sábado, 6 de março de 2021

REFLEXÃO PARA O III DOMINGO DA QUARESMA - Jo 2,13-25:

 


O Quarto Evangelho é constituído por duas partes: o Livro dos Sinais, que compreendem os capítulos 1,28 – 12,51, através dos quais o catequista João trata de animar a vida da sua comunidade renovando-a na adesão à Jesus, e, ao mesmo tempo ensinando aos que estão dando os passos na fé acerca da identidade de seu Senhor. Os sinais possuem a função catequética de apontar para uma realidade totalmente superior. Eles atuam como símbolos, ou seja, através de seu dinamismo simbólico unem duas realidades. Eles não têm fundamento em si, mas direcionam o olhar tanto dos discípulos quanto dos iniciados para quem Jesus é, a fim de optarem pelo sentido de sua vida. Dos sinais, eles são chamados a dar o passo para a contemplação da “hora” de Jesus (preparada ao longo do Livro dos Sinais), a fim de fazerem a experiência com a sua Glória. Por isso, a segunda parte da catequese joanina é delimitada como Livro da Glória.

A perícope litúrgica deste III Domingo da Quaresma apresenta o texto de Jo 2,13-25, que trata de apresentar a Jesus como a novidade de Deus agindo na história, através da superação das instituições do judaísmo antigo. O autor, através deste capítulo segundo da catequese joanina, pretende ensinar e transmitir aos seus que a novidade de Deus reside em Jesus.

O contexto imediato da narrativa é aquele após as núpcias de Caná, onde Jesus havia revelado o vinho novo; o vinho das núpcias messiânicas de Deus e da humanidade. Em seguida, Ele sobe à Jerusalém. A cena que João descreve caberia melhor ao final do escrito (cf. Mc 11). Mas para a finalidade de sua catequese, ele o desloca para o início de seu evangelho. Contemplemos a cena.

“No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados” (v.13). Jesus vai ao Templo por ocasião da primeira páscoa de seu povo narrada pelo Quarto Evangelho, e lá se depara com uma desigualdade. Vê bois, ovelhas e pombas. Animais para o sacrifício. Ora, os bois e as ovelhas eram destinados a gente rica; as pombas, eram matéria de sacrifício para os pobres. Depara-se com uma religiosidade promotora, naquele contexto, de desigualdade e segregação. Vê também os cambistas, para a troca de moedas. 

Ao interno do templo de Jerusalém só se podia usar o dinheiro antigo, do tempo pré-exílico, por não possuir nenhuma imagem (efigie) gravada nele, porque a Lei proibia quaisquer imagens que pudessem ser associadas à Deus, ou mesmo que apresentassem divindades pagãs, contrárias a fé judaica. Por isso, o dinheiro romano era trocado dentro templo. Ora, ofertar uma moeda na qual se vinha cunhada a expressão “Divus Caesar” sob a figura do imperador não ficava nada bem. Aquela situação provocava uma animosidade nos Judeus do interior, contra o regime do templo. Talvez aquilo que Jesus fará se encontre dentro da perspectiva desta animosidade contra o templo. 

João narra este episódio com um certo colorido. “Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas” (v.15). Neste versículo, o autor aponta um pormenor especial: o chicote de corda e os animais expulsos. Esta característica não se encontra nos evangelhos sinóticos. Muito provavelmente, o evangelista conhecia o relatos de Marcos.

Uma constatação importante: nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) a ira de Jesus se desencadeia contra o comercio e não contra os animais dos sacrifícios. E aí está a diferença característica de João, em relação aos Sinóticos: o detalhe da expulsão dos animais para sacrifício. Ora, ele usa o chicote porque tem que expulsar os animais. A intenção do evangelista é outra: ele acrescenta este detalhe da expulsão dos animais a véspera da primeira pascoa para, na verdade, mostrar que os sacrifícios do templo ficam impossibilitados, abolidos e superados. Por que?

O evangelista João, em sua proposta catequética, trabalha com o esquema da superação/abolição de todo o sistema levítico cultual do judaísmo dos anos 30 d.C (mas também, numa fusão de horizontes com tempo da comunidade, nos anos 90). Muito importante: João, o evangelista, trata da religiosidade (práticas, preceitos, sistemas), não a religião, que fique bem claro isso. Na perspectiva do Quarto Evangelho, Jesus supera e aboli a lei de Moisés e as práticas de culto. Estas, conforme a narrativa anterior das núpcias de Caná, são caducas e já não servem mais para comunicar ao homem a vida de Deus e a possibilidade de se fazer uma experiência com Ele. Agora, segundo João, é a vida, a obra e Palavra de Jesus que revelam a novidade (escatológica) da presença (Glória) de Deus em meio a história e realidade.

O acontecido no templo poderá combinar com aquilo que ele dirá para a samaritana a beira do poço (Jo 4), que nem em Garizim, tampouco em Jerusalém, se adorará o Pai, mas na novidade escatológica que que se apresenta em Jesus de Nazaré. Conforme o Sl 49 (50), Deus está farto dos sacrifícios de bois e ovelhas, ou mesmo em Os 6,6, “Hesed (misericórdia) quero, não sacrifício”. Mas quando se trata dos vendedores de pombas, os que vendiam para o povo simples e pobre, Jesus diz com mansidão no v.16, “Tirai isto daqui, não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio” (cf, Zc e Ml).

Ora, Jesus não veio para reformar; não veio para purificar. Mas veio para eliminar as situações injustas e os sistemas de morte, os quais não revelavam mais a presença e amor de Deus. Na perspectiva de João, Jesus propõe um novo modo de relacionar-se com Deus. Na nova relação que Ele inaugura com o Pai, não há mais necessidade deste sistema religioso. O Cristo mostra um Deus completamente diferente: um Deus que não pede, mas doa; um Pai que não suga ou absorve a força de vida de seus filhos, mas que comunica a eles o Seu dinamismo vital. O catequista quer ensinar, portanto, que esta é a novidade comunicada por Jesus. O Deus que ele chama de Pai não está distante, nos céus, muito menos preso ao interno do Templo, mas presente em Sua pessoa, existência, vida e obra. O novo templo de Deus é Jesus. Mais ainda, se o novo Templo de Deus é a vida de seu Filho encarnado na história, a humanidade toda, através de sua carne, se torna o a morada de Deus. Todavia, isto é uma afronta aos líderes religiosos, ao mesmo tempo que um perigo para os que detém o poder religioso e social. Eles não querem sair perdendo. Com isso, não se pretende abolir e eliminar a dimensão da vivência comunitária da Fé, mas o leitor-discípulo que toma contato com o texto de João deve sempre crescer na consciência diante das coisas, situações e sistemas contrários ao projeto de Deus, que podem ser sempre reproduzidos ao interno da comunidade cristã, podendo gerar o distanciamento e a desconfiguração dela do projeto de Jesus. Descer o chicote naquilo que pode representar obstáculo ao interno da vida do discípulo e da comunidade. E não a eliminação da comunidade e de sua vida e expressão da Fé.

No v.18, os judeus entram em cena: “Que sinal nos mostras para agir assim?” Evidentemente, a palavra Sinal, alude a um sinal de autoridade, como Moisés (sinais no Egito) e os profetas. Os sinais eram as credenciais. A credencial de Jesus é bem dura. "Destruí, este Templo, e em três dias o levantarei” (v.19). Interessante, Jesus não mostra aquilo que já fez, mas aponta para aquilo que vai fazer. Outra nota importante, o Jesus joanino não diz que destruirá todo o templo (com a esplanada e adjacências), mas, literalmente, “este santuário” (gr. ναός / naós). O santuário possuía duas câmaras: o santo e o Santo dos Santos. Voltemos ao dito de Jesus, precisamente ao verbo “erguer”, e não “construir”. O verbo “erguer” (gr. ἐγείρω / egheíro) aplica-se ao Seu corpo humano.  A expressão “eu o reerguerei em três dias” significaria a ressurreição de Jesus no terceiro dia.

“Os judeus disseram: Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste santuário e tu o levantarás em três dias?” As autoridades judaicas pensaram que ele se referiria à construção de pedra, ornada por Herodes, o Grande, uma vez que já não se tratava mais do templo de Salomão, mas o de Zorobabel, concluído pelo tetrarca. O Evangelista gosta de mostrar a dificuldade das lideranças do povo em entender o que Jesus fala. Para eles, a dificuldade é sinal de rejeição e oposição. Tanto os adversários quanto os seguidores de Jesus ainda permanecem na superfície do dito e das palavras e pensam em termos meramente materiais. Para os discípulos e para os que estão iniciando os passos na fé, a dificuldade se deve ao fato de que eles ainda estão no começo e tem um processo todo pela frente. Por isso, enquanto narrador, João acrescenta por conta própria que Jesus falava do Santuário de seu corpo (v.21).

O v.22 é importante para o desfecho deste episódio: “Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra dele”. Um bom judeu acredita piamente na Escritura e procura nela tudo aquilo que é valioso para crer. João coloca, aqui, em pé de igualdade, as Escrituras judaicas e as palavras de Jesus porque o seu discípulo não apenas acredita nas escrituras de Israel, mas em Suas palavras, como chave de interpretação para elas. A Palavra e a vida vivida de Jesus fazem descobrir o sentido profundo das Escrituras de Israel. A compreensão das escrituras é, assim, pós-pascal, mediante a luz do evento de sua Ressurreição e da força do Espírito. Antes que Jesus tenha realizado sua obra não se pode compreender as escrituras antigas. Somente depois de sua obra, com o auxílio de Seu Espírito, que faz a memória para a comunidade. A ressurreição ilumina todo o sentido da vida de Jesus, e o Espírito do Ressuscitado é quem fará a memória de Sua vida para os seus seguidores, para o leitor-discípulos. Faz sentido, então, no relato joanino, que este episódio se encontre no início da atividade de Jesus, porque ele fornece a chave de compreensão para aquilo que acontecerá. 

O Quarto Evangelho é o evangelho ruminado. Deve ser meditado e relido pela comunidade dos Leitores. O Discípulo-leitor, diante da novidade escatológica apresentada por Jesus, deverá decidir-se: optar pelo sistema levítico-cultual Judaico ou aderir à Jesus e à novidade messiânica-escatológica Nele presentes.

Mas o texto deve despertar algumas provocações. Jesus em sua ação pretende revelar a novidade de Deus agindo através Dele: como acolhemos esta novidade? Através de Seu gesto, Jesus pretende levar à superação/eliminação de todas as situações e sistemas que impendem uma genuína relação de vida e amor entre Deus e o homem: o que precisa ser superado/eliminado na vida do discípulo, que ainda impedem-no aderir plenamente ao projeto de vida de Jesus? Como se encontram as nossas comunidades? Se Jesus aparecesse hoje, às portas de nossas comunidades – católicas ou reformadas – ditas cristãs, como Ele se comportaria diante delas, com o chicote e a ira da indignação por haverem subvertido Seu projeto de vida e de amor, ou as tomaria pela mão e as tornaria sempre mais sua cooperadora na missão? O que necessitaria ser eliminado/superado em nossas comunidades, que não permitem ainda a Vida que o projeto de Deus traz através de Jesus, e não correspondem a Ele?

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP.


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