendo uma releitura à luz de Jesus de Nazaré. Mas o evangelista
tem uma segunda – e não menos importante – finalidade ao escrever seu evangelho:
fazer discípulos de Jesus todos os que tomam contato com Sua vida e missão.
Portanto, o evangelho de Mateus é um manual do discipulado a Jesus.
O que o mestre-Jesus viveu deverá servir
para o discípulo do Reino. Jesus não enganou, tampouco iludiu alguém; ele sempre
deixou bem claro o caminho que seguiria, e, nesse sentido, qual deveria ser o
caminho pelo qual o discípulo deveria se pautar. A vida de Jesus passou pelo sofrimento
da paixão e da cruz. A vida do discípulo, que fez sua opção pelo mesmo modo de
vida de seu mestre, deverá ser perpassada pela lógica da cruz, se ele quiser,
de fato, ser discípulo de Jesus e do Reino. Logo, o discipulado é perpassado
pela cruz, e esta é o caminho-critério para aquele e aquela que decidiu viver
segundo a vida do Filho de Deus. Isso posto, podemos tomar o texto de Mt
21,1-11, e meditá-lo. Uma pergunta se faz necessária: a que Jesus quero seguir
e adentrar em Jerusalém?
“Jesus e seus discípulos aproximaram-se de
Jerusalém e chegaram a Betfagé, no monte das Oliveiras” (v.1). Somos introduzidos
na cena através da constatação geográfica que o evangelista faz. Jesus se
aproxima de Jerusalém. Na perspectiva do mestre e do evangelista, aproximam-se
os dias finais e o desfecho da missão, que culminará em Jerusalém. É claro que
a localização que Mateus fornece não pretende ser tão somente geográfica, mas
teológica, porque a localização de Betfagé é muito sugestiva; ela fica nas
proximidades do monte das Oliveiras. A tradição religiosa de Israel acreditava
que seria ali, no monte, a manifestação gloriosa do Messias esperado. No
entanto, Betfagé significa “casa do figo”. Imediatamente após a entrada de
Jesus em Jerusalém situa-se o episódio da figueira estéril, que nada produziu, a
qual Jesus repreendeu a inutilidade. Ela simboliza o sistema religioso de Jerusalém,
representado pelo Templo, que não produzia mais frutos de vida na vida do povo.
Jesus se aproxima de um lugar que já perdeu o seu sentido, e que não era mais
capaz de gerar vida. Muito pelo contrário, o sistema religioso da época de
Jesus tomava a vida das pessoas. Tomará também a Dele.
Ao parar ali, Jesus envia dois de seus
discípulos até o povoado para tomar emprestado um jumentinho, orientando-lhes
responder a quem quer que os perguntassem, que “o Senhor precisa dele” (v.2). Sempre
que nos evangelhos aparece o termo “povoado (vilarejo)”, remete-se ao tema da incompreensão
da mensagem plena de novidade trazida por Jesus. O povoado representa a mentalidade
fechada, a incompreensão e, até mesmo, a hostilidade. Basta lembrar a crise de Nazaré,
sofrida por Jesus em Lc 4,16, na sinagoga.
No entanto, qual o significado da jumenta
e do jumentinho neste trecho? O leitor-discípulo do evangelho mateano
deve sempre recordar que o evangelista faz uso da tradição escriturística do
Antigo Testamento, e carrega seu texto com estas citações. Devemos voltar-nos
para Gn 49,10-11, o qual nos narra a benção de Jacó sobre Judá, dizendo que o cetro
(governo / domínio) não será tirado de Judá, até que venha Aquele a quem
ele pertence; Ele amarrará seu jumento a uma videira e o seu jumentinho, ao
ramo mais seleto. Estes animais recordam, portanto, a expectativa da vinda do Messias,
bem como a realização desta profecia segundo a perspectiva de Mateus.
A orientação de Jesus aos discípulos
carrega consigo o termo Senhor. É a única vez que este termo aparece nos
lábios de Jesus, “O senhor precisa dele” (v.3). O termo “Senhor (kyrios)”,
para Jesus e Mateus, não é aquele que se coloca acima dos outros ou que comanda
e domina, mas aquele que não encontra ninguém sobre si; aquele que é livre para
dispor de sua própria vida. Um Senhor, portanto, que não comanda, não domina,
mas que é livre e capaz de doar-se aos outros.
Novamente, o evangelista faz uso das
Escrituras judaicas, citando um trecho do profeta Zacarias, ainda que não a transcreva
literalmente: “Dizei à filha de Sião: Eis que o teu rei vem a ti, manso e
montado num jumento, num jumentinho, num potro de jumenta” (v.5). Quando, na
verdade, o texto original do profeta começava com um convite de exultação, de
alegria e de júbilo. Para Mateus, não há motivos para exultar e se alegrar.
Desde o início do evangelho, a filha de Sião que é Jerusalém, vem sendo
apresentada num tom sinistro; é a cidade símbolo do poder e da instituição religiosa
que sempre se encarrega de eliminar os enviados de Deus ao povo. Zacarias, no
texto original, cita duas características deste rei, ele é justo e vitorioso. O
justo era o fiel observante da Lei e o vitorioso era aquele que triunfava.
Mateus as omite, porque em Jerusalém,
Jesus não triunfará através das forças das armas e do poder. O evangelista
apenas o identifica como o “manso”. Este termo nos remete às Bem-aventuranças
(Mt 5,1-12), através do qual se diz ser feliz aquele que é manso, porque possuirá
a terra, e a Mt 11,28, onde Jesus se declara o “manso” por excelência. O manso
é aquele que opta por não fazer uso do poder e do domínio, agindo na contramão
destas mentalidades.
O v.5 continua a citação de Zacarias,
dizendo que o rei esperado viria montado num jumento. Eis aqui onde o evangelista
pretende chegar. Mateus relê a profecia de Zacarias e pretende ensinar para a
sua comunidade que o messianismo de Jesus – o modo através do qual ele orienta
sua vida e missão – não se reveste das insígnias reais. O rei, quando atravessava
a cidade, vinha montado num cavalo. Logo o cavalo era símbolo da soberania.
Jesus adentra a cidade santa montando um jumentinho, um animal desprovido de beleza
e postura, e que era o meio de transporte da gente simples de seu tempo. Nesse
sentido, não compactua Jesus com estas ideologias de poder e de domínio. Foi na
contramão de tudo isso que ele delimitou e pautou sua vida. O catequista Mateus
quer que sua comunidade assimile o modo de ser de Jesus. Deverá ser este o
Jesus a ser seguido pelo discípulo e pela comunidade inteira.
“Trouxeram a jumenta e o jumentinho e
puseram sobre eles suas vestes, e Jesus montou. A numerosa multidão estendeu
suas vestes pelo caminho, enquanto outros cortavam ramos das árvores, e os
espalhavam pelo caminho” (vv. 7-8). O texto litúrgico prefere o termo “vestes” à
“manto”. Todavia, este exprime melhor o sentido desta cena. O manto, na
tradição hebraica, simboliza a realidade e a condição da pessoa; portanto, o
discípulo deve atender a esta imagem de um messias de paz, não violento, desarmado.
No entanto, a compreensão desta realidade assumida por Jesus não encontrava
lugar na cabeça das pessoas. Elas estendiam suas vestes (mantos) sobre o chão
para que Jesus passasse sobre estes, fazendo eco às investiduras reais, comuns
naquela época, para manifestar a submissão do povo ao soberano. As multidões
não querem aquele messias de paz, mas um rei ao qual precisam submeter-se.
Comprova esta interpretação, o que nos é
descrito a seguir: “As multidões que iam na frente de Jesus e os que o seguiam,
gritavam: 'Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana
no mais alto dos céus!” (v.9). Interessante, não é Jesus quem vai à frente da
multidão, mas ela é quem toma a dianteira. Recorde-se de quando o tentador
levou Jesus ao pináculo do Templo. Aqui, nesta atitude da multidão, Jesus mais
uma vez é tentado pela lógica do poder. As tentações sofridas no capítulo
quatro continuam no decorrer do evangelho, e, principalmente, nestes momentos
intensos e finais de sua vida, não poderia ser diferente. Jesus está diante da
tentação que indicaria a estrada a ser tomada: a do poder e do domínio. Todavia,
ele as rejeitará.
A multidão, que vai à frente, bem como os
discípulos que vão depois de Jesus, gritam “Hosana ao filho de Davi”. A
primeira aclamação – Hosana – significa “salvai-nos, Senhor”, e
trata-se de uma súplica messiânica que o povo fazia, esperado a realização, por
parte de Deus, da promessa acerca da vinda do messias. O título “filho de Davi”
indica qual era a compreensão do povo a respeito da figura messiânica: ele
seria um continuador dos sistemas e das ideologias de poder e submissão, porque
a expressão filho de Davi remete às convicções de um messias nacionalista, que
viria com a espada na mão, a fim de libertar o povo do julgo da dominação
estrangeira. É um equívoco. Todavia, curioso é ver que, esta mesma multidão que
grita “hosana”, ao constatar que a vida de Jesus segue por outra lógica, contrária
àquela que possuía, gritará “crucifica-o!” Escolhendo Barrabás e não Jesus.
“Quando Jesus entrou em Jerusalém a cidade
inteira se agitou, e diziam: Quem é este homem?” O Verbo usado pelo evangelista
é aquele que indica uma atividade sísmica, um terremoto. A cidade ficou “num
terremoto”. Do mesmo modo, quando no início do evangelho, a cidade ficou perturbada
ao saber do nascimento de um novo rei (Mt 2,3). E se interrogam, “Quem é este
homem?”, ou seja, a cidade santa não conhece o “Deus-conosco” como Jesus apresentou,
porque seu deus é outro: o interesse, a conveniência, o Mammon (o dinheiro, conforto
e prestígio).
A multidão responde, equivocadamente: “Este
é o profeta Jesus, de Nazaré da Galiléia” (v.11). A Galileia era a região
turbulenta, onde nasciam os revolucionários, os zelotes; aqueles que enfrentavam
o domínio romano. Basta lembrar das revoltas realizadas por Judas, o Galileu, nos
anos 6 e 7 depois de Cristo, que fora sufocadas pelos dominadores, deixando um
banho de sangue. Eis o que a cidade de Jerusalém esperava. Mas ao caírem na conta
de que Jesus toma outra direção, diferente daquelas expectativas, não assumindo
a identidade de filho de Davi, mas a de Filho de Deus – o Emanuel, Deus-conosco
–, não saberão o que fazer.
A narrativa da entrada de Jesus em
Jerusalém, no horizonte do evangelho de Mateus, cumpre a sua função: 1) mostra
a finalidade da entrada de Jesus em Jerusalém; 2) trata de confirmar a vida, a
missão e o caminho assumido por Ele, que outro não é, senão o serviço e a doação
da própria vida, rejeitando a tentação do poder e da submissão, domínio e da
violência; 3) e qual deverá ser o discípulo
que segue-o.
O texto questiona a cada um de nós: 1) a
que Jesus eu sigo, o da minha cabeça e o das ideologias, ou o Jesus Servo e
justo sofredor (me identifico com os justos e sofredores de hoje)? 2) em qual
grupo me encontro, entre os discípulos que estão aprendendo e experimentando
por onde passa a vida de Jesus e qual sentido ela tem para si; estou no grupo
da multidão, que deseja moldar um messias à sua conveniência; ou estou no grupo
dos de Jerusalém, que ainda se perturba, se opõe e se incomoda com a face de
Deus apresentada por Jesus: um Deus que opta pelo anti-poder, pela não-violência,
doando-nos a sua própria vida? 3) Estou disposto a seguir com Jesus pela
Jerusalém da vida, assumindo o caminho da cruz?
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.
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