sábado, 25 de fevereiro de 2023

I DOMINGO DA QUARESMA - Mt 4,1-11:


 

A liturgia do primeiro domingo da quaresma nos propõe a meditação do quarto capítulo do evangelho de Mateus. O autor inseriu aqui o episódio da tentação de Jesus. Para bem compreendê-lo faz-se necessário situa-lo no horizonte da obra do primeiro evangelista. No capítulo terceiro, tem-se a narrativa do batismo do Senhor, o ponto de partida para a sua missão. Em seguida, o Espírito, que havia inundado a Sua vida e o tinha investido para a obra messiânica, O leva para o Deserto. É importante compreender a intenção catequética do evangelista, a qual se revela também uma bonita composição literária. Ora, a comunidade de Mateus é uma comunidade judeu-cristã. As tradições religiosas e históricas de Israel lhes são muito caras e servirão de pano de fundo para que ele possa narrar a vida e obra Jesus de Nazaré para os iniciados na fé, em sua comunidade.

Como dito acima, a história, os personagens e a tradição religiosa de Israel são relidas a partir de Jesus. Com efeito, a narrativa do Batismo de Jesus (3,1-13) estabelece uma relação com o evento fundante da vida e história do povo de Israel enquanto povo: a travessia do Mar, por ocasião da fuga do Egito e do Faraó. Assim, como Israel passou pelas águas, Jesus refaz o mesmo caminho de seu povo, passando pelo batismo. Objetivamente, Mateus tem a intenção de explicitar para sua comunidade que Jesus é aquele que revive os passos, a história, a vida e o sofrimento do Povo da Aliança. Temos, então, como pano de fundo do capítulo 3  do evangelho, a passagem do Mar, em Êx 14,15-31.

O evangelista inicia o capítulo quatro informando ao leitor que “Jesus foi conduzido ao Deserto pelo Espírito (1a)”. Se no capítulo 3 Jesus em seu batismo revive a experiência do povo de Israel ao passar pelas águas, Mateus quer ensinar para sua comunidade que a experiência do povo no deserto, é igualmente vivida pelo Senhor. Jesus, no deserto reviveu o êxodo de seu povo. Antes, e fundamentalmente, viveu o êxodo de si, a saída/ruptura de tudo aquilo que lhe poderia dificultar a caminhada e a missão. Êxodo de si mesmo, no sentido de sair e desorbitar-se do que poderia se tornar um caminho oposto ao querer do pai. É importante sair, primeiramente de si e das situações, para poder sair ao encontro do projeto do Pai. Entretanto, nos mostrará a narrativa, Jesus não cometerá os erros de seus antepassados na relação com Deus e com a Aliança.

A narrativa se dá no deserto. Na tradição bíblica, como muito já refletimos, mas é sempre bom fazer memória, o deserto é o lugar apropriado de se fazer a experiência de Deus. É o lugar, por um lado, do estabelecimento da Aliança entre YHWH e o povo (Ex 19 – 21). Mas, por outro lado, lugar de restabelecimento da Aliança rompida pelo povo (Os 2,16). O lugar do retorno. Mas, também de prova e de sofrimento. Por isso, na ambivalência do deserto (lugar teológico, mais do que geográfico) o homem fiel pode fazer a experiência de Deus.

Mateus aponta para esse significado do Deserto quando afirma que durante quarenta dias e quarenta noites Jesus fora tentado ali. O número 40 evoca a vida a experiência de sofrimento do povo de Israel no deserto. Ser tentado por quarenta dias alude para a situação de uma  tentação constante e cotidiana. O verbo utilizado pelo evangelista peiráso (gr. πειράζω) pode ser aplicado para duas situações: a tentação que Deus realiza e aquela realizada pelo sedutor e adversário, Satanás. Como conceber a tentação que vem da parte de Deus? Simples: esta tentação da parte de Deus, chamamos prova. É atitude de Deus em submeter à prova a fidelidade do justo. Portanto, uma ação sempre benevolente e pedagógica de Deus, em relação ao ser humano. É a prova, que adquire, nesse sentido, caráter positivo e instrutivo. Neste processo, em nenhum momento se colocará em jogo ou em risco a integridade da pessoa/discípulo, ou mesmo sua salvação. Tampouco terá caráter punitivo. Por outro lado, a tentação como proposta do Sedutor será sempre aquele artifício, sedução, ou distração que visam romper a relação entre o ser humano e Deus. Colocando a pessoa, inclusive, na contramão do projeto de Deus. Será a lógica da cisão e da ruptura com Deus.

Se faz necessário compreender a figura de Satanás/Diabo. Sempre na teologia bíblica deve se compreender esta figura como “aquele” que se opõe (opositor) ao projeto de Deus, e que causa divisão (divisor). O diabo, nesta narrativa, tem a intenção de dividir e contrapor Jesus ao Pai e Seu projeto. Procuremos progressivamente eliminar de nosso imaginário aquela figura horrorosa de chifre e cara feia, com um tridente na mão. Isso não é cristão. Aliás, a bíblia nunca se preocupou em pintar dessa forma aquele que faz frente aos projetos de Deus. Até porque, personagens muito humanos desempenharam no decorrer das narrativas bíblicas (e nas grandes narrativas da história, não nos esqueçamos) a função de oposição em relação à Deus.  Em outra oportunidade abordaremos mais a fundo esta questão. Para a compreensão deste texto, o que dissemos já é suficiente.

Basta ter presente, que ao longo do ministério de Jesus podemos perceber a constante tentação do messianismo glorioso, da ruptura/cisão diabólica com o projeto do Pai; da autossuficiência e auto-referência; da lógica do poder a qualquer custo; da dominação do outro e de sua consciência, seja através da violência e da força, seja mediante o entorpecimento religioso. É isso que a personagem do tentador/sedutor/divisor coloca diante dos olhos do homem Jesus. Por isso, o texto que temos para a nossa meditação não quer mostrar uma situação estanque e pontual da vida do Senhor, mas o que o acompanhará durante toda a sua vida e ministério.  

No v.2, Mateus nos informa que Jesus jejuou durante os 40 dias de permanência no deserto. O jejum deve ser visto muito além de uma simples privação ou prática exterior. O jejum praticado por Jesus é a capacidade da descentralização ou o desorbitamento de si mesmo: a experiência de desreferenciar-se (tirar a referência de si) para referenciar-se em Deus e seu projeto. A primeira etapa de seu êxodo pessoal. Nesse sentido o Jejuar significa dizer não a toda possibilidade de posse, de acúmulo, de poder, que tendem a tomar o lugar de Deus na vida do homem, fazendo-o centrar-se em si. O Jejum deve abrir-nos para o outro, em atitude de solidariedade humanizadora. Descentralizar e desapoderar a si mesmo para promover e humanizar o outro que nada tem ou tem pouco. É  o primeiro passo para a saída de si, em direção à Deus. E de nada adianta jejuar se a carne do irmão é devorada até mesmo pelo meu acúmulo. Abstenho-me, mas não reparto.

Agora sim, analisemos as tentações. Não percamos de vista aquela ideia chave de Jesus que revive e refaz, por um caminho original e novo, a história e a vida de seu povo. A primeira tentação sofrida por Ele é a da fome. Nela subjaz a tentação do poder espetacular, do messianismo glorioso e exibicionista. Satanás O tenta a transformar a pedra em pão. Ou seja, a sedução para usar em benefício próprio o poder recebido do Pai, visando ter só para si. Ele é tentado a orbitar e curvar-se em si. A fechar-se sobre o dom de si.

A esta tentação Jesus responde que o homem deve centrar-se sobre a Palavra de Deus – ou seja, Deus mesmo: Se Ele caísse na tentação do messianismo baseado no ter, negaria o projeto do Pai que exigia dele caminhar na pobreza, centrando seu coração unicamente no Pai. O Pão que o Senhor se alimenta é o da palavra. Ele refuta a tentação citando Dt 8,3 - "O ser humano não vive somente de Pão, mas sim de toda palavra que procede da boca de Deus". Recusando, assim,  o caminho do materialismo crasso, onde as pessoas centram seus corações nos bens deste mundo e se descuidam da justiça e do amor. A tentação do ter.

A segunda tentação aparece no v.5. Ato continuo, o Diabo leva Jesus para Jerusalém, até a parte alta do templo. Ele propõe a Jesus que se jogue dali, porque se de fato fosse filho de Deus, nada aconteceria a ele pois os anjos viriam em seu auxílio. Mateus cita o Sl 91. Esta tentação sofrida faz recordar ao discípulo o quanto o povo de Israel assumiu esta postura em relação a Deus em todo o AT. O senhor, pelo contrário, não entra nessa lógica. Ele rebate o tentador citando Dt 6,16, onde se afirma: "Não tentem o Senhor, seu Deus, como vocês o tentaram em Massa" (Nm 20,1-13). Ele refaz e reescreve a história de Israel a partir de sua vida centrada e orbitada em Deus, de sua fidelidade ao projeto do Pai.

Em relação a esta tentação, existe outro ensinamento nas palavras de Jesus que Mateus faz questão de recordar para sua comunidade: esta resposta-atitude exemplar do metre pretende frear a irresponsabilidade e leviandade na vivência da fé, do discipulado e da missão; colocar limite à ideia de que se podem fazer coisas levianas ou irresponsáveis no nível de nossa vida ou em relação aos outros e depois clamar “Deus me acuda”; eliminar aquele pensamento comum, “faço meus cinquenta por cento, e Deus faz o Dele”. Isso é errado. É o mesmo que conceber um Deus a altura de nossas irresponsabilidades; um deus “bombeiro”.  A resposta de Jesus é um freio a essa inconsequência, porque para segui-lo se faz necessário ir após ele, tomar a cruz: medir as responsabilidade e consequências para que não ocorram arrependimentos ou frustrações. A tentação do ser.

A terceira tentação nos é mostrada no v.8. Jesus é levado até o alto de uma montanha é lhe é oferecido todos os reinos do mundo e a glória inerente a eles. Notemos que a narrativa apresentada por Mateus desenvolve-se num “creccendo”, isto é, as tentações, uma mais elevada que a outra, coloca Jesus cada vez mais próximo de tomar o lugar do Pai, tornando-se independente dele, como os primeiros pais no paraíso (Gn 3,5). O diabo diz que tudo aquilo será de Jesus se ele se prostrar em adoração. O tentador tem a pretensão de ser a origem de tudo, inclusive do poder de Jesus, quando este, em sua consciência, sabe que tudo recebeu das mãos do Pai (Mt 28,13). Na vida de Jesus, e posteriormente, no itinerário catequético de Mateus, as tentações sofridas, em última analise, pretendiam convence-lo de realizar sua tarefa messiânica fugindo da consequência da sua fidelidade, a cruz.

No v.10 Jesus dá um basta às investidas do tentador, ordenando-o que se afaste. Jesus cita a Lei: somente a Deus devemos adorar e prestar culto (Dt 6,13). A tentação da idolatria foi uma constante na vida do povo de Israel, tanto no deserto quanto já instalado na terra. Ela foi a causa da ruína do povo. Também teria sido a causa da ruína de Jesus. Porém, o Seu coração está totalmente enraizado no Pai. Sua consciência e sua vida estão num êxodo em direção ao Pai e ao projeto do Reino.

As tentações de Jesus foram, e sempre serão as tentações dos discípulos de ontem, de hoje e de todos os tempos e lugares. Mateus quer ensinar para sua comunidade que se o mestre foi tentado durante sua vida, igualmente acontecerá na vida do discípulo. O mestre foi continuamente seduzido a abusar de sua condição de filho de Deus. Porém, Sua atitude foi de firme resistência, tornando-se, assim, um modelo para a comunidade cristã, tentada por toda espécie de falsos messianismos.

Do mesmo modo que Jesus venceu as tentações em sua vida, a comunidade dos discípulos e discípulas pode superar as ilusões das tentações: tendo o projeto de Jesus e do Pai diante dos olhos, o pão da Palavra, a consciência da missão e da vida. Que o senhor nos acompanhe em nosso êxodo quaresmal.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 18 de fevereiro de 2023

VII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 5,38-48:

 


Os versículos propostos pela liturgia dominical deste sétimo domingo do tempo comum são, na verdade, uma ressonância das bem-aventuranças acerca dos mansos (Mt, 5,5) e dos fazedores de paz (Mt 5,9). A vivência deste projeto de Jesus coloca, nesse sentido, o discipulo na condição de semelhança com o Pai. Por isso, sua meditação pode ser iniciada a partir do último versículo do texto litúrgico: “Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (v.48). Este dito de Jesus ajuda a iluminar os versículos anteriores. Primeiramente, se faz necessário compreender o que Ele quer dizer por “ser perfeito” a semelhança do Pai do Céu. No texto de Mateus ocorre uma alteração de Lv 19,2 (“Sede santos como eu, vosso Deus, sou santo”).

Na lei de Moisés, todos os mandamentos de Deus terminavam com a formulação “Sede santos como eu, vosso Deus, sou santo”. Mas este convite não aparece no ensinamento de Jesus. Ele não convida a ser santo conforme a mentalidade e comportamento religioso de seu tempo, ou seja, com todo aquele código de conduta ritual e moralista contidas nas leis de purificação, na separação de tudo aquilo que pudesse ser imundo ou profano. Conforme o costume religioso do tempo de Jesus, estes comportamentos eram tidos como garantidores de um status de santidade. Aqueles que os cumpriam estritamente eram considerados como santos, e, portanto, tidos como pessoas separadas e intocáveis. Já aquele que não conseguia viver as prescrições da lei eram considerados como pecadores, profanos e impuros. Se, ilusoriamente, os fazia crer que se aproximavam de Deus através destes comportamentos, na verdade se afastavam dos outros. Em virtude dessa compreensão e vivência equivocadas acerca da santidade, é que Jesus convida o discípulo e a multidão a outra atitude: assimilar a perfeição do Pai Celeste.

A perfeição do Pai é aquela de um amor compassivo que se estende a todos, sem distinção. Um amor que não considera os méritos das pessoas, mas suas necessidades. A esta necessidade, Deus, o Pai do céu, responde com um amor incondicional. Quando o discípulo assimila este agir de Deus, assemelha-se a Ele na perfeição. E poderá viver com autenticidade e força de sentido tudo quanto se desenvolve nos versículos anteriores desta perícope. A perfeição do discípulo, a semelhança de Jesus e do Pai, o levará a viver os versículos 38-47.

"Vós ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’ (v.38). Jesus se põe a reinterpretar a lei de Talião, prescrita no código legislativo de Hamurabi (uma compilação de leis babilônicas, datadas entre 1700-1800 a.C, que inspiravam até mesmo os povos vizinhos ao confeccionarem suas leis). Esta lei, muito conhecida, foi um marco legislativo positivo para época em que foi elaborada, pois ela colocava limite à prática da vingança e da violência indiscriminada, difundida na época. Reprimia os excessos e regulava as insuficiências legislativas. Dizendo de outra forma, aquele dispositivo legal prescrevia isso: “nada menos do que isso. Tampouco, nada mais do que isso”. Por exemplo, em Lv 24,19-21, “Se alguém fizer uma ferida ao seu próximo, far-se-á o mesmo a ele: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; conforme o dano que tiver feito a outro, homem, assim se lhe fará a ele. Quem matar um animal pagá-lo- á, quem matar um homem deverá morrer”.  

Todavia, ainda se dava margem a uma “regulamentada” vingança e violência "legal". Essa atitude o discípulo não pode assumir. Por isso, Jesus reinterpreta esta prescrição com aquela formula de superação/reinterpretação já conhecida, “Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda! Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto! Se alguém te forçar a andar um quilômetro, caminha dois com ele! Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pede emprestado” (vv.38-42). Os membros da comunidade das bem-aventuranças, chamados a se tornarem construtores da paz, são convidados a quebrar com a ótica do rancor, do ressentimento, que desembocam na violência. Um chamado a conservar um comportamento ativo, que se manifesta na constante tomada de iniciativa. Ou seja, Jesus trata de introduzir na comunidade dos discípulos – e, Mateus, por sua vez, na comunidade a qual destina seu evangelho – um comportamento novo, inédito. 

Atenção! Jesus não convida ou legitima uma atitude passiva diante do mal e da violência, mas ativa. Não ao vitimismo, mas a reafirmação da própria dignidade. Neste caso, perde a dignidade o violento, o agressor, o malvado. E, não quem está no lugar da vítima. Para Jesus, é sempre o violento a perder-se, pois ele mata a relação, rompe com a condição de filho em relação ao Pai, e com a fraternidade, no relacionamento com o irmão. A dignidade e a condição de filho e de ser humano, bem como a liberdade ainda permanecem intactas e indestrutíveis naquele foi tornado vítima pela violência.

A única vez que Jesus foi ferido por uma bofetada, ele mesmo não virou o rosto. Em Jo 18, no processo judaico, o soldado do templo dá um tapa em Jesus. A bofetada desferida com a mão direita, “com o peito da mão”, era é a pior e mais vexatória forma de agressão. Ele apenas pondera: “Se respondi mal, mostra-me em quê. Mas se respondi bem, por que me bates?” Ou seja, Ele induz o soldado a raciocinar sobre o fato. Faz-lhe ver a incoerência da sua ação e da sua violência desmedida, pairando um silêncio constrangedor na cena, que é interrompido pela atitude do sinédrio de levar Jesus à Pilatos, privando, assim, o soldado de pensar e repensar acerca de sua conduta violência. Uma pessoa que pensa sempre será problema para o sistema, para status quo, e, também, para a religião. Importante fazer esta intertextualidade com o evangelho joanino, a fim de perceber a atitude de Jesus como paradigmática para o discípulo. Este não pode ser passivo, mas ativo ao contexto e à realidade que o cerca.

 Não se pode interpretar de modo literal os ditos de Jesus, mas capitar o espírito do que está a dizer. Estas orientações são uma forma de promover no discípulo uma atitude sempre e constantemente novas: romper com a espiral da violência. Por isso, diante da máxima violência, o discípulo do Reino não pode responder com a mesma violência, mas com atitudes que desmontam e anulam o violento. Romper com a lógica da violência, esta deve ser a atitude da comunidade dos bem-aventurados. Ter a capacidade de renunciar inclusive aos próprios direitos, em favor de quem não os possui. Ter uma nova atitude! Talvez, uma máxima ajude a guardar bem estas afirmações de Jesus: ele pede para que o discípulo seja sempre bom, sem ser bobo. 

Jesus continua a interpretar a lei. “Vós ouvistes o que foi dito: 'Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo! 'Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (v.43-45). Parece que o Senhor pede sempre o impossível: amar os inimigos, como sinal de pertencimento a esta nova comunidade do Reino. O amor aos inimigos é o ponto culminante e, pode-se dizer, nevrálgico da mensagem do mestre. O evangelista coloca junto duas realidade oposta, o amor e o ódio. Amar o próximo, para o judeu era muito fácil, pois era considerado próximo aquele que pertencia ao clã, à tribo, ao mesmo povo, nacionalidade e religião. Neste sentido, a hostilidade contra o estrangeiro ou ao inimigo da religião, poderia ser entendida como o ato de odiar a um inimigo.

O evangelista utiliza o verbo agapao (gr. ἀγαπάω), que indica aquele amor qualitativamente diverso, que Jesus adota para si:  atitude de doar e entregar-se em relação, amor e serviço, de bem comum ao outro, que independe da qualidade ou do mérito quem se torna seu destinatário. É aquele amor oblativo que Jesus mesmo vive. Mas, a qualidade do amor existente no discípulo se verifica na capacidade que ele tem de rezar pelo inimigo.

Ora, a oração é aquela atitude de íntima relação com Jesus e o Pai. É o diálogo e a presença sempre constante entre ambas as partes: o ser humano e Deus e, vice-versa. Logo, “rezar pelos inimigos” é a corajosa atitude de colocar em meio a relação (oração) com o Pai, a pessoa do outro, principalmente daquele ou daquela que pode desestabiliza-lo enquanto discípulo e pessoa. Trazer para dentro desta relação com Deus aqueles e aquelas que não se encontram inseridos nas  relações pessoais. Falar a respeito do outro para Deus. De modo a aprender e assimilar as mesmas atitudes de Jesus e do Pai. Nisto consiste ser filho do Pai Celeste. Pois a filiação, no tempo e nos costumes da época, não estava somente ligada ao fato do sangue, da biologia. Ser reconhecido como filho de alguém significava ser reconhecido como seu fiel imitador. O filho só era considerado enquanto tal, porque em suas atitudes encontravam-se refletidas e amplificadas as mesmas atitudes de seu pai. É isto que Jesus quer ensinar para seus discípulos de todos os tempos e lugares.

Jesus revela aos seus a imagem de um Pai que não deixa condicionar o seu amor ao comportamento do ser humano. E a todos igualmente comunica seu amor. Cabe à pessoa acolhe-lo ou não. Assim, o Senhor pede ao discípulo para que imite o agir do Pai. Quando isso acontece, então a vida dele se torna semelhante a vida do mesmo Jesus e do Pai. Portanto, uma vida perfeita.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco e reitor do Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

VI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 5,17-37

 


O sexto domingo do tempo comum continua a leitura do sermão da montanha. O discurso inaugural de Jesus contido no evangelho de Mateus (Mt 5 – 7) iniciou-se com a proposta das bem-aventuranças, as quais sintetizam o sentido da vida e da missão de Jesus e, por consequência, a vida do discípulo e da discípula do Reino. O texto proposto para a nossa meditação é Mt 5,17-37. Um texto denso, composto de vinte versículos que, devido a sua dimensão, não é possível refleti-lo individualmente. Por isso, optamos por realizar uma leitura e compreensão de seu conjunto. Para isso tomemos alguns versículos norteadores que servirão como chave de leitura e auxiliarão a compreender o texto enquanto Palavra de Salvação.

Os versículos 17-37 estão estreitamente conectados com os anteriores. Mateus iniciou o capítulo quinto com as bem-aventuranças (v.1-12), que são o Sal e a Luz para vida de todos aqueles e aquelas que optaram por seguir a Jesus e comprometer-se com sua vida e palavra; eles se tornam também sal e luz para toda e qualquer realidade, circunstância, situação, dando sentido e iluminando a vida e a história humana. Ou seja, assumir a missão de ser sal e luz é uma consequência ética que brota naquele que ouviu a Palavra de Deus anunciada por Jesus. Por isso, o ensinamento continua na tonalidade da prática. Os versículos que se seguem colocam o discípulo-leitor do evangelho Mateus diante de uma constatação: a Palavra de Jesus ouvida – que é, em última análise a Palavra de Deus – deve iluminar e orientar as relações humanas. Não basta apenas ouvir a Palavra. É preciso que ela tenha incidência na vida. Para Jesus, que recupera toda a originalidade da pregação dos profetas, não existe escuta da Palavra e vivência religiosa separada das relações. Isto posto, pode-se mergulhar no texto bíblico.

"Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento” (v.17), diz Jesus. Os ouvintes – multidão e discípulos – se deparam com esta afirmação do mestre, a qual Mateus recupera e transmite para a sua comunidade. Este dito necessita ser lido e compreendido a partir destes dois horizontes. Na verdade, o Senhor não diz que veio para abolir. A tradução latina empobrece o termo, que melhor aparece no original grego. O evangelista, ao escrever o texto, se serve do verbo “demolir” (gr. καταλύω/katalûo). A tradução mais coerente seria “Não penseis que vim demolir a Lei e os Profetas...” Lei e Profetas acenam para a completude das Sagradas Escrituras: as Escrituras como um todo.

Jesus, na perspectiva de Mateus é o novo Moisés, o qual levará à sua plenitude, isto é, a seu cumprimento e realização, a Lei e os Profetas, ou seja, a Palavra de Deus. A forma através da qual Ele realizará esta plenitude das escrituras serão a sua vida, as suas Palavras que, agora, adquirem força de ensinamento autorizado, que apresentam um novo modo de relação com Deus. Não mais através de normas e preceitos, doutrinas e rubricas, mas do amor, da misericórdia e do serviço a todos e a cada um. É isso que o mestre pretende ensinar à multidão e aos discípulos. 

Mas Jesus adverte: “Portanto, quem desobedecer a um só destes mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será considerado o menor no Reino dos Céus. Porém, quem os praticar e ensinar será considerado grande no Reino dos Céus” (v.19). A que mandamentos o Senhor se refere? Não são os mandamentos da lei de Moisés, que todos estavam obrigados a viver. Os pequenos mandamentos a que se refere são as bem-aventuranças. Quem não as viver, e, pior, ensinar os outros a descumprir ou anula-las será considerado menor no reino. Menor, não no sentido da estatura ou da posição que ocupa hierarquicamente, ou seja, no âmbito quantitativo, mas no sentido qualitativo. Não será considerado discípulo do Reino.

A fé e a religiosidade devem acompanhar a vida do discípulo do Reino, segundo Jesus. Por isso, insiste na chamada de atenção: “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus” (v.19). O que seria esta justiça? Este termo aparecerá novamente no capítulo sexto, com a mesma sentença. Mas aqui está relacionada ao agir do discípulo em consonância com as bem-aventuranças. Suas atitudes devem se diferenciar das dos religiosos e líderes do povo, os quais cumpriam a lei e a justiça de uma forma automática, descomprometida da vida e das relações. Bastava que fossem agradáveis à Deus, e que os colocassem numa posição de vantagem diante Dele, em detrimento dos outros. Este era o ensinamento dos chefes religiosos do povo; era a teologia da época de Jesus. Ele não concorda com essa forma de ser, pensar e agir.

Dos versículos 21-37, Mateus pretende mostrar a interpretação que Jesus faz dos preceitos da lei. Interessante que o evangelista acena para o fato de que o mestre interpreta as normas que estavam relacionadas às relações humanas. A cada afirmação da lei, o catequista bíblico coloca a fórmula “Eu, porém, vos digo” nos lábios de Jesus. Esta é uma formula de reinterpretação. São cinco os preceitos que o Senhor se põe a reinterpretar e reordenar à sua forma original, ou seja, ao seu pleno cumprimento. Cinco é um número simbólico que acena para os cinco primeiros livros da lei. O autor do evangelho quer ensinar para sua comunidade leitora e para as gerações seguintes que Jesus é o verdadeiro legislador e intérprete das Escrituras. Ele está, portanto, reinterpretando as leis e levando-as a sua perfeição. Isto é, ao desejo original do Pai ao comunicar sua palavra de Aliança.

A primeira prescrição sobre a qual Jesus se debruça a interpretar e reorientar é a que se refere ao mandamento de “não matar”. É sobre esta que meditaremos somente, pois ela serve de chave interpretativa para as outras quatro.

“Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: 'Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal'. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: 'patife!' será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de 'tolo' será condenado ao fogo do inferno” (v.21-22). Estes insultos, traduzidos pelos adjetivos “patife (gr. Ῥακά/Raká)” ou tolo “(gr. μωρός - Μωρέ/Moré)” dão a conotação de uma pessoa incapaz, desabilitada. Jesus conhece muito bem os sentimentos humanos, mas adverte para o descontrole a que pode chegar o discípulo. Se a raiva se volta em insulto, e, se com o insulto se pretende eliminar e excluir o irmão do horizonte de convivência e fraternidade, já se está matando a possibilidade de vida do irmão. Desconsideração, marginalização e exclusão são meios e mecanismos de morte!

Há consequências: segundo Jesus, qualquer pessoa que assim agir será submetido ao tribunal, ao sinédrio e será, por fim, lançado na geena. Estas duas primeiras instâncias já conhecemos, pois o tribunal é a primeira instância da justiça, e o sinédrio era órgão máximo de justiça, (última instância, composto de setenta e uma pessoas: anciãos, fariseus e sacerdotes). Aparece, todavia, uma novidade em Mateus: a geena. Esta localidade ficava ao sul do templo de Jerusalém. Consistia num grande fosso, onde, na antiguidade, se ofereciam os sacrifícios de crianças primogênitas do sexo masculino ao deus pagão Molok. No tempo de Ezequias, rei de Judá, para coibir essa prática, determinou-se que esse fosso se tornasse lugar de despejo de dejetos e detritos, pondo fim a àquela prática antiga, que nem os profetas e os anciãos do povo conseguiam coibir. A geena serve, nesse caso, de metáfora para a situação degradante que a vida de qualquer pessoa pode chegar quando se rompe com as relações humanas.

A interpretação profunda do delito de matar que Jesus oferece deve levar o discípulo a refletir sobre suas atitudes. Não se mata com violência física, apenas. Mata-se, e, portanto, tira-se a possibilidade de vida e a dignidade do outro com as palavras que ferem e que tem poder de gerar a diminuição, exclusão, marginalização. Este entendimento que o mestre tem lança luzes para as outras quatro prescrições também interpretadas por Ele. O mandamento de não cometer adultério e de não se divorciar, são mandamentos que tocam as relações humanas. Estas atitudes eram frequentemente condenadas pelos profetas, pois atentar contra o matrimônio era atentar contra a Aliança com Deus, da qual esta realidade relacional era metáfora. 

Ora, a Aliança, simbolizada pelo matrimônio era uma relação estabelecida por Deus com o ser humano. Romper ou atentar contra ela representava o risco da quebra da relação com o próprio Deus, mas não só: a quebra da relação com outro. No caso do divórcio e do adultério, desintegrava-se a relação de alteridade, o amor de um para com o outro, e, pior, promovia a marginalização da parte mais frágil, a mulher – conforme a mentalidade machista, patriarcal, mercantil e utilitarista do homem israelita. Colocava-se numa dinâmica de diminuição, marginalização, hostilização quem se devia proteger e considerar. Estas atitudes, na compreensão de Jesus, corresponde ao delito de matar.

Para Jesus, matar as relações com outro seria o mesmo que matar a relação com Deus. Assim como para os profetas já chamavam a atenção do povo de Israel para o perigo de uma vida de fé (a relação de Aliança com Deus), descomprometida da vida real, social e das relações com o outro, o Senhor também alerta os discípulos de todos os tempos e lugares para o perigo de uma vida de aparências com Deus, através de uma religiosidade descompromissada com o amor, a fraternidade, a misericórdia e o serviço para com o outro. Não há, ele, relação com Deus, que não passe pelas relações humanas e fraternas. Por isso, qualquer juramento feito à Deus fica comprometido. É para este perigo que o mestre quer advertir, de modo que seus discípulos não vivam de aparências e da incoerência entre a fé, a vida e as relações interpessoais. Nem mesmo a religiosidade supera relações humanas fragmentadas. As mesmas relações humanas fragmentadas ou desarmonizadas atestam contra a religiosidade vivida, ao mesmo tempo que denuncia a sua incoerência.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

V DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 5,13-16:

 


O evangelho proposto para a liturgia dominical segue na continuidade do texto meditado no domingo passado, as bem-aventuranças, que são o início do Sermão da montanha, o discurso inaugural de Jesus no evangelho segundo Mateus (Mt 5 – 7). Os quatro versículos são poucos, mas muito densos e carregados de significado para os discípulos de todos os tempos e lugares. 

Jesus se dirige aos seus discípulos, usando imagens que são vitais, sobretudo porque são necessárias e insubstituíveis. O texto diz: “Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se tornar insosso, com que salgaremos? Ele não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens” (v.13). Estas palavras, evidentemente, Jesus as dirige para seus discípulos, mas não se pode esquecer que ele também está falando para as multidões. Portanto, estas palavras possuem um alcance universal. Ora, trata-se de um projeto de vida aberto a todos; todos são convidados a viver as bem-aventuranças, como se refletiu no trecho meditado anteriormente (Mt 5,1-12), e, por isso, o chamado a ser sal e luz é, igualmente, aberto.

O Sal era utilizado na antiguidade e no tempo de Jesus para a conserva do alimento; para purificação e, obviamente, dar sabor. Adicionado ao alimento, ele o nutre de paladar. O Senhor usa este tempero para fixar na mente e no coração do discípulo aquele convite proposto nas bem-aventuranças: o chamado a ser feliz, partir do projeto do Reino que Ele proclama. Como o sal que conserva, o discípulo deve conservar o projeto de Jesus em sua vida e na do próximo.

Em primeiro lugar, é o discípulo chamado a conservar em sua vida o projeto das bem-aventuranças, para poder transmiti-lo aos demais, ou seja: manter conservado este modo de vida sonhado por Deus, no coração dos irmãos. Ao mesmo tempo, Jesus, se servindo deste elemento, propõe um modo de ser para o discípulo, a discrição e a capacidade de servir. A discrição: como o sal, que está misturado no alimento, assim deve ser o discípulo, ou seja, ele deve estar misturado na realidade, na história, colaborando para com o nutrimento das pessoas. Ninguém consegue ver o sal quando já está mesclado ao alimento, mas se consegue sentir seu paladar. Assim também deve ser a atitude do discípulo, como o sal, “perder-se” no alimento, ao mesmo tempo que gera a nutrição no irmão. É uma forma muito simples e pedagógica de Jesus ensinar para o discípulo que este não deve ser e estar em evidência, tampouco chamar para si a referência na missão, mas, como o sal no alimento, que não se vê, mas se sente, apontar a direção, indicar o projeto de Deus e de Jesus, sem chamar a atenção. Sem barulhos. Mas com sabor, isto é, com aquela propriedade geradora e alimentadora de vida: as bem-aventuranças.

Jesus diz que o discípulo é “Sal da terra”. Interessante este acréscimo, o qual serve para reafirmar que a utilidade deste condimento não está exclusivamente destinada a uma tarefa, dar sabor ao alimento, mas possui uma finalidade muito ampla: a terra como toda a realidade criada; em todas as circunstâncias. “Sal da terra” acena para o fato de que, independente da situação, ambiente ou circunstância que o discípulo se encontre deve manter verdadeiramente viva a Boa Notícia do Senhor seja em sua vida ou na vida do outro, sem jamais deixa-la faltar.

Neste versículo, em tom de pergunta – uma forma retórica – Jesus ainda adverte: “Ora, se o sal se tornar insosso, com que salgaremos? Ele não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens” (v.13). Como entender este dito? Com o auxílio do texto grego do evangelista. O original traz outro termo par a palavra “insosso”, para expressar a qualidade do sal, moraíno/μωραίνω. Aparecerá, novamente, no capítulo sétimo, quando Jesus falará do homem insensato que construiu sua casa sobre a areia. Moraíno (gr. μωραίνω) indica a perda da razão de sentido. Jesus está advertindo o discípulo, que, enquanto sal, pode correr o risco e a tentação de tornar-se insosso, ou seja, perder sua razão de sentido. Seria uma forma de Jesus dizer, “torna-se sem razão de sentido quem deixou de conservar a Boa Nova em sua vida, quem perdeu ou deixou perder o sabor do Evangelho”. Qual seu destino? Segundo o Senhor, ser jogado fora e pisoteado pelos homens. Entenda-se: este dito não expressa qualquer tipo de condenação, seja da parte de Deus, ou de Jesus àquele que perdeu o sentido evangélico da vida, mas tão somente uma constatação de uma consequência que o mestre faz.

Jesus utiliza outra imagem para indicar a missão do discípulo: “Vós sois a luz do mundo” (v.14). Para um judeu piedoso, tal afirmação deste rabino que ensina gente simples seria inconcebível. Por que? A luz, conforme a tradição bíblica e religiosa do povo de Israel era uma imagem simbólica aplicada à cidade santa, Jerusalém, ao Templo e à Torá, enquanto Palavra de Deus. Mateus discorda e opera uma nova aplicação, ao recordar o ensinamento de Jesus. Para eles, não são mais estas realidades a luz para o mundo, mas os discípulos de Jesus, que, acolhendo seu ensinamento que tem qualidade de Palavra de Deus, é iluminado e pode, portanto, ser luz no mundo e para o mundo. Iluminar a realidade e a história a partir de Jesus. 

O v.16 encerra o texto litúrgico mostrando como que o discípulo ilumina a realidade e a história através das boas obras que realiza: “Assim também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus". As obras das quais fala Jesus são frutos da vida do discípulo, iluminada pelo projeto do Reino, as bem-aventuranças. Com isso, através da vida e da atitude do discípulo de Jesus, transparece e brilha a obra mesma de Deus. Neste sentido é que as pessoas poderão glorificar ao Pai que está no céu: porque Ele torna-se presente e visível através da ação e da palavra de Jesus e de seus discípulos que iluminam a história, a realidade, as situações, as circunstâncias e a vida das pessoas.

Que o evangelho de Jesus possa sempre mais fazer com cada discípulo acolha a vocação de ser sal e luz. Conservar-se a si mesmo no projeto e na realidade da Boa Notícia do Reino e, assim, conservar o irmão neste modo de ser e de existir proposto por Jesus. Que cada discípulo possa favorecer o nutrimento de cada pessoa através do sabor do Evangelho (do Cristo). Que a exemplo do Senhor, cada um possa ser foco de luz a iluminar caminhos, realidades, histórias através das boas obras, as quais revelam Deus-conosco.

Pe. João Paulo Góes Sillio. Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu.