A
liturgia deste Quarto Domingo do tempo pascal nos apresenta o texto de Jo 10,1-10,
o qual abre a alegoria do pastor exemplar, ou “Belo Pastor”, dos vv.11-18. Através
da mistagogia deste tempo pascal, o fiel é convidado, agora, a “sair dos limites
do sepulcro”, já tendo feito a experiência com o Senhor ressuscitado. O
mistagogo – aqueles que introduzem os fiéis nos mistérios da vida de Jesus, como
é o caso do autor do Quarto Evangelho – trata de fazer sair o leitor-discípulo
do evangelho das imediações do sepulcro vazio para outro lugar: o lugar da
pastagem, do pasto viçoso, que alimenta e sustenta. Faz sair da escravidão da
vida sem sentido (morte) para o lugar da liberdade. É o que o texto evangélico
deste domingo pretende fazer refletir.
Se
faz necessário contextualizar Jo 10, bem como fazer emergir o pano de fundo do
Antigo Testamento inerente a ele. O capítulo décimo do Quarto Evangelho apresenta
a temática do Pastoreio. Este tema era muito presente na vida do povo de Israel.
É importante, primeiramente, saber que o rebanho/ovelha é um símbolo aplicado
ao povo de Israel. Já a imagem do pastor era atribuída ao próprio Deus. Mas, no
decorrer da história do povo, foi sendo atribuída às lideranças do povo, os reis
e sacerdotes, a alcunha de pastores do povo. Mas, a história mostrou que esta
função não desempenhada “segundo o coração de Deus (cf. Ez 34)” pelas
mesmas lideranças.
O
texto, em seu contexto próximo, situa-se imediatamente após o sinal realizado
por Jesus devolvendo a visão ao cego de nascença. O Sinal em Jo 9 consiste na
revelação de Jesus como sendo o enviado (hbr. siloé) para trazer a Luz
para o mundo. O cego de nascença é, ao mesmo tempo, instrumento através do qual
Jesus revela a Glória de Deus e metáfora para as lideranças do povo, as quais
estavam cegas, recusando conscientemente ver a Luz de Deus que se manifestava
em Jesus de Nazaré, e, cegadas, igualmente pelo poder, pelos privilégios e pela
mentalidade mundana. Tal é corroborado pela postura destas lideranças judaicas.
Ao invés de cuidar, acolher, promover-lhes a vida e a dignidade, acabavam
expulsando de seu meio a gente simples do povo; aqueles que lhes representavam
alguma ameaça (entre estes, os seguidores do Nazareno), ou, porque,
simplesmente viviam fora de seus padrões. Sabendo disso, Jesus vai ao encontro
do ex-cego (Jo 9,35-37).
O
contexto imediato do texto – onde a cena encontra-se situada – é o da festa da
Dedicação. É verdade que há uma mudança de cenário e de festa religiosa. O
evangelista situa Jesus nos arredores do templo. Essa festa foi estabelecida
por Judas Macabeu em 165 a.C, para celebrar a vitória dos macabeus sobre a
dominação grega e a nova dedicação do templo e do altar, já que esse tinha sido
profanado pelos gregos (cf. 1 Mc 4,36-59). Acontecia em Jerusalém e durava uma
semana; o texto profético utilizado na liturgia dessa festa era o capítulo 34
de Ezequiel, onde o profeta denuncia os maus pastores de Israel, os quais apascentavam
a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2). De acordo
com o profeta, Deus tomaria a iniciativa de destituir os maus pastores e cuidaria,
ele mesmo, do rebanho (cf. Ez 34,11).
O
Jesus joanino começa, dizendo: “Em verdade, em verdade vos digo, quem não
entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e
assaltante. Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas” (vv.1-2). João inicia
o discurso com um solene “Em verdade, em verdade”, literalmente, “amém, amém”.
O autor quer mostrar ao discípulo leitor do evangelho que as palavras que virão
a seguir contém um ensinamento importante para os ouvintes-leitores, e, que,
por isso, devem estar atentos. A formula literária “Amém, amém (em verdade,
em verdade)” significa, “o que será dito é verdadeiro, é seguro; te digo
com firmeza”. Mas o ensinamento é direcionado às lideranças judaicas, os
fariseus. Responsáveis pela exclusão das pessoas simples do povo dos ambientes judaicos,
bem como daqueles que não aderem ao seu modo de vida e de pensar. Qual é o
conteúdo desta declaração? “Quem não entra no redil das ovelhas pela porta,
mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante. Quem entra pela porta é o
pastor das ovelhas”.
O
evangelista usa o termo recinto – e não redil, como a tradução litúrgica sugere.
Com o termo recinto, ele se refere ao recinto do átrio do templo. Ora, como dissemos
acima, Jesus está nos arredores do templo ensinando. A alegoria serve das
categorias pastor/ovelha e rebanho/redil para ilustrar as relações entre a
instituição religiosa e o povo. O templo, bem como todas as instituições
religiosas do judaísmo serão superadas e substituídas pelo dom da vida Jesus,
que será o novo lugar e modo através dos quais o homem poderá se relacionar com
Deus
Jesus
é muito claro: quem não entra pela porta, mas por outro lugar é ladrão e
assaltante. Ele está falando dos chefes do povo, os fariseus, que usurparam o
lugar de Deus, enquanto único e verdadeiro Pastor do povo. Mas fala também em
relação ao templo, sede de ladrões e assaltantes, uma vez que os chefes do povo
usavam da instituição religiosa e da religiosidade para subjugar e espoliar as
pessoas. Fica claro que o redil/rebanho de que Jesus fala não se trata do
templo e das instituições religiosas do judaísmo de seu tempo. A porta e o
redil transcendem e superam essas instituições. É evidente que Jesus tem como
pano de fundo para sua fala, as palavras do profeta Ezequiel, no capítulo 34,
através das quais ele deixava bem clara a insatisfação de Deus com os que foram
constituídos pastores para conduzir o povo, uma vez que pensavam unicamente em
si mesmos e no próprio bem-estar.
Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. A esse o
porteiro abre, e as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e
as conduz para fora (v.2-3). Por
que as ovelhas escutam sua voz? Elas reconhecem e encontram na voz de Jesus a
resposta para os seus anseios de vida que toda pessoa traz dentro de si. É
bonito notar o nível da relação que Jesus estabelece com os seus: não é uma
relação massificante. Para Ele ninguém é um número, senão uma pessoa bem
concreta e real. Jesus estabelece com aqueles que fazem uma experiencia com Ele,
uma relação pessoal e individual. Tal nível de relação faz com que a
ovelha-discípulo seja “conduzida para fora”. O verbo utilizado pelo
evangelista é exagei (gr. εξαγει, levar para fora, sair) o mesmo usado
no livro do Êxodo, para indicar a libertação da terra da escravidão para a
terra da liberdade e da vida nova.
E, depois de fazer sair todas as que são suas, caminha
à sua frente, e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz (v.4). Jesus, depois de fazer
sair suas ovelhas do interno da instituição religiosa, não as aprisiona em
outro recinto, mas as conduz para a plena liberdade. No v. 5, “Mas não
seguem um estranho, antes fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos”,
Jesus não faz uma constatação. Na verdade, ele dá um conselho. É necessário
fugir daqueles que se apresentam como pretensos pastores, que, como se verá
mais adiante, serão lobos disfarçados. Curioso: Jesus, conhecedor da realidade
de seu tempo e da sua cultura observa que as ovelhas não escutam a voz de um
estranho, e, ainda, fogem deste. O Jesus joanino afirma que as ovelhas só
escutam e reconhecem a voz Daquele que as ama; e não daqueles que desfrutam e
usufruem de suas vidas. Elas deverão reconhecer na voz dos falsos pastores a ânsia
pelo poder e pelo domínio.
Continua
o versículo 6, Jesus contou-lhes essa parábola, mas eles não entenderam o
que ele queria dizer. Qual o motivo da incompreensão dos fariseus? Isso se
deve ao fato de não pertencerem ao rebanho de Jesus. Antes, fazem-lhe uma
obstinada e firme oposição. Angariam, no entanto, seus próprios rebanhos; seu
próprio gado, para aproveitarem-se de sua lã e de seu couro.
No
v.7, “Então Jesus continuou: “Em verdade, em verdade vos digo, eu sou a
porta das ovelhas”. O evangelista usa uma formula de revelação, “Eu sou”,
que alude à revelação de Deus no Êxodo, e ao seu nome divino “YHWH”, que, na
intenção do autor do Quarto Evangelho, pretende revelar à sua comunidade a
condição divina que se revela em Jesus. Continua o tom solene, o qual pretende
revelar algo importante aos ouvintes-leitores: “Eu sou a porta das ovelhas (gr.
εγω ειμι η θυρα των προβατων)”.
“Todos aqueles que vieram antes de mim são ladrões e
assaltantes, mas as ovelhas não os escutaram (v.8). Jesus direciona a acusação “ladrões e
assaltantes” às lideranças do povo, os fariseus e os sacerdotes, que exerciam o
domínio sobre o povo, tomando o lugar de Deus, verdadeiro pastor; e de tê-lo
submetido através da violência. Mas, constata Jesus, as ovelhas não os escutaram.
O povo havia sido submetido, é claro, pela violência e pelo medo, e não por
escolha própria e livre.
“Eu sou a porta. Quem entrar por mim será salvo;
entrará e sairá e encontrará pastagem (v.9).
Jesus declara-se, novamente, como sendo a porta através da qual se adentra
e se pode tomar parte do novo rebanho de Deus. O evangelista usa dois verbos, “entrar”
e “sair” para enfatizar que Jesus não encerra – encarcera – suas ovelhas, mas
as conduz para a liberdade. A porta, que é Jesus, não se encontra fechada. O
fechamento, ao contrário, se deve a sede de domínio e de poder dos líderes religiosos
do judaísmo da época. Ora, seguindo a Jesus, se encontra plenitude e liberdade,
pode “entrar e sair”.
Ao
entrar e sair, a ovelha-discípula de Jesus encontra pastagem. Qualidade e
liberdade de vida. A esta altura, o evangelista realiza um jogo com a língua
grega através do termo pastagem, nomén (gr.νομην), tem o mesmo radical
que Lei, (Nômos / νόμος). Com Jesus não se encontra uma Lei a seguir, mas uma
pastagem, isto é, um alimento que dá vida.
No
v.10, “O ladrão só vem para roubar, matar e destruir”, Jesus reinterpreta
a profecia de Ezequiel 22,27, “As autoridades são como lobos que despedaçam
os animais que mataram. Matam para enriquecer”, identificando esses pastores
com os lobos que só vem para roubar, matar e destruir”. Nesse sentido,
as verdadeiras vítimas do culto do templo são as pessoas, de acordo com a
denúncia feita por Jesus.
Jesus
declara, enfim: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (v.10).
Trata-se de um convite de Jesus às pessoas para que tenham vida plena, ou seja,
a emancipar-se dessas relações de poder e domínio; a libertarem-se desses
pastores que impõem e obrigam, e acolherem o dom da vida plena e inextinguível
que Jesus oferece, incondicionalmente, a todos aqueles que escutam sua voz.
Nesta
alegoria do Bom Pastor, o evangelista opera um contraste entre as lideranças do
povo, que agiam na contramão do projeto de Deus, e Jesus, que age segundo o
coração (de pastor) de Deus, mostrando-se exemplar; que realiza
aquilo que as lideranças do povo deveriam fazer, e não faziam: apontar e conduzir
para a vida que Deus dá, agora, através do dom da vida de Jesus de Nazaré, o
pastor ideal.
Nesse sentido, o papel do verdadeiro pastor, de acordo com o
evangelho joanino, não consistirá em carregar ninguém ao colo – símbolo da
dependência, domínio, paternalismos infantilizadores, que não geram vida
nem fazem crescer – mas apontar caminhos, conduzir (ir com) e caminhar
junto (ou em meio) aos seus.
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese
de Botucatu – SP.
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