A liturgia deste quinto domingo do tempo quaresmal apresenta a leitura e a meditação do capítulo 12 do Quarto Evangelho. O leitor-discípulo, se chegou até aqui, está em vias de transição para a segunda parte do evangelho, o assim chamado Livro da Glória. O livro dos sinais, onde se situa o texto de hoje encerrou a apresentação dos sinais de Jesus com a vivificação de Lázaro (Jo 11). O texto que se segue apresenta o discurso sobre a dinamicidade do grão de trigo que, ao cair na terra, deve “morrer”, a fim de frutificar.
A perícope de Jo 12,20-33 encontra-se imediatamente após a entrada de Jesus em Jerusalém (Jo 12,12-19). Dentre a multidão que já aguardava a sua vinda para a festa estavam alguns gregos. Mas para entender a entrada destas personagens na narrativa, se faz necessário retomar os versículos anteriores, que concluem a cena da entrada na cidade santa. Os fariseus, que assistiam a recepção calorosa a Jesus comentam entre si, no v.19, “Estais vendo que nada conseguis? O mundo se foi atrás dele”. No vocabulário do Evangelho segundo João, o termo “mundo” refere-se à realidade, a história, que pode assumir uma atitude contrária ao projeto de Deus. Em outras palavras, uma realidade que se encontra em oposição à Deus e, que, ao interno da narrativa vai sendo chamada a fazer uma opção em favor de Jesus. O mundo que vai atrás de Jesus é simbolizado pelos gregos que buscam vê-lo. Todavia, pode ainda indicar, no horizonte da comunidade joanina, a sua composição, pois o tema dos estrangeiros da diáspora já tinha sido frisado em 7,35; 10,16 e 11,51-52. Foi entre estes que cresceu a comunidade de João.
O v.21 informa que aqueles gregos se aproximaram de Filipe, e disseram que queriam ver Jesus. Ele conversa com André e os levam até o mestre. Então, o v.23 traz uma declaração solene de Jesus: “Chegou a Hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado”. Os gregos, ao ouvirem isso pensam que chegaram na hora certa: o Filho do Homem vai aparecer na terra com a glória que recebe de Deus (cf. Jo 1,51). Com um solene “Amém, amém (Em verdade...)”, que tem a função de introduzir um ensinamento importante de Jesus para seus discípulos (geralmente uma revelação), Ele lhes diz outra coisa. Ele usa da dinamicidade do grão de trigo, que cai na terra e deve passar pela “metamorfose” (a transfiguração) de um estado para outro, isto é, “morrer” enquanto semente para frutificar (viver). O grão de trigo serve de metáfora ou símbolo para que Jesus possa atingir seus interlocutores. Banho de água fria? Vão para ver o Filho do Homem poderoso e acabam escutando uma metáfora-ensinamento sobre vida e morte!
Todavia, o autor do evangelho pretende chamar a atenção de sua comunidade para a realidade de que a manifestação da Glória do Filho do Homem (tão esperada e preparada pelo catequista bíblico) não será um espetáculo triunfalista, mas um mistério de morte e vida, perpassado pela plenitude da vida de Deus que despontará em Jesus. Ora, Jesus quer dizer que, do dom de sua própria vida neste mundo brotará o fruto que Deus espera, o fruto do amor fraterno (cf. 15,8), que refaz todo o horizonte da história, da vida e das relações.
No v.25, Jesus continua seu discurso, afirmado que “Quem ama sua vida (lit. alma) perde-a, e quem odeia sua vida neste mundo guarda-a para a vida eterna”. O texto original o termo alma (gr. psyche), e o termo odiar. Eles devem ser bem compreendidos. Na linguagem do Quarto Evangelho, “alma” significa vida física, biológica, psicológica e material. E o verbo odiar, na verdade, é o contrário de preferir, no vocabulário semítico. Este versículo deve ser entendido assim: quem se apega à sua vida perde-a; mas quem não faz conta de sua vida neste mundo, há de guardá-la para a vida [da era] eterna. Ninguém deve odiar sua vida, que é dom de Deus, mas preferir em sua vida, a Vida que Deus doa (em Jesus). Quando o discípulo de Jesus acolhe em sua vida a Vida que Deus comunica, então essa vida do discípulo dá um salto qualitativo, que é a vida do “eon (era)” eterno.
Como, então, preferir a vida (da era) eterna? O Jesus joanino responde esta pergunta, modificando um tema presente nos evangelhos sinóticos, o seguimento. Se em Mt e Mc o tema do seguimento ao Filho do Homem se dá através do seguimento a Jesus, que não veio para ser servido, mas para servir, no Quarto Evangelho o autor opera uma mudança significativa: o seguimento é serviço à Jesus. O Seguimento transforma-se em diaconia.
No entanto, quando Jesus fala de serviço a ele, não está se referindo ao serviço a um individuo privado, mas à sua Comunidade, porque o Jesus joanino não se separa de sua comunidade. Então, o serviço a Jesus consiste no serviço à comunidade que ele reuniu. Quem for fiel à diaconia de Jesus na sua comunidade se encontrará aí, onde Ele está.
Jesus declara sentir-se angustiado. João não tem medo de mostrá-lo em sua humanidade. Mas, como é próprio do autor, faz questão de mostra-lo como senhor da situação. Ninguém o tira de sua paz e de sua autonomia. O que ele faz, é por si mesmo que o faz. O Jesus joanino não é uma vítima das circunstâncias. Isso virá a tona com toda a sua força na narrativa da paixão e morte. Por isso, o evangelista recorda-se do dito de Jesus: “Mas foi precisamente para esta hora que eu vim” (v.27).
Clama, pois, ao Deus que chama de Pai: “Pai, glorifica o teu nome!” Em outras palavras, “mostra a tua glória”. Ouve-se uma voz. O próprio Pai entra em cena e diz, que glorificou seu nome, e o fará novamente. Para João, Deus glorificou seu nome em todo desenrolar da história da salvação e, sobretudo, nas obras que Jesus realizou. E o fará novamente. Quando?
O final do texto de hoje revela esse momento. A melhor explicação para essa glorificação é o v.33: “Quando eu for elevado (enaltecido) da terra, atrairei todos a mim”. O Enaltecimento de que o Jesus joanino fala é, na verdade, a maneira pela qual morrerá: a Cruz. Ali, na crucificação, ou melhor, no Crucificado, o Pai revelará todo o seu poder; a sua Glória. Ela não é algo que vem depois da cruz; ela está na cruz como revelação do amor de Deus em seu Filho, revelação de seu Ser que é Amor. Amor que vai até às últimas consequências.
O Texto é um espelho para a vida! No começo desta narrativa, gregos que peregrinavam em Jerusalém por ocasião da festa da Pascoa quiseram ver Jesus, movidos pelos sinais que ele realizava, e principalmente devido ao (último?) sinal realizado por ele, a vivificação de seu amigo Lázaro. No entanto, acabaram vendo (fazendo experiência) e ouvindo outra coisa, um discurso acerca da Hora do enaltecimento de Jesus. Esperavam um mega show ou uma demonstração fabulosa de (super)poder, mas se depararam com a “in-pontência” do enaltecimento ignominioso e fracassado da cruz. Acabam vendo um Jesus que lhes mostra o Serviço (diaconia) a Ele, e, por conseguinte, à sua comunidade, ao invés do poder, do domínio e da submissão.
É importante que nos questionemos: 1) Que Jesus eu procuro (e quero) ver (fazer experiência)? O Jesus do espetáculo, da “emoção”, da prosperidade, do “passe de mágicas”? Este não é o Jesus do Evangelho! Contudo, se mesmo assim se insistir procurar estas facetas de um Jesus “popstar” ou da “moda”, ele poderá muito facilmente ser encontrado nos púlpitos e nos altares convertidos em palcos ou picadeiros. 2) A realidade de um Jesus servo e suspenso numa cruz é uma imagem fácil de ser assimilada, ou O preferimos todo resplandecente e triunfante? 3) Que imagem de Jesus nossas comunidades tem oferecido ao que pedem para vê-lo?
O tempo quaresmal é marcado fortemente pela temática da conversão. Mas, além de uma conversão – mudança de mentalidade – para Deus e Jesus, se faz necessário e urgente a conversão da imagem que se fez ou se experimentou de Deus em Jesus. Assimilar o mistério de Sua vida que passa pela dinamicidade de um grão de trigo que cai na terra e morre para frutificar.
Pe. João Paulo Sillio.
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