sábado, 25 de abril de 2020

HOMILIA PARA O III DOMINGO DA PÁSCOA – Lc 24,13-35:



A morte de Jesus causou a dispersão e a confusão do grupo dos discípulos e das mulheres que O seguiam. Nas primeiras horas daquele primeiro dia da semana, elas vão a sua procura onde ele não está, no sepulcro. Lucas conserva os dados comuns a Marcos, Mateus e João, mas transmite a experiência com o ressuscitado a seu modo para a sua comunidade. A liturgia deste Terceiro Domingo da Páscoa nos apresenta o relato conhecido por todos como os discípulos de Emaús. Tomemos o texto.

“Naquele mesmo dia, o primeiro da semana, dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém” (v.13). O evangelista situa-nos ao entorno dos acontecimentos daquele primeiro dia da semana, o dia da ressurreição. Mas demonstra que, ainda, a comunidade não consegue fazer a experiência com o evento da ressurreição, tampouco com o ressuscitado, ao narrar dois do grupo dos discípulos do Senhor, a caminho do povoado de Emaús. Por que seguem para lá?

O projeto teológico de Lucas revela como meta e centro da missão de Jesus, a cidade santa de Jerusalém. Desde o capítulo nono, o evangelista nos narra a subida do Senhor para Jerusalém. Por dez capítulos Lucas vai preparando a chegada de Jesus na cidade santa, pois ali Ele revelará a ação de Deus, através de sua entronização a partir da morte de Cruz e da ressurreição. Por isso, Jerusalém se torna a meta de Jesus, e, por conseguinte, a do discípulo. A fim de que, a partir da comunidade dos discípulos, a Palavra de Deus – que encontra sua expressão plena em Jesus – seja anunciada a todas as nações, até os confins do mundo (habitado), confirmando a profecia isaiana de que “de Jerusalém vem a Palavra de Deus”.

Os discípulos se deslocam em direção a Emaús, caminho oposto à Jerusalém. Eles tomam a direção contrária. Ou seja, assumem andar na contramão do sentido da vida e da missão de Jesus. Eles não conseguem assumir como meta para si o sentido da vida de seu mestre. Emaús, significa, portanto, o estado de ânimo do discípulo e da comunidade que não querem se comprometer com o projeto de Jesus. Outra leitura possível só confirma o nosso raciocínio, pois o povoado rememora um episódio marcante para a história de Israel: a vitória do povo judeu, liderado por Judas Macabeu, que, com seu exército libertou o povo do domínio dos povos pagãos, “Todas as nações saberão que Israel possui um libertador e um salvador” (1Mc 4,11). Ou seja, o messias esperado seria aquele que resgataria e salvaria o povo de Israel. Jesus, ao contrário, frustrou essas expectativas, tornando-se uma grande desilusão para os discípulos por causa de sua morte.

Os evangelhos mostram o quanto os discípulos ficam desiludidos frente a ideia da ressurreição de Jesus, mais do que diante de sua morte. Ora, diante da crença popular de que o messias não morreria, bastava a morte de um pretenso messias, para se esperar outro. Se Jesus morreu, então não poderia ser o messias, e todos estariam errados a seu respeito. Surgiam muitos pretensos messias no tempo de Jesus (Teudas, Judas, o Galileu) que angariava as massas populares contra os romanos, e acabavam sempre derrotados. Mas se Jesus ressuscitou, significa que todos aqueles sonhos de glória, de restauração da realeza davídica de domínio e de poder desapareceriam. Esta concepção messiânica está também atrelada ao povoado de Emaús. Os discípulos que seguem para lá outra coisa não fazem que alimentar estas expectativas, que, no fundo, revelam-se frustradas.

“Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles” (v.15). Aqui, o evangelista confirma aquela imagem de Jesus, pastor ideal (pertencente ao Quarto Evangelho), que não abandona suas ovelhas. Antes, caminha com elas. Mas Lucas insiste na dificuldade dos discípulos em reconhecer o peregrino que caminhava com eles (v.16). Estão impedidos de ver/reconhecer a Jesus que caminha com eles porque estão ainda com os olhos voltados ao passado e na direção contrária; não conseguem ver o presente, no qual Jesus está, tampouco vislumbrar o futuro para o qual o mestre conduz, e de onde Ele estará através da presença, da vida e do testemunho dos discípulos.  

No entanto, os discípulos seguem na dificuldade de retomarem o caminho proposto. Diante da pergunta do peregrino acerca do conteúdo da conversa deles durante a viagem, eles o colocam a par dos últimos acontecimentos ocorridos com Jesus, o Nazareno. Note-se, eles não abandonam o adjetivo nazareno, o qual aludia a condição de revolucionário. Ainda se prendem a essa expectativa. Não bastou o testemunho das mulheres, o que naquela época não tinha valor legal. Eis a resposta de Jesus diante da incredulidade e da frustração dos discípulos, a qual soa como reprovação da atitude deles: “Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória? (vv.25-26).

O verbo utilizado por Lucas, “dever/necessidade”, indica a vontade de Deus em relação ao sofrimento de Cristo. Mas a necessidade deste sofrimento só pode ser compreendido diante da liberdade de Jesus ao assumi-lo, não como certo e predeterminado, mas como eventual parte ou consequência de uma vida inteira. Por isso, Jesus lhes interpreta as escrituras, “E, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele” (v.27). Lucas usa o verbo “interpretar” (Gr. διηρμηνευεν / dihermhenêuesen), verbo do qual provem o termo técnico hermenêutica, a arte ou a técnica de interpretar o texto. Jesus não se limita a ler ou narrar lhes os textos das Escrituras, mas Ele os interpreta. Ou seja, para ler e compreender as Sagradas Escrituras se necessita lê-la e interpretá-la com o mesmo Espírito que as inspirou, o Amor do Criador por todas as suas criaturas. E este é o único critério que permite aos discípulos compreenderem as Escrituras.



Mais um critério é necessário ao discípulo para compreender o sentido (caminho, direção) da vida de Jesus. O evangelista recorda a última ceia do Senhor através do gesto do sentar-se à mesa com os discípulos e partir o pão com (e para) eles: “Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles” (v.30-31). Os mesmos gestos, a mesma ação. Lucas é o único evangelista que coloca na boca de Jesus, no momento da ceia, após as palavras sobre o pão e o vinho, a ordem de iteração “Fazei isto em memória de mim”. Assim, Jesus atualiza a sua presença através de seu memorial. Isso faz com que os olhos dos discípulos se abram e possam reconhecê-lo.

Ao realizar a sua memória diante dos discípulos à mesa, Jesus tornou-se invisível aos olhos deles. O texto litúrgico diz que Ele desapareceu, termo que não expressa bem o sentido dado pelo evangelista. O termo utilizado por ele é “ficou invisível”. Desparecer significa não estar mais presente, alude a uma ausência. “Ficar invisível” significa permanecer presente sem ser visto; alude a certeza da presença daquele que não se vê. Esta é a mensagem que o Evangelista quer transmitir para sua comunidade: Jesus se torna visível todas as vezes em que a comunidade se reúne para partir o pão.

Somado à Palavra de Deus reinterpretada por Jesus (à luz de sua vida), o pão repartido se torna critério para experimentar Jesus Ressuscitado. O pão partido (despedaçado) é uma realidade da qual se serve Jesus para expressar e visibilizar o acontecido com sua vida e história. Assim como o pão foi partilhado, despedaçado e entregue na última ceia aos seus, aconteceria mais tarde com a sua vida, doada, espezinhada e violentada na Cruz; mas será o sinal distintivo através do qual a comunidade poderá fazer memória da sua vida vencedora e indestrutível. Assimilando seu gesto de entrega-em-amor, a comunidade poderá fazer o que Ele fez e viver como e o que Ele viveu.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

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