sábado, 16 de maio de 2020

HOMILIA PARA O VI DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 14,15-21:




No tempo pascal, o discípulo (leitor-ouvinte) de Jesus é recolocado na pedagogia do Senhor ressuscitado. Neste quinto domingo do tempo pascal, a liturgia nos oferece como texto para nossa meditação, a continuidade do capítulo catorze do Quarto Evangelho, dos versículos 15 à 21.

O capítulo catorze encontra-se no segundo bloco do Evangelho de João, o Livro da Glória. O discípulo que trilhou os passos no seguimento à Jesus durante a primeira parte do evangelho joanino, contemplando os sinais que Ele realizava, os quais atestavam visibilizava a ação de Deus na história através de seu Filho, e, tendo feito a opção pela pessoa de Jesus, pode tomar parte da hora da glória de Jesus, que é a revelação da presença de Deus ao mundo a partir do crucificado.

Antes, porém, o discípulo é convidado a tomar parte do ensinamento de Jesus acerca do dom / entrega de si e da vida, e do mandamento do amor. Estes ensinamentos soam como que um discurso de despedida da parte de Jesus. O bloco literário que começou no capítulo catorze se estende até o dezesseis, e é conhecido como o “Testamento” de Jesus. Ora, o testamento consiste, em essência, naquele conjunto de bens e pertences mais preciosos que alguém pode deixar para quem se ama. Assim, o evangelista João concentra neste bloco de 14 – 16 o conjunto de ensinamentos importantes de Jesus: a explicitação do dom da própria vida e o mandamento do amor. Mas é verdade que Ele não deixa de alertar seus discípulos sobre as dificuldades de se viver este testamento, este modo de ser e de existir no mundo amparada pela força (dinamismo) do Espírito do Ressuscitado.

“Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (v.15), declara Jesus. Pela primeira vez no evangelho joanino, Ele toca no tema do amor, agora relacionado a si mesmo, o qual depois deverá se manifestar no amor aos outros. Ora, o gesto realizado por Jesus no lava-pés (Jo 13), tornou os discípulos capazes de assimilarem o seu amor, e de serem capazes de amar. O mandamento do qual ele se refere é único: “eu vos dou um novo mandamento: “que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei”. É o mandamento do amor. Ele é novo na medida que supera os demais. Novidade significa, aqui, últimidade, perfeição, meta. Interessante, o mandamento que Jesus se refere, ele o considera como seu. Não são os de Moisés.

“E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará um outro Defensor” (v.16). O evangelista João usa um termo de difícil tradução. No original grego temos o termo Parakletos (gr. Παρακλητον), que tentou ser traduzida por consolador, não exprimindo ainda a profundidade da intenção e da tradução. É preferível a transliteração do termo. Parakletos significa “aquele que foi chamado em socorro”, “em defesa”; talvez a tradução mais acertada seria “socorredor”. Este termo é exclusivo do Quarto Evangelho. Atenção: Parakletos não é o nome do Espírito de Jesus, mas a sua função, isto é, aquilo que ele realiza: a ação de socorrer.

Jesus dá uma indicação importante e preciosa: “para que permaneça sempre convosco” (16b). O Espírito de Jesus, doado por Ele para socorrer os seus não é um dom passageiro ou temporário. Tampouco vem somente nos momentos de desespero ou de necessidade, quando invocado. Mas a Sua presença é permanente na comunidade. O amor de Deus não vai ao encontro do individuo e da comunidade quando estes necessitam, somente, mas está já ali. Os precede!

Jesus o chama de “Espírito da Verdade (gr. το πνευμα της αληθειας / tô pneuma thes aletheias) (v.17)”. Este Espírito faz conhecer a verdade sobre Deus, e sobre quem é Deus. Mas não se deve pensar na “verdade” como se ela fosse um conceito abstrato como a dos filósofos. Essa não é função do Espírito de Jesus, nem faz parte da intenção do autor do Quarto Evangelho. Este Espírito da Verdade revela quem é Deus: é amor que se doa e se mostra visível à humanidade. Um amor que está sempre em socorro e a favor do homem. Este é o Espírito da Verdade, que é o Espírito mesmo de Jesus, que revela o Pai e seu amor.

Todavia, diz Jesus, “o mundo não é capaz de receber, porque não o vê nem o conhece” (v.17b). O termo “mundo”, utilizado muitas vezes no Quarto Evangelho, se refere ao ambiente hostil e antagonista (opositor) à Jesus e suas Palavras. Nem Ele, nem o evangelista querem “demonizar” o mundo, como uma realidade maléfica e imperfeita. Mas alude aos sistemas injustos, e, em particular, ao poder religioso da época, o “mundo” das autoridades judaicas, que opõem-se firme e decididamente a Jesus. Em outras palavras, quando João se refere fala de “mundo” em caráter negativo, ele está se referindo à realidade e à situação hostil e opositora que Jesus e o discípulo podem (e vão) encontrar. Mas que devem ser iluminadas e convertidas a fim de que se reorientem ao fim último e definitivo que é o horizonte mesmo de Deus. Ora, a missão discípulo de Jesus, animado pelo Seu Espírito, se dá no mundo, na realidade.

Por que este “mundo” não pode receber o Espírito da Verdade? Porque, precisamente, o Espírito de Jesus revela o amor do Pai, que está sempre a favor do homem. O “mundo”, representado pelas instituições religiosas do tempo de Jesus e todo o sistema hostil à sua pessoa, pensam somente de acordo com suas próprias conveniências. Sustentam o bem e mal de acordo com suas próprias conveniências, e, por isso, não podem recebê-lo. Jesus insiste nesta permanência do Espírito da Verdade: “Vós o conheceis, porque ele permanece junto de vós e estará dentro de vós” (v.17c). Como o Espírito desceu sobre Jesus e permaneceu Nele, assim o Espírito de Jesus permanecerá na Comunidade.

“Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós” (v.18). O órfão, no ambiente bíblico, é aquele que não goza de nenhuma proteção; que não tem ninguém que lhe possa vir aos cuidados. Jesus assegura que isso não acontecerá, reafirmando a sua presença em meio a comunidade. “Eu virei a vós” se torna, portanto, a segurança para o discípulo e para a discípula de que Sua morte não será uma ausência, mas presença; não será distanciamento, e, sim, proximidade.

“Pouco tempo ainda, e o mundo não mais me verá, mas vós me vereis, porque eu vivo e vós vivereis” (v.19). Jesus não está falando da capacidade biológica / física do sentido da visão, mas da capacidade da percepção, que emerge da profundidade do coração do discípulo. O “ver” bíblico é, na verdade, a oportunidade e a capacidade que o discípulo tem de fazer a experiência com Deus.

Na afirmação “eu vivo e vós vivereis”, o evangelista usa um termo que se refere à vida que se vive para sempre: a vida inextinguível, do âmbito de Deus. Não se trata de uma vida biológica que precisa ser nutrida para crescer. Trata-se de outra vida, a interior, que para crescer necessita ser nutrida. Nesse sentido, aquele que reorienta a sua própria vida, dando-a como nutrimento aos outros, coloca-se em sintonia com Aquele que é o Vivente por excelência.

Naquele dia sabereis que eu estou no meu Pai e vós em mim e eu em vós” (v.20). A quê dia Jesus se refere? Ao de sua morte. Para o catequista bíblico, Jesus antecipa aos seus o dom do Espírito no momento da entrega de sua vida nas mãos do Pai. O evangelista antecipa o que se desenvolverá nos capítulos seguintes acerca da comunhão plena entre Jesus e o Pai e Jesus e o discípulo e a comunidade. O que pretende dizer o autor do Quarto Evangelho para a sua comunidade? Na comunidade dos fiéis, Deus assume seu rosto humano, e, da sua parte, o homem e a comunidade assumem o rosto divino. Fazendo existir uma comunhão entre Deus e o homem. É um Deus que deseja ser acolhido na vida do indivíduo, de se fundir com ele, dilatando a sua capacidade de amar e tornando a mesma comunidade naquele espaço onde todos podem fazer aquela experiência de amor, de misericórdia e compaixão. A presença de Jesus no Pai e do Pai em Jesus se realiza também na vida dos discípulos, eliminando, assim, toda distância entre o humano e o divino. A comunidade cristã aberta ao Espírito da Verdade é, portanto, morada de Jesus e do Pai, tornando-se profeta capaz de expressar com sua vida aos fiéis, a verdadeira presença do Senhor.

“Quem acolheu os meus mandamentos e os observa, esse me ama. Ora, quem me ama, será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele” (v. 21). Literalmente, o evangelista escreve “Quem tem os meus mandamentos”. Ora, os mandamentos de Jesus não são as imposições da lei antiga, ou normas externas ao homem. Mas é o Seu dinamismo vital interior, que, quando se manifestam liberam toda a sua força. A observância do mandamento de Jesus, o amor, não diminui o homem, antes o potencializa para a vida. É o que realiza o Espírito da Verdade, Espírito de Jesus, no fiel. A este Espírito que inscreve o amor – a grafia, a vida – de Cristo em nós, chamamos Graça.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu / SP.

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