A
morte de Jesus causou a dispersão e a confusão do grupo dos discípulos e das
mulheres que O seguiam. Nas primeiras horas daquele primeiro dia da semana, elas
vão a sua procura onde ele não está, no sepulcro. Lucas conserva os dados comuns
a Marcos, Mateus e João, mas transmite a experiência com o ressuscitado a seu
modo para a sua comunidade. A liturgia deste Terceiro Domingo da Páscoa nos
apresenta o relato conhecido por todos como os discípulos de Emaús. Tomemos o texto.
“Naquele
mesmo dia, o primeiro da semana, dois dos discípulos de Jesus iam para um
povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém” (v.13). O
evangelista situa-nos ao entorno dos acontecimentos daquele primeiro dia da
semana, o dia da ressurreição. Mas demonstra que, ainda, a comunidade não consegue
fazer a experiência com o evento da ressurreição, tampouco com o ressuscitado,
ao narrar dois do grupo dos discípulos do Senhor, a caminho do povoado de
Emaús. Por que seguem para lá?
O
projeto teológico de Lucas revela como meta e centro da missão de Jesus, a
cidade santa de Jerusalém. Desde o capítulo nono, o evangelista nos narra a
subida do Senhor para Jerusalém. Por dez capítulos Lucas vai preparando a chegada
de Jesus na cidade santa, pois ali Ele revelará a ação de Deus, através de sua
entronização a partir da morte de Cruz e da ressurreição. Por isso, Jerusalém se
torna a meta de Jesus, e, por conseguinte, a do discípulo. A fim de que, a
partir da comunidade dos discípulos, a Palavra de Deus – que encontra sua
expressão plena em Jesus – seja anunciada a todas as nações, até os confins do
mundo (habitado), confirmando a profecia isaiana de que “de Jerusalém vem a
Palavra de Deus”.
Os
discípulos se deslocam em direção a Emaús, caminho oposto à Jerusalém. Eles tomam
a direção contrária. Ou seja, assumem andar na contramão do sentido da vida e
da missão de Jesus. Eles não conseguem assumir como meta para si o sentido da
vida de seu mestre. Emaús, significa, portanto, o estado de ânimo do discípulo
e da comunidade que não querem se comprometer com o projeto de Jesus. Outra
leitura possível só confirma o nosso raciocínio, pois o povoado rememora um episódio
marcante para a história de Israel: a vitória do povo judeu, liderado por Judas
Macabeu, que, com seu exército libertou o povo do domínio dos povos pagãos, “Todas
as nações saberão que Israel possui um libertador e um salvador” (1Mc 4,11). Ou
seja, o messias esperado seria aquele que resgataria e salvaria o povo de Israel.
Jesus, ao contrário, frustrou essas expectativas, tornando-se uma grande desilusão
para os discípulos por causa de sua morte.
Os
evangelhos mostram o quanto os discípulos ficam desiludidos frente a ideia da
ressurreição de Jesus, mais do que diante de sua morte. Ora, diante da crença
popular de que o messias não morreria, bastava a morte de um pretenso messias, para
se esperar outro. Se Jesus morreu, então não poderia ser o messias, e todos
estariam errados a seu respeito. Surgiam muitos pretensos messias no tempo de
Jesus (Teudas, Judas, o Galileu) que angariava as massas populares contra os
romanos, e acabavam sempre derrotados. Mas se Jesus ressuscitou, significa que
todos aqueles sonhos de glória, de restauração da realeza davídica de domínio e
de poder desapareceriam. Esta concepção messiânica está também atrelada ao
povoado de Emaús. Os discípulos que seguem para lá outra coisa não fazem que
alimentar estas expectativas, que, no fundo, revelam-se frustradas.
“Enquanto
conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com
eles” (v.15). Aqui, o evangelista confirma aquela imagem de Jesus, pastor ideal
(pertencente ao Quarto Evangelho), que não abandona suas ovelhas. Antes,
caminha com elas. Mas Lucas insiste na dificuldade dos discípulos em reconhecer
o peregrino que caminhava com eles (v.16). Estão impedidos de ver/reconhecer a
Jesus que caminha com eles porque estão ainda com os olhos voltados ao passado e
na direção contrária; não conseguem ver o presente, no qual Jesus está, tampouco
vislumbrar o futuro para o qual o mestre conduz, e de onde Ele estará através
da presença, da vida e do testemunho dos discípulos.
No
entanto, os discípulos seguem na dificuldade de retomarem o caminho proposto.
Diante da pergunta do peregrino acerca do conteúdo da conversa deles durante a
viagem, eles o colocam a par dos últimos acontecimentos ocorridos com Jesus, o
Nazareno. Note-se, eles não abandonam o adjetivo nazareno, o qual aludia a
condição de revolucionário. Ainda se prendem a essa expectativa. Não bastou o
testemunho das mulheres, o que naquela época não tinha valor legal. Eis a
resposta de Jesus diante da incredulidade e da frustração dos discípulos, a
qual soa como reprovação da atitude deles: “Como sois sem inteligência e lentos
para crer em tudo o que os profetas falaram! Será que o Cristo não devia sofrer
tudo isso para entrar na sua glória? (vv.25-26).
O
verbo utilizado por Lucas, “dever/necessidade”, indica a vontade de Deus em relação
ao sofrimento de Cristo. Mas a necessidade deste sofrimento só pode ser compreendido
diante da liberdade de Jesus ao assumi-lo, não como certo e predeterminado, mas
como eventual parte ou consequência de uma vida inteira. Por isso, Jesus lhes
interpreta as escrituras, “E, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicava
aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele”
(v.27). Lucas usa o verbo “interpretar” (Gr. διηρμηνευεν / dihermhenêuesen), verbo
do qual provem o termo técnico hermenêutica, a arte ou a técnica de interpretar
o texto. Jesus não se limita a ler ou narrar lhes os textos das Escrituras, mas
Ele os interpreta. Ou seja, para ler e compreender as Sagradas Escrituras se
necessita lê-la e interpretá-la com o mesmo Espírito que as inspirou, o Amor do
Criador por todas as suas criaturas. E este é o único critério que permite aos discípulos
compreenderem as Escrituras.
Mais
um critério é necessário ao discípulo para compreender o sentido (caminho,
direção) da vida de Jesus. O evangelista recorda a última ceia do Senhor através
do gesto do sentar-se à mesa com os discípulos e partir o pão com (e para) eles:
“Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes
distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus.
Jesus, porém, desapareceu da frente deles” (v.30-31). Os mesmos gestos, a mesma
ação. Lucas é o único evangelista que coloca na boca de Jesus, no momento da
ceia, após as palavras sobre o pão e o vinho, a ordem de iteração “Fazei isto
em memória de mim”. Assim, Jesus atualiza a sua presença através de seu
memorial. Isso faz com que os olhos dos discípulos se abram e possam reconhecê-lo.
Ao
realizar a sua memória diante dos discípulos à mesa, Jesus tornou-se invisível aos
olhos deles. O texto litúrgico diz que Ele desapareceu, termo que não expressa
bem o sentido dado pelo evangelista. O termo utilizado por ele é “ficou
invisível”. Desparecer significa não estar mais presente, alude a uma ausência.
“Ficar invisível” significa permanecer presente sem ser visto; alude a certeza
da presença daquele que não se vê. Esta é a mensagem que o Evangelista quer
transmitir para sua comunidade: Jesus se torna visível todas as vezes em que a
comunidade se reúne para partir o pão.
Somado
à Palavra de Deus reinterpretada por Jesus (à luz de sua vida), o pão repartido se torna critério para experimentar Jesus Ressuscitado. O pão partido (despedaçado) é uma realidade da qual se serve Jesus para expressar
e visibilizar o acontecido com sua vida e história. Assim como o pão foi
partilhado, despedaçado e entregue na última ceia aos seus, aconteceria mais
tarde com a sua vida, doada, espezinhada e violentada na Cruz; mas será o sinal
distintivo através do qual a comunidade poderá fazer memória da sua vida
vencedora e indestrutível. Assimilando seu gesto de entrega-em-amor, a comunidade
poderá fazer o que Ele fez e viver como e o que Ele viveu.
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese
de Botucatu – SP.
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