sábado, 27 de fevereiro de 2021

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA QUARESMA - Mc 9,2-10 (Ano B):


O evangelista Marcos, na narrativa da tentação de Jesus no deserto (Mc 1,12-15), não teve a intenção de apresentar um momento estanque na vida do Cristo, mas dizer para a sua comunidade e seus leitores, que toda a existência de Jesus foi perpassada pela tentação, no deserto. No percurso da catequese evangélica, o autor mostrará quem se identificará com esse papel, Satanás (opositor). Após Jesus anunciar pela primeira vez a sua ida à Jerusalém, não para conquistar o poder, mas para ser morto pelas estruturas de poder, eis que emerge uma reação violenta de um dos seus, Simão Pedro (sobrenome negativo, que alude à sua dureza de coração; um cabeça dura), o qual pretende corrigir a Jesus (cf. Mc 8,28). Por sua vez, o Cristo se volta para o discípulo e o chama de Satanás, obstáculo, pedra de tropeço para o prosseguimento de Sua missão. Pedro não é descartado, mas convidado a se colocar novamente na condição de seguidor, recebendo de Jesus o convite de vir, imediatamente, atrás Dele. Aqui, se identifica, portanto, quem poderá ser o tentador e adversário de Jesus, que poderá sempre se interpor entre o projeto do Pai e a missão do anúncio do Reino. Após o confronto com os discípulos sobre o modo através do qual Jesus deverá viver seu messianismo, e dificuldade patente deles aceitarem que o Messias possa morrer, Ele lhes mostrará qual será a condição do homem que passa pela morte. É o texto que este segundo domingo da quaresma propõe para meditação. O episódio conhecido como a “transfiguração” de Jesus, em Mc 9,2-10.
   

“Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha. E transfigurou-se diante deles” (v.2). Marcos inicia a cena com um indicativo temporal (omitido pelo texto litúrgico): “seis dias depois”. Com essa determinação temporal, o evangelista pretende aludir ao sexto dia da criação, no qual Deus criou o homem. Ora, parece que o autor enseje revelar para sua comunidade qual seria o homem criado segundo o querer divino: o homem que não sucumbirá com a morte, mas que através dela iniciará uma nova existência.

O evangelista insiste no caráter privado do ensinamento, destinado somente aos três discípulos. Eles não seriam mais privilegiados que os outros que não subiram ao monte. Ao contrário, seriam, na verdade, os mais necessitados de uma profunda correção da parte de Jesus e de uma verdadeira conversão. A cada um deles, por exemplo, Jesus adiciona um sobrenome: a Simão, o complementa com Pedro – cabeça e coração endurecidos, a ponto de obstaculizar o projeto de Deus em Jesus; a Tiago e João, apelida-os de Boanerghes, no aramaico (lit. “filhos do trovão), identificando neles a personalidade e o temperamento explosivo. Estes dois tratarão, depois, de dividir até mesmo o grupo dos Doze com as perguntas sobre a importância de cada um e suas pretensões pessoais.

O evangelista dá a localização da cena. Não por interesse geográfico, mas por necessidade teológica. Talvez Marcos pense no monte Hermon (ao norte de Cesareia de Filipe), mas isso é irrelevante. Na Bíblia a montanha é o lugar da manifestação de Deus e de sua vontade; o lugar do encontro com ele: Abraão no monte Moriá (Gn 22), Moisés no monte Sinai ou Horeb (Ex 19; Dt 5,10-12), Elias no Carmelo (1Rs 18,20-40) e no Horeb (1Rs 19), o Templo no monte Sião. É, portanto, o lugar da condição divina.

Ali, Jesus foi transfigurado diante deles. A palavra grega para esta ação é metemorphote (gr. μετεμορφώθη). Ele trata de revelar aos discípulos a sua condição glorificada. É um modo de Jesus ensinar os três, e, por sua vez, Marcos transmitir um ensinamento para a sua comunidade: Jesus está indicando a condição do homem que passou pela morte. Esta, não destrói a condição humana, mas a torna permeada da potência da vida divina. Por isso, o evangelista ilustra o fato servindo-se das vestes. Elas ficaram tão brancas e brilhantes, que ninguém conseguiria alvejar.

As vestes embranquecidas de tão brilhantes, são, na literatura apocalíptica da Bíblia, os símbolos da intervenção de Deus na história (Dn 2,34.45; Lc 24,44). Marcos se serve destes elementos do Antigo Testamento (luminosidade, nuvem e vestes brancas) para ensinar que a cena da transfiguração apresenta Jesus na condição do ressuscitado (Mc 16,12), e, portanto, divina: as vestes brancas e resplandecentes são um sinal do mundo divino, um sinal de alegria e vitória. Um sinal de vida indestrutível. A informação que o evangelista oferece de que nenhuma lavadeira sobre a terra seria capaz de deixar as vestes daquele modo, serve como admoestação para o fato de que esta condição transfigurada não é fruto de um esforço humano que o projete para esta condição, mas é a força divina que realiza isso, e que é comunicada ao homem.

No v.4, Marcos narra que, ao lado de Jesus aparecem Moisés e Elias a conversar com Ele. Os dois personagens do Antigo Testamento aludem à Lei (Moisés) e à Profecia (Elias). Mas Marcos os coloca em diálogo com Jesus, ficando os discípulos de fora. É interessante como o autor constrói a cena: ambas personagens importantes do AT aparecem, uma de cada lado de Jesus, ficando Ele ao centro da cena. Ou seja, numa visão panorâmica, que é a que os discípulos têm, Moisés viria primeiro, em segundo Jesus, e, por fim, Elias. Isso é muito importante, pois, na tradição oriental, aquele que vem em segundo lugar, e, ocupa, nesse sentido o centro, é aquele que merecerá todo o destaque e importância. O autor tem a intenção de mostrar para a sua comunidade que Moisés (Lei e líderança) e Elias (toda a profecia) convergem para Jesus. Ou seja, que Ele cumpre todas as expectativas suscitadas pelas Escrituras (na Lei e nos profetas). Mas, tem, ainda, a finalidade de mostrar que Ele é o enviado definitivo e esperado para os últimos tempos.

Mas os discípulos não entendem, e, equivocam-se na leitura e interpretação da cena. Pedro, como porta-voz deles toma a palavra, e propõe levantar ali três tendas. Aqui reside a tentação sofrida pelo discípulo, o qual oferece resistência diante do projeto de Deus a ser realizado por Jesus. A dificuldade em aceitar o caminho proposto pelo Cristo. Simão-Pedro, em sua fala, subverte a ordem da cena, ao pretender armar as tendas: menciona Jesus, em seguida Moisés, colocando-o no centro (lugar de importância), e Elias. Ele e os outros dois discípulos preferem o caminho de Moisés, que é o da Lei e da liderança através do poder e da dominação, ao mesmo tempo que aderem ao caminho encolerizado da personalidade de Elias. Recusam, assim, a Jesus como o enviado de Deus, bem como o seu projeto e caminho. Não é por menos que Marcos coloque na boca de Pedro o mesmo título com o qual Judas, o traidor, se dirigirá a Jesus, “Rabi”. Simão, uma vez mais, está exercendo o papel de tentador e adversário de Jesus.

Querem um Messias que siga as tendências das expectativas e das lideranças antigas; um guerreiro, nacionalista, davidita (pronto para restaurar a antiga dinastia de Davi); alguém que venha com feitos extraordinários, com poder, inclusive para dominar e submeter. Por isso, a indicação de Marcos acerca das tendas, pois elas aludem à festa das cabanas, que relembra a saída do povo da escravidão egípcia e a sua permanência no deserto sob a guia de Moisés, habitando em cabanas improvisadas. Com o tempo, esta festa foi ganhando os coloridos da expectativa messiânica segundo as mesmas características de Moisés. Este é o imaginário que permeia a cabeça de Pedro, e que embasa as suas convicções e a de seus companheiros. Eles ainda não conseguem se transfigurar. E, aqui, para eles, a transfiguração seria a mudança da mentalidade. A conversão; a adesão a pessoa de Jesus e ao seu modo de viver, agir e pensar.

Então, de uma nuvem que descia sobre eles e os encobria, se escuta uma voz (v.7): “Este é o meu Filho amado”. A mesma voz que havia rasgado o céu na narrativa do Batismo. O amado significa “o herdeiro”, aquele que carrega a plenitude da identidade do seu pai. “Nele está a minha totalidade”. A transfiguração, como foi dito acima, acena para uma resposta acerca do mistério da vida de Jesus, e acerca de sua identidade. Só que esta identidade não aparece desde fora, mas a partir de dentro do próprio Cristo. O Pai mostra para os discípulos (e para nós) a verdadeira identidade do Filho, a partir de sua interioridade, ou seja, a verdadeira essência e natureza de Jesus, e, consequentemente, sua missão.

Aqui emerge a mensagem central desta narrativa acerca de Jesus. O seu caminho de vide e fidelidade ao projeto do Pai, ainda que marcado pela morte não é um resignar-se submisso à uma fatalidade histórica; não é fracasso de um projeto, mas revelação plena de sua verdadeira identidade. Ele aparecerá como Filho fiel, que está num relacionamento único com Deus. Contudo, esta revelação acerca de Jesus encaminha o discípulo para a transfiguração (conversão) pessoal. Mas como se dá a transfiguração do discípulo de Jesus?

Através da ordem que o Pai dá: “escutai-O!”. O imperativo “escutai-o”, significa acolher a Palavra de Jesus e seu caminho de Cruz, através do discipulado e do seguimento. Somente mediante a escuta desta palavra (da vida, pessoa e ensino de Jesus) e do seguimento, o discípulo vai sendo transfigurado. Não é a Moisés ou a Elias que o discípulo deverá dar ouvidos, mas a Jesus. Pois os ensinamentos de ambas as personagens foram sendo filtradas e reiterpretadas pela vida e pelo ensinamento de Jesus. Por isso, a intervenção da voz divina encontra-se no imperativo: “Escutai-O”. Terminada a fala divina, os discípulos veem somente a Jesus. Desaparecem as seguranças deles representadas pelas duas personagens da tradição. Agora eles só têm diante deles a Jesus, a quem referenciar a vida.

Na medida em que vão descobrindo a novidade e identidade de Jesus, vão, então, reconhecendo-se desde dentro, e poderão dizer-se, com sinceridade que tipo de discípulos de Jesus são, e se realmente encontram-se no caminho (também perpassado pela cruz), em vista de uma vida ressuscitada.

Jesus, ao final da narrativa dá uma ordem. Os discípulos não devem contar a ninguém a experiência vivida ali, até que o Filho do homem tenha ressuscitado dos mortos. Somente a luz da ressurreição é que pode iluminar a consciência dos discípulos e fazê-los entender quem é Jesus. O autor, ao apresentar a Jesus como Filho de Deus, propõe a imagem do Filho do Homem, que deve descer do monte. O lugar definitivo de Deus não é alta montanha, mas sim onde se encontra a humanidade. É importante descer da montanha com Ele e assumir a mesma fidelidade ao projeto do Pai, ainda que este seja perpassado pelo risco de morrer como e com Ele. A ordem dada por Jesus pode ser compreendida da seguinte maneira: “não digam ou espalhem nada que seja contrário ou que possa distorcer o sentido da vida que escolhi viver; não digam nada que induzam as pessoas a caírem numa ilusória realidade de fé”. Somente após a sua ressurreição dentre os mortos é que se poderá falar Dele como Filho de Deus. Por isso, a transfiguração se torna uma antecipação do que acontecerá a Jesus, e do que a sua inteira vida (paixão, morte e ressurreição) significará para os discípulos, a ponto de não caírem na ilusão de um seguimento desfigurado da verdadeira vida assumida pelo Cristo.

A transfiguração plena do discípulo é um processo que vai sendo vivido a cada momento em que ele se dispõe a escutar (e seguir) o Filho amado, nosso irmão. A Sua vida foi uma intensa e fiel escuta da Palavra de seu Pai. Só mediante esta escuta Jesus pode ser transfigurado pelo Pai. Porque decidiu-se firmemente a vive-la. A transfiguração de Jesus é um convite ao discípulo para que este também vá alcançando sua constante transfiguração; sua conversão; aquela mudança de caminho, sim. Mas, principal e essencialmente, a mudança do coração e da mentalidade; a mudança daquelas concepções e seguranças antigas, para a nova mentalidade que o Evangelho da vida de Jesus propõe: uma vida transfigurada.

O horizonte da narrativa deve fundir-se com o da comunidade, a fim de se atualizar sempre o texto bíblico. O evangelista destina à sua catequese para a sua comunidade, a fim de alerta-la para o fato de que esta tentação avança, com o tempo, ao interno da comunidade cristã. A comunidade de Marcos, inserida na realidade dos anos 65-70, em Roma, sofre com a perseguição do Império. Pedro, no texto bíblico, verbaliza a intenção de permanecer naquela situação porque apresenta traços do medo. Ela sente, como Pedro e os dois irmãos a mesma tentação: ficar acomodados na “visão beatífica”, por assim dizer. Para os cristãos de Marcos, armar as tendas e fixar-se no lugar, poderia significar a alienação da vida mediante uma fé descomprometida com a realidade; a mentalidade de reduzir a fé e a vida cristã a uma contemplação mística do encontro com Cristo. Contudo, o texto não para na comunidade de Marcos, mas chega até as futuras gerações de discípulos. Por isso, o alerta acerca destas tentações destina-se aos discípulos e às comunidades de todos os tempos e lugares.

Como nos encontramos, em transfiguração ou em desfiguração? O que em nós precisa ser transfigurado? Temos exercitado a escuta da Palavra de Deus, por meio de Jesus? Temos tomado consciência de que “escutar” o Filho é o caminho que alimenta e transfigura o nosso seguimento e discipulado? De quais tentações as nossas comunidades devem ser transfiguradas (comodismo, fixismos, tradicionalismos, descompromisso, alienação, uma fé (mistificante e mificante) desencarnada da realidade)? A vida transfigurada só pode ser vivida quando assumido o caminho da escuta (conhecimento), do discipulado e do seguimento a Jesus. Só assim poderá o discípulo responder sobre as verdades acerca de si. Só assim poderá deixar-se transfigurar.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

REFLEXÃO PARA O I DOMINGO DA QUARESMA (Ano B) - Mc 1,12-15:


 

“O Espírito levou Jesus para o deserto” (v.12). Assim começamos o itinerário quaresmal com o primeiro domingo da quaresma, onde meditaremos em nossa liturgia estes versículos introdutórios do primeiro capítulo do Evangelho de Marcos, em 1,12-15. O mesmo Espírito já tinha investido Jesus para a missão, conforme vemos na cena narrada anteriormente, às margens do Jordão. Infelizmente a tradução litúrgica omite o conectivo adverbial que liga o texto do batismo com a narrativa que se segue.

O Espírito é aquele dinamismo de vida e de amor existente entre o Pai e o Filho. E a resposta de Jesus ao amor e a vida do Pai é uma entrega de amor em favor da humanidade inteira, isto é, inserindo-a no horizonte de amor e de vida que ambos comungam entre si. O que o Espírito faz em relação à Jesus? Marcos indica com um verbo muito forte que Ele, literalmente, “impulsionou (empurrou - jogou) Jesus para o deserto”. O verbo utilizado pelo evangelista é ekballo (gr. ἐκβάλλω). O Espírito O insere no mesmo caminho que marcou a vida de seu povo e dos profetas. O deserto, na tradição bíblica, recorda a saída dos hebreus do Egito rumo à terra prometida. Um caminho de libertação.

Ora, o catequista quer ensinar para a sua comunidade que Jesus inicia um caminho de libertação, sendo este, fruto do Espírito. Uma vez que, para Marcos, Jesus é o novo Josué que, às margens do Jordão, último limite para que o povo atravessasse e conquistasse a terra prometida, inicia um novo êxodo para uma nova terra de liberdade. Liberdade (libertação) e Espírito encontram-se unidos na prática de Jesus. A práxis de Jesus, pelo Espírito, gera vida e libertação.  

Marcos informa que “E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e ali foi tentado por Satanás” (v.13). Na teologia bíblica, o número quarenta é simbólico. O evangelista não pretende fazer uma cronologia da vida de Jesus. Por isso, o número não significa um período exato (estanque) na vida do Cristo, nem a quantidade, mas indica a totalidade de sua vida. A simbologia que envolve este número significa, para a cultura da época, o tempo de uma geração inteira. O autor quer chamar a atenção para o fato de que Jesus não ficou somente quarenta dias no deserto e depois saiu, mas que sua vida inteira foi vivida dessa maneira.

O evangelista informa que, ali, no deserto, Jesus foi tentado por Satanás. Marcos é o evangelho mais antigo, e é curioso que ele não apresente as tentações, tampouco o número delas. Ele não jejua e não reza. O verbo “tentar” (gr. πειράζω / peiráso), é importante. Qual seria a tentação sofrida por Jesus? As tentações percorrerão a totalidade de sua vida, culminando no último momento de sua existência, quando os chefes do povo o colocarão à prova, provocando-o a manifestar seu poder em meio ao sofrimento, descendo da cruz.

A tentação, portanto, consistirá na compreensão e no modo através do qual Jesus se revelará como Filho de Deus; defrontar-se e confrontar-se com esse questionamento: em que consiste ser Filho de Deus. Será através do caminho do poder, do prestígio, ou da fama? Na perspectiva de Marcos, não. Será através da passagem pelo deserto, que Jesus começará a compreender o caminho de seu messianismo. Lá, como aconteceu a todos os filhos de Israel. Jesus é tentado a partir do modo, através do qual viverá o seu messianismo. Por isso, o leitor deverá ter em mente o texto de Dt 8, onde YHWH declara que fez seu povo caminhar no deserto para saber se ele seria capaz de obedecer à sua Palavra e ser considerado seus filhos.

Quem é este Satanás? É uma figura literária. Satanás não se trata de uma entidade, mas de uma função/atitude. É a ação de se colocar e agir contrário; realizar oposição ao projeto de Deus. Dando um salto na narrativa do evangelho marcano, essa função será identificada em Simão Pedro, quando este se colocar contrário ao projeto de Jesus de subir para Jerusalém realizar até o fim a sua missão, sendo morto pelas autoridades de seu povo. Na concepção de Pedro e dos demais, o Messias não poderia ser um derrotado, mas vir com força, poder e violência para aniquilar os dominadores romanos. A Pedro, Jesus dirá, “vinde após mim, Satanás. Porque não pensas as coisas de Deus, mas dos homens” (Mc 8). Simão é chamado de opositor de Deus porque pretende impedir a Jesus de ser morto pelo poder vigente, ao invés de tomar o poder.

Quem personifica esta figura literária de Satanás que põe Jesus à prova? São os fariseus, gente sabida e entendida da Palavra de Deus, que pouco viviam-na. E, o que é pior, a descaracterizavam, anulando-a com seus preceitos humanos. Aquele que eram tidos como os mais próximos de Deus, dirá o evangelista, foram os que agiram diabolicamente (gerando divisão), tentando a Jesus. Qual a ação tentadora dos líderes do povo, em relação a Jesus? Lembremos que Marcos aplica o verbo “tentar” sempre aos fariseus. Estes realizam a divisão entre Deus e o homem, através daquelas leis e prescrições impossíveis de serem observadas e cumpridas pelo povo simples; causam a divisão entre o homem e a mulher, uma vez que ela era colocada numa posição de inferioridade ao interno da sociedade do tempo de Jesus; geram a divisão entre os homens, rotulando-os em “puros” e “impuros”. Exatamente o contrário da ação de Jesus. Assim, Satanás é, nos evangelhos, imagem do poder. 

Enquanto Deus é imagem do amor generoso que se coloca à serviço das pessoas, a fim de levá-las para junto de si, Satanás é o símbolo do poder que domina as pessoas a fim de distanciá-las de Deus.

Deus e Jesus não dividem a humanidade. Ao contrário, aproximam os homens entre si, e aproximam a humanidade para si. Deus e Jesus não dividem o homem e a mulher, mas colocam-nos em paridade nas relações, tornando-os um só corpo. Deus e Jesus não causam divisão entre as pessoas, rotulando-as em puras e impuras, mas todos são os destinatários do amor comiserado de Deus. Assim, a primeira indicação dada pelo evangelista através do uso do verbo “tentar”, aplicado aos fariseus é a seguinte: atenção, estas pessoas tão pias e tão devotas, servidoras e detentoras da moral e dos bons costumes, tornam-se, na verdade, instrumentos de Satanás.

“Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam” (v.13b). O evangelista usa o artigo definido, “os” animais selvagens. E o faz para lembrar aos seus leitores que estas personagens são já conhecidas. Elas aparecem no livro de literatura apocalíptica atribuído a Daniel. Simbolizam os impérios, os poderes dominantes da época. 

O que o evangelista quer ensinar para seus leitores? Que toda a vida de Jesus foi vivenciada pelo deserto; que durante toda a sua existência ele foi colocado à prova pelos líderes do povo e, que, por fim, durante todo o seu ministério, a sua vida foi colocada sob o perigo de uma morte iminente. Tanto é verdade que o evangelista insere a informação da prisão de João, o Batista (cf. v.14). Ambos empenharam a vida pelo anúncio do Reino, até que o precursor é preso. Jesus, com seu anúncio do Reino, chama a todos para conversão. Mas aqueles que detém o poder não aceitam mudar de vida. 

O v. 13 informa, por fim, que os anjos o serviam. Até o momento, foram apresentados ao leitor a figura de Satanás, dos animais selvagens, ambos símbolos para os poderes contrários a Jesus e ao projeto de Deus. Agora, o autor apresenta a figura dos anjos. Quem são eles, na intenção do catequista Marcos? São símbolos para aqueles que acolheram o anúncio da Boa Notícia de Jesus, e colocaram sua vida na dinâmica do amor generoso e livre, através do serviço. O verbo utilizado pelo evangelista é diakoneo, a capacidade de servir, livre e amorosamente. O primeiro “anjo” que aparecerá na narrativa será uma mulher, a sogra de Simão, que depois de ter sido libertada da morte representada pela enfermidade, se coloca a servir a Jesus.

“Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galiléia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (v.14-15). O marco temporal para Jesus retornar do deserto para a Galileia é a prisão de João. Ele retorna para anunciar a Boa Notícia do Reino. Ele não fala de si, mas referencia o Reino. A Boa Notícia de Deus, é a de que o tempo da espera acabou e se tornou pleno. 

Para Marcos não se espera mais que um messias caia do céu, ou que as práticas do jejum, da oração ou da esmola pudessem acelerar a vinda do Reinado de Deus, e que ele escutará a súplica da humanidade só porque ela cumpriu essas obras. Não. Não há mais o que esperar. O Reinado de Deus chegou, foi isso o que disse Jesus.

O Reino chegou. Ainda que a humanidade esteja em meio ao deserto; chegou naquela Galileia das nações; na Galileia da humanidade; do discípulo. O Reino de Deus chegou na nossa vida; em nosso deserto. Ali, o Espírito impulsiona o discípulo  para enfrentar as forças de morte, de opressão, de oposição, de resistência, isto é, as tentações de Satanás. O convite de Jesus à conversão é um chamado à mudança de mentalidade (gr. μετανοέω/metanoéo), para ir muito além das velhas maneiras de pensar, de agir. O convite à conversão é acompanhado da proposta do crer. Crer que o Reino chegou, não pelos méritos ou boa conduta do ser humano, porque se converteu; mas porque Deus assim o quis. Por isso, se faz necessário encontra-lo, aderir a ele.

Aplicado à comunidade de Marcos, a destinatária de seus escritos, ela é chamada a viver conforme a mesma vida de Jesus. Não se pode esquecer que ela está marcada pela perseguição dos anos 65-70, em Roma. Este é o deserto em que ela se encontra. A tentação é, pois, aquela de mudar de caminho, de buscar evitar a perseguição, de ser conivente e viver em boas relações com o Império que a persegue; a tentação de reduzir o Evangelho a uma doutrina, a preceitos, ou a moralismos. Então, para ela e para a geração futura dos discípulos, dentre os quais nos encontramos, Marcos trata de recordar o que aconteceu com o Batista (grande profeta) e com Jesus (o Filho de Deus): a perseguição torna-se a lógica de quem se colocou a serviço do Reino de Deus.  

O texto deste primeiro domingo do tempo quaresmal instiga-nos algumas provocações. Temos a coragem de deixarmo-nos impulsionar pelo Espírito para o Deserto, com Jesus? Que tipo de tentações podemos encontrar ainda latentes em nós, que nos impedem de responder ao projeto de vida plena inaugurada pelo Reino? Quem somos nesse deserto, tentados (com Jesus) ou tentadores (como o Opositor, Satanás)?

Iniciamos um tempo de graça, de reconciliação e conversão com a quaresma. Somos convidados a iniciá-la  – com Jesus – a partir da realidade do deserto, impulsionados pelo dinamismo de vida de Deus que é seu Espírito, a fim de que através Dele, anunciemos com Jesus, a chegada do Reino. Começamos no deserto, mas não permaneceremos nele. Há um caminho de vida e de liberdade a ser percorrido, ainda que perpassado do início ao fim, pelo ermo.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu.


sábado, 13 de fevereiro de 2021

REFLEXÃO PARA O VI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 1,40-45:

 


A liturgia do sexto domingo do tempo comum prossegue com a meditação do dia missionário de Jesus, de acordo com as narrativas do Evangelho de Marcos. Fazendo memória, o primeiro dia consistiu no início da missão de Jesus, proclamando a chegada do Reinado de Deus; em seguida à beira do mar da Galileia chamou os quatro primeiros discípulos. A cena seguinte mostra Jesus indo à sinagoga, em Cafarnaum. Lá ensina com autoridade e liberta um homem de um espírito impuro, seu primeiro gesto de poder. Ao entardecer vai à casa de Simão, onde encontra a sogra dele acamada, com febre. Ali opera mais um “gesto de poder”; ao entardecer, muitas pessoas acorriam a ele para serem curadas e ouvirem suas palavras. Mas de madrugada ele sai para rezar, e quando encontrado por Simão, diz que deve ir à outras regiões vizinhas pregar a boa nova, porque foi para isso que veio. Pois bem, a narrativa que se segue, mostra um novo deslocamento de Jesus, agora para a região da Galileia.

No percurso, Jesus se depara com um Leproso. A Lei judaica prescrevia que aquele que possuísse esta enfermidade deveria ser afastado do meio da comunidade, e ser considerado impuro e pecador público, uma vez que a doença era vista como consequência do pecado (próprio ou dos antepassados). Não podendo, sequer, participar da vida religiosa do seu povo. Mas Jesus quebrará com esta ideia.

A Lei determinava, ainda, que o leproso deveria andar com um sininho amarrado ao pescoço, ou mesmo gritando às portas das cidades, “impuro, impuro”. Ninguém, com um pouco de “bom senso” deveria chegar perto. Caso contrário, seria contaminado com a impureza do leproso. O portador da lepra, naquela época, viva uma situação de extrema marginalização, social e religiosa. 

O leproso se aproxima de Jesus e lhe pede, de joelhos: “se queres, tens o poder de purificar-me” (v.40). Lido na integra, o capítulo primeiro mostra um contraste entre as personagens. Na sinagoga há os que se questionam acerca da autoridade de Jesus, frente ao endemoninhado que reconhece de onde Jesus vem. Aqui, do mesmo modo, o leproso reconhece autoridade de Jesus. O pedido do leproso, “Se queres, tens o poder.. (lit. podes)”, revela, na verdade, a intenção de Marcos: a de identificar Jesus como o autorizado e incumbido por Deus, de anunciar e realizar seu Reino.

Os gestos poderosos, que costumeiramente chamamos de milagres, são um indicativo de que o Reino de Deus chegou na história humana. Estes gestos poderosos (que não são o centro da missão) atestam para a exousia (autoridade) de Jesus. É Ele, o plenipotenciário do Pai; o filho do homem escatológico, que tem a missão de realizar o Juízo de Deus, ou seja, Sua vontade na história. Este é o sentido da afirmação colocada por Marcos na boca do leproso.

Em seguida, o autor focaliza internamente o sentimento de Jesus, frente ao morto-vivo, “cheio de compaixão” (v.41). Na verdade, os mais antigos manuscritos descrevem o sentimento de Jesus como ira, e não a compaixão. Tentemos compreender estes dois termos, dependendo da tradução, que temos em mãos. Compaixão (gr. σπλαγχνίζομαι / splangnîsomai) seria equivalente do hebraico hesed (amor / misericórdia), que por sua vez tem seu radical vindo da palavra Rhem (ou Rhanah), que pode ser traduzido por favor (ou graça). Hesed é sempre relacionada a Rahamim (entranhas, vísceras). A compaixão que Deus sente pelo ser humano é um “amor entranhado, visceral”. Com esse campo semântico, o povo da bíblia quer ensinar que a compaixão/misericórdia é deixar-se tocar desde as entranhas pelo sofrimento do outro. A compaixão é fruto, portanto, de um amor entranhado; de um “revirar do estômago”, provocada pela situação de marginalização e sofrimento da pessoa. É certo dizer, por uma figura de linguagem, que Deus tem dor de barriga, ou seu “estômago revirado”, diante do sofrimento humano. 

Outro termo, conservado nas traduções mais antigas, ira, talvez esteja associado ao episódio do exorcismo na sinagoga de Cafarnaum. Jesus sente a ira pela condição de marginalização que o mal provoca às pessoas, afastando-as de Deus. A audácia do leproso que quebra a lei e se aproxima de Jesus cheio de confiança, provoca-lhe a ira contra o templo e uma lei que marginaliza e explora os enfermos. Ele o recoloca ao centro, diante do altar, sem passar pelos complicados e caríssimos ritos de purificação, como testemunho para os sacerdotes. Aqui, as duas interpretações são possíveis.

O que faz Jesus é descrito pelo catequista Marcos. Ele estende a mão, toca o leproso, e ele fica curado (cf. v. 41). No entanto, do mesmo modo que nas cenas anteriores, Ele ordena que o homem não diga nada a ninguém (cf. v.43-44). Jesus não quer sua missão compreendida apenas por estes gestos, como se fosse um curandeiro. Existiam muitos na época. Também não quer ser procurado unicamente por interesses escusos. Quer ensinar, através desta censura, que a centralidade de sua missão não reside nos gestos que realiza, mas naquilo que anuncia e faz acontecer: o Reino de seu Pai. Reino que não tolera exclusão, marginalização; tampouco que o ser humano esteja aprisionado em sua consciência e impedido de responder livremente ao projeto de Deus.

A censura pode muito bem ser um recurso literário do próprio Marcos, que trabalha com o tema do “Segredo Messiânico”, acerca da identidade de Jesus. O evangelho marcano é todo ele permeado pela pergunta sobre a identidade de Jesus. Esta identidade vai sendo revelada através de sua autoridade, que são os seus ensinamentos verificados pela coerência da sua vida. Jesus não só fala, mas vive o que fala. Outro modo de ir revelando aos poucos sua identidade, de acordo com a perspectiva de Marcos, são seus gestos de poder. Na intenção do autor é preciso manter o segredo para que, pedagogicamente, seus leitores-discípulos vão tendo acesso a identidade real de Jesus.

A narrativa mostra que a advertência não deu muito certo. O homem divulgou muito o fato. Consequência: Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade. Ficava fora e em lugares desertos. Interessante essa constatação do evangelista. No começo da narrativa, somos convidados a entender que o leproso é quem deve morar em lugares desertos, para não contaminar ninguém (ora, o encontro acontece no meio do caminho). Agora é Jesus que não pode ficar na cidade. Jesus assume a condição de marginalização vivida, outrora, pelo leproso.

Jesus vai às margens geográficas e existenciais. Rompe as fronteiras geográficas, na verdade. Dissemos, anteriormente, que Marcos narra o Cristo em constante movimento. Das margens do mar da Galileia para Cafarnaum; de lá para outras regiões da Galileia. Ora, o evangelista mostra Jesus rompendo fronteiras, no intuito de ensinar que quando a humanidade vive em situações, de morte, de marginalizações, de exclusões, que desfiguram a dignidade da pessoa humana, não há limites para Ele devolver-lhes a vida. Não há fronteiras para salvação que traz.

Quais são as lepras que causam o afastamento de Deus hoje? Será que nossas comunidades são lugares de purificação – acolhida, cuidado, promoção da vida e da dignidade de cada pessoa humana? A purificação não é moralizadora, mas humanizadora. Restitui a humanidade (a carne, que é lugar de Deus). Quais as lepras que ainda predominam em nossa sociedade? Temos a coragem de, como Jesus, colocar-se na mesma condição que outrora o leproso possuía, a fim de resgatar e recuperar a dignidade do irmão que está fora? Oxalá nos encontremos com o Jesus de fora...

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família/Arquidiocese de Botucatu - SP



sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DO TEMPO DO TEMPO COMUM - Mc 1,29-39:



O quinto domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo primeiro do Evangelho segundo Marcos. A perícope de hoje inicia-se a partir do v.29 e se estende até o v.39. Este trecho que liturgia nos propõe é o final de “um dia de Missão” de Jesus. Este dia começou no v.14, quando o evangelista fez-nos saber que João, o Batista, havia sido preso. Um marco inicial para a missão de Jesus. No v.15 temos uma declaração que é, ao mesmo tempo, um conteúdo ou itinerário programático de sua missão: “Completou-se o tempo, o Reinado de Deus vem vindo! E nos convida à conversão e à adesão à Boa Notícia que ele traz consigo. É ele o autorizado da parte de Deus para proclamar com sua vida a presença mesma de Deus na história humana.

Jesus, depois de passar chamando e deslocando os quatro primeiros para a tarefa de pescar gente – retirar as pessoas das situações de morte e leva-las para a vida – , se  dirige para Cafarnaum com os seus para ensinar lhes como viver esta pesca. Lá, como de costume aos sábados, entra na sinagoga e realiza um primeiro gesto que pretende mostrar a presença do Reino de Deus, que deve ser aceito na liberdade da consciência, sem amarras ou barreiras. Ali exerce um ensino diferente: com autoridade. Ele fazia o que falava. Seu ensino era comprovado pela sua atitude. Nisso consistia a autoridade de Jesus. Nosso texto situa-se na continuidade deste episódio.

Ao sair da Sinagoga, Jesus vai para casa de André e de Pedro. Ali encontra a sogra de Simão e é informado de seu estado: doente, febril e deitada. Realiza, então, mais um gesto de poder: o reerguimento daquela mulher. É importante que nos detenhamos no termo utilizado pelos autores do Novo Testamento: “gestos de poder” (gr. δυναμις / dynameis). Ele se refere às ações realizadas por Jesus, as quais traduzimos equivocadamente por milagres. Estes gestos tem a função de revelar e confirmar que Jesus é o autorizado – tem autoridade, a exousia – para pregar o Reino da parte de Deus.

O evangelista tece bem a cena. Jesus, Tiago e João encontram-se na casa de André e de Simão. Eles O fazem saber que a sogra de Simão estava doente. É interessante notar essa informação que Marcos fornece ao leitor-discípulo. A mulher, naquele tempo e naquela sociedade, era marginalizada. Não tinha vez e era considerada insignificante e, ao mesmo tempo, a mais distante do favor de Deus. Subitamente, os discípulos falam da mulher. Ora, eles compreenderam uma novidade no ensino de Jesus: o bem do ser humano deve ser colocado acima de tudo, no ocorrido na sinagoga. Deve vir antes mesmo da observância da Lei divina. Ora, o leitor deve se recordar que ainda é dia de Shabat. Em dia de sábado é proibido realizar qualquer tipo de ação. Inclusive a visita e o cuidado para com os enfermos. Os discípulos conseguiram compreender o seguinte, que o bem do ser humano é o bem mais importante. Por isso falam dela. Muito embora Jesus poderia ter dito, “esperemos passar o sábado”, mas não foi essa a sua atitude. Recorde-se que o preceito de guardar o sábado era o mais importante, sendo que quem o descumprisse poderia ser réu de morte. O bem das pessoas  ocupa a primazia nas atitude e decisões de Jesus.

Marcos, ao mesmo tempo que indica a condição febril e o estado da sogra de Pedro (deitada), ritma a ação central de Jesus a partir de três verbos de movimento: aproximou-se, tomou-a pela mão e levantou-a (v.31).  O evangelista quer recordar à sua comunidade o Sl 73,23, no qual o salmista louva a Deus por tê-lo tomado pela mão direita e introduzido em Sua Glória. O verbo “levantar” (gr. ἤγειρεν / ehgheiren) é muito significativo para os cristãos da comunidade de Marcos e para os das primeiras comunidades nascentes. O gesto de Jesus é descrito e lembrado pelo evangelista pelo mesmo verbo utilizado na narrativa da ressurreição. Em simples palavras: a simplicidade deste gesto, realizado na intimidade familiar, antecipa a vitória do Senhor sobre a Morte.

O gesto de Jesus de tomá-la pela mão chama a atenção, porque ele era desnecessário, e, ao mesmo tempo, proibido, devido ao repouso sabático. Ao tocá-la, sendo a pessoa em questão uma mulher, e, devido à sua enfermidade, Jesus, segundo a Lei, torna-se impuro. Mas a mensagem que Marcos quer transmitir é a de que, mesmo correndo tal risco, assumindo a impureza da mulher, Jesus comunica a ela a Sua força geradora e restauradora de vida. Imediatamente a febre desapareceu. E a mulher se colocou a servi-lo. O autor utiliza o verbo “diakoneo (gr. διακονέω)”, que significa a atitude livre e amorosa de servir. Isso é muito importante, pois após a tentação de Jesus, os anjos se aproximam dele para servi-lo. O catequista bíblico quer indicar que, aquela mulher (marginalizada por seu gênero e por sua condição enferma) após acolher a mensagem de Jesus através da comunidade simbolizada pelos quatro discípulos, pode aproximar-se novamente de Deus, e está habilitada para servi-lo.

Dos vv.32-34, o evangelista relata que, ao pôr-do-sol, quando o repouso sabático terminava, muitos acorreram para a casa de Pedro, levando seus enfermos e a gente possuída por espíritos impuros, aos quais curou e purificou, não deixando que os espíritos impuros falassem. Reaparece, novamente, a censura feita na sinagoga. Esta ordem ou censura é comum para os que são curados de alguma enfermidade, bem como para os “endemoninhados”. É um recurso pedagógico da catequese de Marcos, o qual chamamos de “Segredo Messiânico”. É tanto uma ferramenta catequética do evangelista, como pode ter sido, muito plausivelmente, uma atitude do próprio Jesus que foi recuperada pela memória do autor; como pode ter sido uma atitude da própria comunidade marcana, como caminho de iniciação catequética aos candidatos ao batismo. Este segredo visa preservar a verdadeira identidade de Jesus, que só será desvelada no alto da Cruz.

Marcos, enquanto catequista de uma comunidade, preocupa-se com que seus leitores-discípulos não concebam uma falsa imagem de Jesus: um curandeiro, um milagreiro (taumaturgo), como tantos de sua época. Para que não tirem conclusões precipitadas nem se confundam sobre sua identidade antes da manifestação definitiva: a morte e a ressurreição. Por isso, os gestos de poder que ele realiza não devem ser absolutizados, mas colocados em relação ao Reino.

Marcos, novamente chama a atenção dos leitores. Os Milagres de Jesus não são espetáculos públicos, mas gestos de fraternidade e solidariedade, que permitem perceber de que lado Deus atua e se coloca na estrutura do mundo. Ao lado dos marginalizados. É no interior de uma casa, e ao redor dela que Jesus realiza seus gestos. Não é no meio do barulho, ou nos locais de evidência. Ele não era um pop-star. Não era midiático. Também não era sensacionalista. Tampouco sofria da síndrome do Pavão, a exibir-se para chamar a atenção para si. Ele jamais se autorreferenciava. Mas referenciou o Reinado do Pai.

Prova disso é como Marcos encerra a seção do dia missionário. O v.35 mostra que ainda de madrugada Jesus se colocou em oração, num lugar deserto. Depois de um dia intenso de atividades, parou para se abastecer; para entrar na intimidade com o Deus da Aliança para que possa compreender-se a si próprio e a sua missão. É um modo que o evangelista também tem de mostrar que, enquanto homem, Jesus também sofria a tentação de colocar sua missão e o anúncio do Reino no caminho do prestígio, da glória humana, do holofote; na lógica do poder (ou do super-poder). É pela oração – na intimidade com o Pai – que ele reorienta constantemente a missão da qual foi por Deus encarregado. E retira dali a força para rejeitar o caminho contrário. É no silêncio da oração, na noite do confronto consigo, que Jesus reorienta a sua vida e missão para o querer do Pai.

Sua missão não consiste em ficar ali satisfazendo as expectativas. Antes, responde a Pedro que “deve ir às aldeias vizinhas pregar”, pois foi para isso que veio. Nisso consiste o cristianismo de Jesus: seguimento-discipulado, missão e, também de cruz. O projeto do Pai, pregado pelo Cristo, não consiste nos fatos extraordinários; nos prodígios mirabolantes; na pastoral do milagre. É, acima de tudo e essencialmente, adesão à Sua Pessoa. Uma experiência pessoal com Ele, da qual brota a disponibilidade para o seguimento e a comunhão de vida com a vida, história e opções Dele.

Da experiência discipular com Jesus, advém a necessidade de, também com Ele, sair para a missão de proclamar o reinado de Deus, através do serviço aos irmãos. Foi o que fez a sogra de Pedro que, imediatamente depois de ter feito a experiência pessoal do Reino em Jesus, se colocou à seu serviço. Somente acompanhando a Jesus (fazendo experiência com sua Pessoa) em seu dia missionário é que se consegue responder acerca de sua identidade.

A partir do encontro com Jesus é que se pode ficar livre da febre que paralisa e prostra. Que tipo de febre ainda impedem  as pessoas de fazerem uma experiência genuína com o Senhor? Ao interno do cristianismo e das comunidades ditas cristãs que febres existem e ainda impossibilitam as pessoas de viverem um encontro verdadeiro e profundo com o Senhor? Nossas comunidades tem sido - a exemplo dos quatro primeiros discípulos que souberam captar o sentido do ensinamento de Jesus - continuadora do gesto gerador de vida do Cristo? Da experiência com Jesus nasce a necessidade de se colocar o bem das pessoas em primeiro lugar. Como temos vivido essa missão? Temos, como Jesus, aproximado aqueles que se encontram distantes do projeto de Deus ou, como a lei e os seus protetores, as mantemos afastadas. 

Sabemos dar nomes a estas febres? 

Sem pretensão de viciar a leitura e a resposta às perguntas anteriores, gostaria de, criticamente, provocá-los, nomeando algumas, dentre as inúmeras febres. Por exemplo, a febre do tradicionalismo legalista, que paralisa a vida das pessoas com moralismos falsos, fazendo da vida das pessoas e do fiel, um fardo pesado de se carregar. A febre do saudosismo vazio e morto, que não consegue ressignificar o presente e mirar para o horizonte da novidade que o Evangelho gera e promove. A febre do fechamento e do esimesmamento, que não edifica comunidade, mas que promove e alavanca guetos e constrói feudos. A febre da fama, do sucesso, da auto referência na vida de fé e na missão evangelizadora e eclesial. A febre do milagre, do sensacionalismo e do extraordinário, que aliena na mesma medida que as anteriores. A febre do negacionismo diante dos sinais que os tempos vão dando. A febre da indiferença ao Evangelho e do descompromisso com a vida comunitária e eclesial. A febre da marginalização, da exclusão, das relações de domínio, do descarte. Há, sim, quem goste de viver doente, como que um hipocondríaco em matéria de fé; há, como no tempo de Jesus, aqueles que gostam de viver com febre. 

Agora, a escolha é de cada um: viver das febres ou deixar Jesus comunicar e gerar vida e poder participar de Sua plenitude de vida, através da colocação da vida à serviço amoroso e livre. Com Jesus somos chamados a também tomar pela mão e comunicar vida aos que encontram-se deitados em estado febril.


Pe. João Paulo Góes Síllio.

Paróquia Sagrada Família. Arquidiocese de Botucatu-SP