“Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha. E transfigurou-se diante deles” (v.2). Marcos inicia a cena com um indicativo temporal (omitido pelo texto litúrgico): “seis dias depois”. Com essa determinação temporal, o evangelista pretende aludir ao sexto dia da criação, no qual Deus criou o homem. Ora, parece que o autor enseje revelar para sua comunidade qual seria o homem criado segundo o querer divino: o homem que não sucumbirá com a morte, mas que através dela iniciará uma nova existência.
O evangelista insiste no caráter privado do ensinamento, destinado somente aos três discípulos. Eles não seriam mais privilegiados que os outros que não subiram ao monte. Ao contrário, seriam, na verdade, os mais necessitados de uma profunda correção da parte de Jesus e de uma verdadeira conversão. A cada um deles, por exemplo, Jesus adiciona um sobrenome: a Simão, o complementa com Pedro – cabeça e coração endurecidos, a ponto de obstaculizar o projeto de Deus em Jesus; a Tiago e João, apelida-os de Boanerghes, no aramaico (lit. “filhos do trovão), identificando neles a personalidade e o temperamento explosivo. Estes dois tratarão, depois, de dividir até mesmo o grupo dos Doze com as perguntas sobre a importância de cada um e suas pretensões pessoais.
O evangelista dá a localização da cena. Não por interesse geográfico, mas por necessidade teológica. Talvez Marcos pense no monte Hermon (ao norte de Cesareia de Filipe), mas isso é irrelevante. Na Bíblia a montanha é o lugar da manifestação de Deus e de sua vontade; o lugar do encontro com ele: Abraão no monte Moriá (Gn 22), Moisés no monte Sinai ou Horeb (Ex 19; Dt 5,10-12), Elias no Carmelo (1Rs 18,20-40) e no Horeb (1Rs 19), o Templo no monte Sião. É, portanto, o lugar da condição divina.
Ali, Jesus foi transfigurado diante deles. A palavra grega para esta ação é metemorphote (gr. μετεμορφώθη). Ele trata de revelar aos discípulos a sua condição glorificada. É um modo de Jesus ensinar os três, e, por sua vez, Marcos transmitir um ensinamento para a sua comunidade: Jesus está indicando a condição do homem que passou pela morte. Esta, não destrói a condição humana, mas a torna permeada da potência da vida divina. Por isso, o evangelista ilustra o fato servindo-se das vestes. Elas ficaram tão brancas e brilhantes, que ninguém conseguiria alvejar.
As vestes embranquecidas de tão brilhantes, são, na literatura apocalíptica da Bíblia, os símbolos da intervenção de Deus na história (Dn 2,34.45; Lc 24,44). Marcos se serve destes elementos do Antigo Testamento (luminosidade, nuvem e vestes brancas) para ensinar que a cena da transfiguração apresenta Jesus na condição do ressuscitado (Mc 16,12), e, portanto, divina: as vestes brancas e resplandecentes são um sinal do mundo divino, um sinal de alegria e vitória. Um sinal de vida indestrutível. A informação que o evangelista oferece de que nenhuma lavadeira sobre a terra seria capaz de deixar as vestes daquele modo, serve como admoestação para o fato de que esta condição transfigurada não é fruto de um esforço humano que o projete para esta condição, mas é a força divina que realiza isso, e que é comunicada ao homem.
No v.4, Marcos narra que, ao lado de Jesus aparecem Moisés e Elias a conversar com Ele. Os dois personagens do Antigo Testamento aludem à Lei (Moisés) e à Profecia (Elias). Mas Marcos os coloca em diálogo com Jesus, ficando os discípulos de fora. É interessante como o autor constrói a cena: ambas personagens importantes do AT aparecem, uma de cada lado de Jesus, ficando Ele ao centro da cena. Ou seja, numa visão panorâmica, que é a que os discípulos têm, Moisés viria primeiro, em segundo Jesus, e, por fim, Elias. Isso é muito importante, pois, na tradição oriental, aquele que vem em segundo lugar, e, ocupa, nesse sentido o centro, é aquele que merecerá todo o destaque e importância. O autor tem a intenção de mostrar para a sua comunidade que Moisés (Lei e líderança) e Elias (toda a profecia) convergem para Jesus. Ou seja, que Ele cumpre todas as expectativas suscitadas pelas Escrituras (na Lei e nos profetas). Mas, tem, ainda, a finalidade de mostrar que Ele é o enviado definitivo e esperado para os últimos tempos.
Mas os discípulos não entendem, e, equivocam-se na leitura e interpretação da cena. Pedro, como porta-voz deles toma a palavra, e propõe levantar ali três tendas. Aqui reside a tentação sofrida pelo discípulo, o qual oferece resistência diante do projeto de Deus a ser realizado por Jesus. A dificuldade em aceitar o caminho proposto pelo Cristo. Simão-Pedro, em sua fala, subverte a ordem da cena, ao pretender armar as tendas: menciona Jesus, em seguida Moisés, colocando-o no centro (lugar de importância), e Elias. Ele e os outros dois discípulos preferem o caminho de Moisés, que é o da Lei e da liderança através do poder e da dominação, ao mesmo tempo que aderem ao caminho encolerizado da personalidade de Elias. Recusam, assim, a Jesus como o enviado de Deus, bem como o seu projeto e caminho. Não é por menos que Marcos coloque na boca de Pedro o mesmo título com o qual Judas, o traidor, se dirigirá a Jesus, “Rabi”. Simão, uma vez mais, está exercendo o papel de tentador e adversário de Jesus.
Querem um Messias que siga as tendências das expectativas e das lideranças antigas; um guerreiro, nacionalista, davidita (pronto para restaurar a antiga dinastia de Davi); alguém que venha com feitos extraordinários, com poder, inclusive para dominar e submeter. Por isso, a indicação de Marcos acerca das tendas, pois elas aludem à festa das cabanas, que relembra a saída do povo da escravidão egípcia e a sua permanência no deserto sob a guia de Moisés, habitando em cabanas improvisadas. Com o tempo, esta festa foi ganhando os coloridos da expectativa messiânica segundo as mesmas características de Moisés. Este é o imaginário que permeia a cabeça de Pedro, e que embasa as suas convicções e a de seus companheiros. Eles ainda não conseguem se transfigurar. E, aqui, para eles, a transfiguração seria a mudança da mentalidade. A conversão; a adesão a pessoa de Jesus e ao seu modo de viver, agir e pensar.
Então, de uma nuvem que descia sobre eles e os encobria, se escuta uma voz (v.7): “Este é o meu Filho amado”. A mesma voz que havia rasgado o céu na narrativa do Batismo. O amado significa “o herdeiro”, aquele que carrega a plenitude da identidade do seu pai. “Nele está a minha totalidade”. A transfiguração, como foi dito acima, acena para uma resposta acerca do mistério da vida de Jesus, e acerca de sua identidade. Só que esta identidade não aparece desde fora, mas a partir de dentro do próprio Cristo. O Pai mostra para os discípulos (e para nós) a verdadeira identidade do Filho, a partir de sua interioridade, ou seja, a verdadeira essência e natureza de Jesus, e, consequentemente, sua missão.
Aqui emerge a mensagem central desta narrativa acerca de Jesus. O seu caminho de vide e fidelidade ao projeto do Pai, ainda que marcado pela morte não é um resignar-se submisso à uma fatalidade histórica; não é fracasso de um projeto, mas revelação plena de sua verdadeira identidade. Ele aparecerá como Filho fiel, que está num relacionamento único com Deus. Contudo, esta revelação acerca de Jesus encaminha o discípulo para a transfiguração (conversão) pessoal. Mas como se dá a transfiguração do discípulo de Jesus?
Através da ordem que o Pai dá: “escutai-O!”. O imperativo “escutai-o”, significa acolher a Palavra de Jesus e seu caminho de Cruz, através do discipulado e do seguimento. Somente mediante a escuta desta palavra (da vida, pessoa e ensino de Jesus) e do seguimento, o discípulo vai sendo transfigurado. Não é a Moisés ou a Elias que o discípulo deverá dar ouvidos, mas a Jesus. Pois os ensinamentos de ambas as personagens foram sendo filtradas e reiterpretadas pela vida e pelo ensinamento de Jesus. Por isso, a intervenção da voz divina encontra-se no imperativo: “Escutai-O”. Terminada a fala divina, os discípulos veem somente a Jesus. Desaparecem as seguranças deles representadas pelas duas personagens da tradição. Agora eles só têm diante deles a Jesus, a quem referenciar a vida.
Na medida em que vão descobrindo a novidade e identidade de Jesus, vão, então, reconhecendo-se desde dentro, e poderão dizer-se, com sinceridade que tipo de discípulos de Jesus são, e se realmente encontram-se no caminho (também perpassado pela cruz), em vista de uma vida ressuscitada.
Jesus, ao final da narrativa dá uma ordem. Os discípulos não devem contar a ninguém a experiência vivida ali, até que o Filho do homem tenha ressuscitado dos mortos. Somente a luz da ressurreição é que pode iluminar a consciência dos discípulos e fazê-los entender quem é Jesus. O autor, ao apresentar a Jesus como Filho de Deus, propõe a imagem do Filho do Homem, que deve descer do monte. O lugar definitivo de Deus não é alta montanha, mas sim onde se encontra a humanidade. É importante descer da montanha com Ele e assumir a mesma fidelidade ao projeto do Pai, ainda que este seja perpassado pelo risco de morrer como e com Ele. A ordem dada por Jesus pode ser compreendida da seguinte maneira: “não digam ou espalhem nada que seja contrário ou que possa distorcer o sentido da vida que escolhi viver; não digam nada que induzam as pessoas a caírem numa ilusória realidade de fé”. Somente após a sua ressurreição dentre os mortos é que se poderá falar Dele como Filho de Deus. Por isso, a transfiguração se torna uma antecipação do que acontecerá a Jesus, e do que a sua inteira vida (paixão, morte e ressurreição) significará para os discípulos, a ponto de não caírem na ilusão de um seguimento desfigurado da verdadeira vida assumida pelo Cristo.
A transfiguração plena do discípulo é um processo que vai sendo vivido a cada momento em que ele se dispõe a escutar (e seguir) o Filho amado, nosso irmão. A Sua vida foi uma intensa e fiel escuta da Palavra de seu Pai. Só mediante esta escuta Jesus pode ser transfigurado pelo Pai. Porque decidiu-se firmemente a vive-la. A transfiguração de Jesus é um convite ao discípulo para que este também vá alcançando sua constante transfiguração; sua conversão; aquela mudança de caminho, sim. Mas, principal e essencialmente, a mudança do coração e da mentalidade; a mudança daquelas concepções e seguranças antigas, para a nova mentalidade que o Evangelho da vida de Jesus propõe: uma vida transfigurada.
O horizonte da narrativa deve fundir-se com o da comunidade, a fim de se atualizar sempre o texto bíblico. O evangelista destina à sua catequese para a sua comunidade, a fim de alerta-la para o fato de que esta tentação avança, com o tempo, ao interno da comunidade cristã. A comunidade de Marcos, inserida na realidade dos anos 65-70, em Roma, sofre com a perseguição do Império. Pedro, no texto bíblico, verbaliza a intenção de permanecer naquela situação porque apresenta traços do medo. Ela sente, como Pedro e os dois irmãos a mesma tentação: ficar acomodados na “visão beatífica”, por assim dizer. Para os cristãos de Marcos, armar as tendas e fixar-se no lugar, poderia significar a alienação da vida mediante uma fé descomprometida com a realidade; a mentalidade de reduzir a fé e a vida cristã a uma contemplação mística do encontro com Cristo. Contudo, o texto não para na comunidade de Marcos, mas chega até as futuras gerações de discípulos. Por isso, o alerta acerca destas tentações destina-se aos discípulos e às comunidades de todos os tempos e lugares.
Como nos encontramos, em transfiguração ou em desfiguração? O que em nós precisa ser transfigurado? Temos exercitado a escuta da Palavra de Deus, por meio de Jesus? Temos tomado consciência de que “escutar” o Filho é o caminho que alimenta e transfigura o nosso seguimento e discipulado? De quais tentações as nossas comunidades devem ser transfiguradas (comodismo, fixismos, tradicionalismos, descompromisso, alienação, uma fé (mistificante e mificante) desencarnada da realidade)? A vida transfigurada só pode ser vivida quando assumido o caminho da escuta (conhecimento), do discipulado e do seguimento a Jesus. Só assim poderá o discípulo responder sobre as verdades acerca de si. Só assim poderá deixar-se transfigurar.
Pe. João Paulo Sillio.
Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de
Botucatu-SP.
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