sexta-feira, 12 de março de 2021

IV DOMINGO DA QUARESMA - Jo 3,14-21:


O quarto domingo do tempo quaresmal continua a leitura do evangelho joanino. O texto litúrgico proposto para a meditação eclesial é retirado de Jo 3,14-21. Para compreendê-lo, se faz necessário contextualizá-lo no horizonte da narrativa. O capítulo terceiro situa-se imediatamente após o primeiro sinal realizado por Jesus, em Caná, e depois das palavras ditas contra o templo. Ambos revelam e atestam Jesus como a novidade de Deus na história. Neste capítulo terceiro, Jesus entabula um diálogo com um certo Nicodemos, mestre em Israel, chefe dos fariseus e versado nas Escrituras. Muitos elementos apresentados pelo evangelista estão carregados de simbologia e tem a intenção de conduzir o leitor-discípulo para esta novidade presente em Jesus.

Nicodemos vai encontrar-se com Jesus a noite. A cronologia apresentada pelo evangelista é importante. A noite, para o Quarto Evangelho, é o período cronológico que simboliza as trevas. Trevas e Luz desempenha um papel importante ao interno de toda a narrativa. Para João, a Luz é trazida por Jesus, o qual ilumina – insere no âmbito e na realidade de Deus – a pessoa que se decide por Seu projeto de vida; que adere a Ele. Todavia, era no período noturno que os rabinos tinham o costume de rezar, estudar, ler e meditar a Palavra de Deus – a Torá. Era uma hora propícia em que podiam interiorizar a mensagem divina contida na Palavra. Por exemplo, nos Salmos, encontramos constantemente o salmista que reza, se levanta pela noite para meditar a Palavra. Também Jesus é apresentado, constantemente nos evangelhos, durante a noite, em oração ao Pai. 

Para o homem e a mulher, a noite é, também, o ambiente em que emergem as interrogações e as inquietações mais profundas da existência. Todos aqueles questionamentos que, durante o dia, foram sufocados pelas preocupações cotidianas. Nesse sentido, a noite pode ter sua conotação negativa de uma realidade que precisa ser iluminada (liberada das trevas; de tudo o que é oposição à Deus), mas é, também, uma ocasião propícia para se fazer a experiência com Deus e sua Palavra. Estas duas compreensões não podem ser perdidas do horizonte da leitura e da meditação do texto.

Ora, Nicodemos era um rabino, pertencia ao grupo dos fariseus, um rigoroso observante da Lei, um chefe dos judeus e um mestre em Israel. Ele sentiu-se provocado pelo gesto de Jesus no templo, e o interpretara corretamente: foi um gesto profético. Por isso, quis entender melhor qual a mensagem contida naquela atitude. Não seria certo imaginar que todos os fariseus tenham sentido raiva diante do ocorrido no templo. Entre eles existiam os que viviam uma religiosidade sincera e, que, diante do gesto desconcertante de Jesus no Templo se puseram pensativos. Nicodemos é uma destas pessoas que se deixaram interrogar pelo acontecido. Por isso, ele é o símbolo do discípulo que está começando seu processo de adesão e seguimento à Jesus, e que precisa ser, por isso, iluminado. Ele é, pois, símbolo daquilo que é velho e que necessita ser superado, elevado a um novo sentido, ou mesmo abolido.

Agora é possível situar o diálogo entre Jesus e Nicodemos, o qual está mais para uma homilia (quer seja de Jesus mesmo ou de João). No v.14, Jesus retoma um texto de Nm 21,8, a narrativa da serpente de bronze confeccionada e elevada sobre uma haste (ou estandarte), que curava o povo das investidas das serpentes, durante a caminhada no deserto. “Assim como Moises elevara uma serpente de bronze para salvar o povo, é necessário que o Filho do homem seja elevado”. Palavras muito enigmáticas, que poderiam, inclusive, fazer com que Nicodemos deixasse a conversa. O Filho do Homem é uma figura simbólica presente na literatura sapiencial e apocalíptica. É aquele – que sendo uma figura humana – se põe a realizar o querer de Deus na história (Dn 7).

João coloca na boca de Jesus um verbo muito importante: “levantar”. Mais precisamente, “enaltecido” (gr. ὑψωθῆναι / ypsothínai). O Quarto Evangelho prepara o seu leitor-discípulo para este momento da vida e obra de Jesus, que é o acontecimento da “sua hora”. Esta, trata-se da revelação da glória – da presença -  de Deus em Jesus. Através de seu enaltecimento, Ele revela a presença do Pai, e, este, por sua vez, revela-se todo no Filho. Para João, esta elevação se dá na hora da Cruz.

Esse Filho do Homem é Jesus Crucificado. Sua Cruz é seu enaltecimento. Ora, as coisas do alto das quais Ele fala, referem-se ao seu próprio enaltecimento, que mostra o agir e o revelar-se de Deus. A serpente de bronze levantada prefigura, nesse sentido, o enaltecimento (a elevação) de Jesus, na Cruz. No texto de Nm 21,8, aqueles que olhavam para a serpente, ficavam curados. Na intenção do evangelista, os que dirigem o olhar com fé para Jesus enaltecido na cruz, possuem a vida eterna. 

Olhar (ver), no sentido bíblico significa a capacidade de se estabelecer uma experiência relacional com Deus. Este “ver” indica a atitude da adesão, da decisão, da opção que o fiel-leitor e discípulo faz em relação à Jesus. Adentra numa qualidade de vida, que é a vida do âmbito de Deus. Uma vida que não perece mesmo diante da realidade da morte. O termo (e a realidade) "vida", ao interno do evangelho joanino, substitui o termo Reino de Deus.

Os vv.16-21 comentam os vv. 14-15, porém com uma novidade. João substitui o termo “Filho do Homem” por Filho Unigênito (traduzido mais familiarmente por único (hbr. yahid), “o imensamente querido”). O catequista pretende mostrar a profundidade do mistério que está sendo evocado. Deus amou tanto a humanidade, que deu seu Filho unigênito (o seu imensamente querido), para salvá-la. Uma constatação importante: o verbo usado não é “entregou”, mas “doou” (gr. ἔδωκεν, δίδωμι / edoken, didomein). Deus não enviou Jesus especificamente para sofrer e morrer; não o entregou para que pagasse até a última gota de sangue os pecados da história. Deus não é um sanguinário que quer ser pago com sangue. Ou seja, a salvação que o Filho dado pelo Pai garante à humanidade é a possibilidade – em efeito – de se tomar parte da vida mesma de Deus, trazida e apresentada na novidade que é Jesus de Nazaré.

Deus doa o Seu Filho para que a humanidade, assimilando o sentido e a plenitude de Sua vida (missão e obra), seja recolocada no Seu horizonte divino. A vida do Filho é, nesse sentido, exemplaridade e modelo para o discípulo, através da qual poderá tomar parte da vida divina, dom gratuito de Deus.

O v.18 aprofunda o sentido do verbo “julgar/condenar” (v.17). Aquele que aceita esse Dom, que na fé adere a Jesus, não é condenado por Ele. Mas quem não crê, já condenou a si mesmo. Isso não depende da vontade de Jesus, mas é a consequência da opção do discípulo. Mas João não está falando de pessoas que nunca ouviram falar do Cristo (quer seja naquela época ou hoje). Se dirige àqueles que já conhecem a mensagem cristã. O versículo dezoito tem a finalidade de induzir o leitor-ouvinte a uma pergunta: “vocês comprometem as suas vidas a este Jesus que vocês conheceram como Dom e como amor de Deus?” É a estes que é dirigido o julgamento e a autocondenação.

Diante do espelho do texto, emergem algumas perguntas. 1) Com quais personagens nos identificamos: com Nicodemos, que ainda não fez sua opção/decisão por Jesus, ou por aqueles que aderiram ao Dom de Deus, em Jesus de Nazaré, Senhor e Cristo? 2) Temos acolhido, de fato, a Jesus de Nazaré como Dom por excelência de Deus em nossas vidas? 3) Em nosso discipulado-seguimento a Jesus, em quais horas de nossas vidas nos dirigimos à Jesus para ter com ele, durante a noite (na treva da escuridão, da indecisão, do descompromisso, do medo, da rejeição ao seu projeto) ou na hora da Luz (da decisão, da verdade, da fidelidade e do Amor a ele ao irmão)? 4) É tempo de conversão (mudança de mentalidade). Por isso, pelo que tenho me decido: a novidade do Dom de Deus em Jesus, ou os velhos e superáveis sistemas? 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP. 



 

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