sábado, 25 de setembro de 2021

REFLEXÃO PARA O XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 9,38-48:


O evangelho deste vigésimo sexto domingo do tempo comum, continua a leitura do capítulo nono do evangelho segundo Marcos. O contexto é o mesmo do domingo anterior: Jesus ensinando os discípulos no caminho para Jerusalém. Nesta altura da catequese do evangelista, Jesus já havia feito dos anúncios a respeito de sua paixão. Mas, mesmo assim, os discípulos ainda tinham dificuldades em aceitar o caminho do mestre. Nutriam em si as ideias de grandeza, poder e exclusividades. É a essas coisas que Jesus, na narrativa de hoje procura corrigir em seus discípulos – e Marcos, à sua comunidade.

 Se tivéssemos que perguntar ao texto de Marcos, qual é a intenção de Jesus através do ensinamento contido na narrativa a seguir, poderíamos chegar a uma possível intuição: o Cristo, no tempo de sua pregação aos discípulos, e Marcos, no tempo de sua comunidade pretendem ensinar aos seus, como ser discípulo do Reino e, como não sê-lo. Em outras palavras, quem é discípulo do Reino, e por isso, se coloca no seguimento ao projeto de vida de Jesus, e quem se torna obstáculo – escândalo – para este projeto, mesmo dentro da comunidade dos discípulos.

 Devemos lembrar que, no horizonte da catequese de Marcos, o leitor-discípulo se encontra na segunda parte, a qual se encarrega de narrar o itinerário dos discípulos com Jesus até à cruz. O texto de hoje, não deixa de ser uma exortação à comunidade acerca do seu modo de ser e de agir. Mas uma situação  provoca a catequese de Jesus ao grupo dos discípulos. Vamos ao texto.

 João disse a Jesus: Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue” (v.38). João, filho de Zebedeu, age de modo exagerado, censurando alguém que expulsava demônios no Nome de Jesus. Este, depois de comunicar o mestre de sua atitude é repreendido. Jesus censura-lhe a incoerência. A principal incoerência dos discípulos é o exclusivismo e o fechamento, bem como a tendência ao fanatismo, como que “só nós somos os certos e podemos; ou temos poder”.  Jesus responde: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor” (v.39-40). A mensagem do mestre à João é a seguinte: na comunidade cristã não há espaço para fanáticos.

A atividade de “expulsar demônios” nos evangelhos, e principalmente em Marcos, significa a promoção da liberdade e da dignidade das pessoas. É abrir as portas do Reino de Deus, tornando-o acessível a todas as pessoas. É a difusão da boa nova que transforma vidas, rompendo com as estruturas de morte e opressão vigentes em qualquer sistema. Uma atividade assim, de promoção plena do bem das pessoas não pode ser estranha ao programa e à mensagem de Jesus, independente do grupo ou movimento a qual se pertença. Quem faz o bem ao próximo, está em sintonia com Deus.

Ora, se expulsar demônios no Nome de Jesus, ou seja, fazer e promover o bem, a libertação e a adesão ao Reino de Deus na vida das pessoas é obra de quem está em comunhão com Jesus, e que aceitou seu projeto de amor e de serviço aos irmãos, até às últimas consequências, dar um copo de água adquire a mesma força e tem a mesma importância. É o que pretende ensinar Jesus através do dito contido no v.41. Este gesto era, para a mentalidade semita, uma das maiores demonstrações de hospitalidade e acolhida. A recompensa, aqui, significa a pertença a Jesus e sua comunidade. O ensinamento que ressoa através deste versículo é o seguinte: eles não devem esperar muita coisa, nem grandes adesões; basta um simples gesto de reconhecimento da pertença a Cristo, para que os destinatários sejam recompensados, ou seja, entrem em comunhão com sua vida.

No entanto, quem pretende seguir o caminho oposto, o do exclusivismo, do fechamento e do fanatismo; bem como da grandeza e do poder acaba se tornando ocasião de escândalo. A palavra escândalo vem do grego σκανδαλίζω / eskhandalos, que significa pedra (lit. pedra de tropeço). No ensinamento de Jesus quem age desta forma se torna oposição para o projeto de Deus, e põe obstáculos aos pequeninos impedindo que eles se acheguem à Deus. Os pequeninos são símbolos para os excluídos, os marginalizados, os pobres, os pecadores que estão aderindo à mensagem de Jesus. Escandalizar, aqui, é criar obstáculo ou impedimento à fé e à vida digna. O maior exemplo de escândalo numa comunidade são o espírito de fechamento, exclusivismo, fanatismo, a grandeza e busca pelo poder.

Qual a sentença de Jesus: “ser lançado ao mar com uma pedra de moinho”. Primeiramente, uma pedra de moinho pesava uma tonelada. Em segundo lugar, o mar representava toda a impossibilidade de salvação, pois simbolizava a força antagônica à Deus; significava ainda a impossibilidade de salvação do corpo da pessoa, devido a dificuldade de ser encontrada, não podendo receber uma sepultura digna e, consequentemente, não tendo direito à ressurreição dos mortos do último dia, conforme acreditavam os judeus. Por isso, a nível de curiosidade, a morte por afogamento era muito temida no tempo de Jesus pelos judeus. Com esse dito do v.42, Jesus quer chamar a atenção dos discípulos para o perigo da autocondenação, quando este se torna ocasião de escândalo (obstáculo).

Em seguida, Jesus orienta que se as mãos, os pés e os olhos são ocasiões – favorecem – ao pecado, devem ser cortados e jogados na ghena, no fogo que não se apaga. Muito cuidado com a interpretação deste dito, pois ele não pode ser entendido literalmente Jesus, através destes conselhos orienta que seja cortado o mal pela raiz: aquilo que leva mãos, pés e olhos a serem ocasião de escândalos deve ser “cortado” (tirado fora) da vida do discípulo. A mão, o pé e o olho (cf. vv. 43-47) eram, de fato, os membros do corpo responsáveis pelo bom ou mau comportamento das pessoas, segundo a mentalidade semita.

As mãos, representam todo o agir da pessoa, e a geração e transmissão de vida e de bênçãos. Os pés representam a conduta (símbolo do caminhar), podendo levar a pessoa por caminhos justos e injustos; é melhor não ter pé do que andar por caminhos errados. O olho, como “lâmpada do corpo” (cf. Mt 6,22) é a porta de entrada dos sentimentos e desejos alimentados no coração da pessoa; tudo o que é pensado e discernido no coração, sentimentos bons e maus, passa pelo olho.

Que o evangelho de hoje ilumine nosso discipulado e nos ajude a podar tudo o que leva-nos a ser sinal de escândalo no seguimento a Jesus.

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 18 de setembro de 2021

REFLEXÃO PARA O XXV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 9,30-37:


 

O Evangelho deste vigésimo quinto domingo do tempo comum apresenta o segundo anuncio da paixão feito por Jesus aos seus discípulos. Em continuidade temática ao evangelho da semana passada, onde Jesus, após a confissão de fé da comunidade dos Doze, fizera sua catequese aos discípulos sobre o seu modo de ser e agir como messias, Marcos nos narra mais um ensinamento do mestre sobre o seu messianismo.

O texto de que meditaremos situa-se após o episódio da transfiguração (cf. Mc 9,2-13) e a expulsão de um espírito impuro de um jovem epilético (cf. Mc 9,14-29), podendo ser dividido em duas partes, onde a primeira situa-se no caminho de Jesus e dos discípulos pela Galileia (vv.30-32). Enquanto que a segunda parte se desenvolve ao interno de uma casa (vv. 33-37). Dois ambientes importantes para a pedagogia do evangelista, pois o caminho alude à condição da própria comunidade cristã dos primeiros séculos, em especial a de Marcos, que se encontrava sem lugar físico e seguro para reunir-se em face à ruptura, perseguição e expulsão dos judeus-cristãos das sinagogas judaicas.  Caminho tem a ver com instabilidade, com perigo, mas também com a dinâmica missionária da comunidade cristã: uma comunidade em caminho e em saída. E a casa, por outro lado, representa a necessidade da acolhida, das relações fraternas que devem permear a vida da comunidade cristã: um lugar de compreensão, acolhida e vivência do amor fraterno. Vamos ao texto.

Dos v.30-31, o evangelista nos informa que Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia, só que em segredo. Jesus pretendia ensinar seus discípulos a sós. Ele havia percebido, no episódio da confissão de fé em Cesareia, que a mentalidade dos discípulos sobre ele e seu messianismo estavam equivocadas. Por isso, decide-se por levar os doze a parte para ensiná-los. Era necessários estar a sós com eles para intensificar a catequese.

Mas o que os discípulos não compreendiam? Justamente o fato de Jesus viver sua missão (seu messianismo) na ótica da paixão e do sofrimento. Isso não entrava na cabeça dos que desejavam e esperavam um messias de acordo com as ideologias nacionalistas da época: um político ou estadista que viria restaurar o trono e o ideal davídico. Eles não aceitavam o fato de um messias servo, que devesse sofrer até às últimas consequências. O serviço é uma lógica difícil de se assimilar para quem só tem em mente o poder e a dominação.

Qual o conteúdo deste ensinamento de Jesus? Ele mesmo responde, dizendo que “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará” (v. 31bc). Esse é o segundo anúncio da paixão. Enquanto os discípulos, conforme a ideologia nacionalista, esperavam que o messias matasse, declarando guerra ao poder romano para recuperar o ideal davídico, Jesus afirma o contrário: é ele quem vai morrer. Mas os discípulos não compreendem, nem ao menos ousam interroga-lo. Silenciam, apenas (v.32). É o sinal de quem tem medo de confrontar-se com a realidade e prefere, ainda, refugiar-se em seus próprios esquemas, convicções ou modo de vida desconectados da realidade do seguimento ao Mestre.

O v.33 informa que Jesus e os discípulos chegam em Cafarnaum. Importante essa localização. Foi alí que tudo começara: o seguimento, a relação pessoal com Jesus, a partilha de sua vida. É necessário voltar às origens; recomeçar, ressignificar. Ora, com o caminho da paixão já anunciado por Jesus, se torna cada vez mais necessário reavivar nos discípulos as motivações para o seguimento com bastante clareza.

Jesus, então, toma a iniciativa, mesmo conhecendo-os profundamente, como o Marcos nos informa através de uma focalização interna das personagens, e os questiona acerca da conversa que vinham, ao pé do ouvido, tendo durante o caminho. Marcos ainda informa que “eles ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior” (v. 34). Com isso, o evangelista revela que os discípulos estavam em total oposição ao projeto do mestre. De fato, discutir quem é o maior, significa negar completamente o projeto de Reino de Deus como fraternidade e igualdade. Essa discussão revela ambição e alimenta rivalidade, elementos impensáveis para uma comunidade que deve viver o princípio da igualdade e do amor.

Jesus sentou-se, informa-nos Marcos. Com esse gesto ele retoma para si a imagem do Mestres que ensina seus discípulos. Ele é o único mestre e, por isso, o único maior naquele grupo. Outra atitude questionadora de Jesus: Ele chama para perto de si os doze. Através deste gesto, convida-os a retomar a condição de discípulos e a voltar aos primeiros ventos do chamado e da vocação originária, que haviam perdido devido à lógica da grandeza e da ambição que tinham alimentado. Ora, para aprender é necessário, acima de tudo, proximidade e identificação com o Mestre e com o que ele ensina.

Seu ensinamento é manifestado com clareza: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!” (v. 35). Os discípulos pensam em poder e grandeza, mas Jesus lhes mostra e oferece outro caminho. Só há uma forma de ser o primeiro na comunidade: tornando-se servidor de todos. Significa “renunciar a si mesmo”, como ele já tinha dito anteriormente (cf. Mc 8,34). O discipulado não é um caminho para o sucesso, mas para o serviço. 

O ensinamento de Jesus comporta também uma gestualidade profética e provocadora. O v. 36 mostra-o chamando uma criança e colocando-a entre eles. Devemos lembrar que a criança, tanto na mentalidade semítica do povo de Jesus, como na mentalidade grega era um ser desprezado por sua condição “inacabada”, ou seja, ela ainda não era gente no sentido de pertencer ao povo. Talvez Jesus não queira tanto propor em exemplo a simplicidade da criança (como em Mc 10,13-15 e Mt 18,3), mas antes mostrar que na aparente insignificância da pessoa humilde, porém integrada na obra do Reino em nome de Jesus, se torna presente a vontade do próprio Pai. Ora, a criança também é símbolo dos pequenos, excluídos e marginalizados.

O evangelho deste domingo pretende ensinar para os leitores-discípulos três coisas: 1) a verdade sobre o mestre Jesus e seu messianismo, que não é centrado no poder e na grandeza, mas no fazer-se último e servidor de todos, até às últimas consequências, na doação de sua própria vida, quer acolhendo os pequenos, quer dando de si mesmo na fidelidade ao projeto do Reino de seu Pai; 2) pretende iluminar a conduta do discípulo de Jesus, a de ser o último e servidor de todos; 3) quer orientar a vida e o proceder da comunidade dos discípulos, a Igreja:  ela deve acolher as pessoas consideradas pequenas, humildes, pobres, mulheres crianças e todas as categorias desprezadas pela sociedade, pois elas são destinatárias e protagonistas do Reino. A comunidade e o discípulo só serão, de fato, cristãs se, ao invés de excluir, acolher e reinserir os crucificados e crucificadas de hoje e de sempre.

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 11 de setembro de 2021

REFLEXÃO PARA O XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 8,27-35:


 

O texto bíblico proposto para o vigésimo quarto domingo do Tempo Comum situa-se ao interno do capítulo oitavo do Evangelho segundo Marcos. Este capítulo é importante, pois ele delimita a transição para a segunda parte da catequese evangélica. Dos capítulos de 1 – 8, o evangelista propôs para a sua comunidade uma catequese sobre a pessoa de Jesus, fomentando no leitor-discípulo a pergunta “Quem é Jesus de Nazaré?” As respostas foram sendo dadas a partir da prática, do modo de vida, e, também, através dos gestos de poder que realizava. Todavia, quanto mais ele agia, mais dúvidas suscitava nas pessoas que o seguiam. Para que sua missão não fosse compreendida de modo errado, ordenava que não contassem nada a ninguém acerca de sua identidade após os gestos de poder que realizava.

Agora, do capítulo oitavo em diante (precisamente de Mc 9 – 16), começa um novo ciclo da atuação de Jesus que terá seu desenlace em Jerusalém, no alto do calvário. Nesta segunda parte do evangelho de Marcos, a pergunta se direciona àqueles que se propõem a segui-lo, a saber, os discípulos. O catequista bíblico quer saber se a sua comunidade está pronta para se dizer diante do mestre. Assim, perguntar-se sobre a identidade de Jesus resulta, em última análise, perguntar sobre a identidade do discípulo de Jesus, e se aquele está pronto para, de fato, acompanhá-lo até o alto da Cruz, comprometendo-se realmente com Ele.

O texto começa situando o diálogo catequético de Jesus com os discípulos. Eles estão no território de Cesaréia de Filipe. Lugar situado na fronteira entre Judeus e Gentios (pagãos). Ao mesmo tempo, a cidade funciona como um reduto dos partidários de Herodes, que viviam amistosamente com os poderes romanos. Esta localização geográfica ajuda a fomentar naqueles que ali vivem ideiais messiânicos e nacionalistas. É neste contexto que Jesus, em caminho, inaugura o ensinamento, a seguir.

Interessante notar que o evangelista informa o leitor que Jesus e seus discípulos estão em caminho. Estão em movimento, e não acomodados. O catequista faz questão de evidenciar o aspecto itinerante e a falta de comodidade no discipulado. Por isso, “o caminho” com os inerentes perigos é lugar de catequese e anúncio. Então, Jesus interroga a seus discípulos sobre a compreensão que o povo, a gente simples, tinha a seu respeito (v.27). Ele não está interessado em autopropaganda, tampouco preocupado com o que dizem a seu respeito. Ele apenas quer saber como o povo está compreendendo a sua missão. A sua preocupação não é a do inseguro: “será que gostam de mim?”, ou “estou agradando?”. Ele não está atrás de fama, na mesma medida que não quer se mal compreendido em sua missão.

Os discípulos reproduzem a mentalidade da multidão, dizendo que na cabeça deles, Jesus era compreendido com alguém dentre os profetas. Ainda que os profetas e suas mensagens sejam importantes para a vida do povo, Jesus trata de superá-los. Então, Ele questiona pessoalmente os discípulos: “E para vocês, quem sou eu?”. Pedro (v.29), em nome da comunidade dos Doze responde, confessando: “Tu és o messias”. Resposta acertada. Contudo, ordena-lhes não contar nada a respeito disso. Mais uma vez pede segredo.

Pedro, ao responder (e ao mesmo tempo confessar as expectativas do grupo), está amarrado ao ideal davídico de Messias: o descente de Davi, que viria para restaurar a realeza, bem como recuperar Israel, na base da espada. O ideal messiânico que perpassa a mentalidade dos judeus naquela época era o do messias, guerreiro, líder político e com armas nas mãos. Jesus não quis ser identificado assim. Ele sempre se esquivou dessa ideologia davídica. Por isso pediu, uma vez mais, que os doze guardassem segredo sobre sua verdadeira identidade: a de Ungido de Deus, e, portanto, Messias (gr. Kristós). Pedro responde bem, mais ainda ele está no nível da convicção e de um certo sentimento de fé, e não da fé em profundidade. Ou seja, da fé como aquela adesão, decisão e relação pessoal do discípulo com o mestre, a ponto de conformar sua vida à vida de seu mestre. É claro que o pescador de Betsaida confessa a fé da Comunidade Cristã, mas esta é uma compreensão e uma certeza posterior à ressurreição, porque naquele momento preciso eles não estavam em condições de compreender, de fato, quem era Jesus para eles.

Ciente de que eles precisavam purificar a mentalidade, ainda que tivessem respondido bem, Jesus não lhes fala a partir da categoria ou do título messias, mas lhes ensina sobre a sua missão enquanto “Filho do Homem”. É como se Jesus dissesse: Não pensem num messias que vai acabar com esse conluio de herodianos e romanos! Nem me chamem de messias! Eu vou lhes falar a respeito do Filho do Homem! Termo que pode significar tanto a simples humanidade, quanto a missão divina do protagonista do Reino de Deus (Dn 7,13-14). O Filho do Homem do qual fala Jesus deverá sofrer muito, ser desprezado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, no terceiro dia (cf. Os 6,2), ser ressuscitado por Deus.

Jesus se apresenta, então, aos doze como aquele Filho do Homem, o encarregado de Deus para inaugurar seu agir, seu querer e seu tempo na história. Mas de que modo ele fara isso? Tornando-se um servo padecente. Esse é o primeiro dos três anúncios da paixão presentes no evangelho: “sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da lei; ser morto, e ressuscitar depois de três dias” (v. 31). Ao invés de matar, o Messias Jesus é quem padece e, por consequência, essa deveria ser também a sorte dos seus discípulos.

A reação de Pedro, homem de honra, diante deste anuncio de desonra de seu mestre revela-nos bem que a sua confissão precisava ainda mais de uma purificação. Ele toma Jesus a parte e começa a censurá-lo. Fechado nas ideias de um messias nacionalista, não aceita um messias sofredor. Ele nega, assim, a sua condição de discípulo. E é, por isso, chamado a colocar-se em seu lugar por Jesus.

O v.33 apresenta uma fala severa de Jesus. Ela precisa ser bem compreendida. A tradução correta é “Venha para trás de mim, Satanás”, e não “afasta-te (ou vai para longe) de mim”. “ὀπίσω / Opísso”, é o verbo grego utilizado por Marcos, que significa “ir para atrás” é sinônimo de seguir (gr. akholutein). Como “ir atrás” é terminologia de seguimento e discipulado (cf. v. 34), Jesus ordena Simão comportar-se como discípulo e não como sabichão que quer saber melhor do que o mestre. O termo Satanás significa tentador, opositor e divisor. Jesus censura Pedro porque não pensa segundo pensa Deus, mas segundo pensam os homens (v. 27). Ele não precisa mostrar o caminho a Jesus, mas segui-lo no caminho, como explicará nas palavras a seguir.

Pedro e seus companheiros querem se desvencilhar da cruz. Jesus, ao contrário, afirma que a cruz é condição para o seguimento (v. 34). Ele repreende Pedro, mas não o expulsa do grupo. Apenas subverte sua lógica. Com isso, o evangelista ensina que a última palavra na comunidade deve ser sempre a de Jesus. O discípulo nunca deve tomar o lugar do mestre.

Acontece que Marcos não quer apenas falar do caminho de Jesus, mas também do de seus discípulos, os da primeira hora e os de sempre. Para tirar dos discípulos toda presunção de serem eles os protagonistas de uma revolução messiânica, mistura-os novamente à multidão. Então ensina, a todos: Se alguém quer vir atrás de mim (ser meu companheiro de caminhada), deve negar-se a si mesmo (como também a seus planos) e tomar sua cruz e seguir-me. Pois o que quiser salvar sua vida (literalmente “sua alma”), a perderá; mas o que perder (arriscar) sua vida por causa de mim e do Evangelho, a salvará! Com esse dito, Jesus ensina que é preciso engajar tudo o que somos para realizar (salvar) a vocação que, nele, nossa vida recebe.

Diante do texto bíblico, que acaba por ser nosso o espelho através do qual confrontamos a nossa vida, se fazem necessárias algumas provocações. 1) Quem sou eu nesta Narrativa, em que grupo estou (o das multidões, que ainda não deram um passo significativo em relação à Jesus; o dos discípulos, que tem uma ortodoxa visão a respeito da identidade de Jesus, mas que ainda não colocou sua ortodoxia em relação à ortopraxia (a relação pessoal com Jesus e o serviço aos irmãos, até o fim, assim como Ele fez); ou nos identificamos com Satanás (não uma entidade maligna que invade alguém), mas como opositores do projeto de Deus)? 2) Tenho agido de acordo com a mentalidade o opositor, tentador e divisor na vida da minha comunidade, tendo sempre a pretensão de, ao seu interno, ter a última palavra, correndo o risco de conformar Deus aos propósitos e projetos pessoais? 3) Ou tenho deixado Deus ser Deus, e conformado minha vida e discipulado ao seu projeto, no seguimento de seu Filho Jesus?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 4 de setembro de 2021

REFLEXÃO PARA O XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 7,31-37:


Desde o domingo passado, a liturgia inseriu-nos na leitura do capítulo sétimo da catequese marcana. A narrativa meditada neste final de semana encontra-se na conclusão deste capítulo. O evangelista apresenta Jesus curando um surdo-mudo, depois de ter curado a filha de uma mulher sírio-fenícia. Com essas informações, já podemos compreender um pouco da localização geográfica de Jesus: em território pagão. Eis o texto para o vigésimo terceiro domingo do tempo comum, Mc 7,31-37.

Devemos recordar a estrutura do evangelho de Marcos, de modo a perceber a sua finalidade. Esta é a seção (da formação) da fé dos discípulos, enquadrada entre os capítulos 6,30 – 8,21. O tema da cegueira por parte dos discípulos perpassa todo este bloco narrativo, ela os impede de serem formados na Fé. Outra constatação importante é a delimitação geográfica ilustrada por Marcos. Ele nos mostra Jesus ultrapassando as fronteiras geográficas entre a Galileia e a região siro-fenícia da Decápole. Neste “cruzar as fronteiras”, o evangelista faz ver que Jesus supera as questões de pureza ritual e alimentar que separam judeus e gentios (cf. Gl 2,11-16 etc.), bem como em relação aos tradicionalismos inerentes aos preceitos da lei de Moisés, as quais eram derivações e interpretações humanas da Torah (Decálogo).

A intenção de Jesus consiste em mostrar que o Evangelho que ele anuncia não é como a lei mosaica, restritiva e exclusivista, destinada somente a um povo. Antes, é um anúncio universal, que rompe com as fronteiras e que chama a comunidade dos discípulos a acolher os que antes encontravam-se excluídos do projeto de Salvação universal, sonhado por Deus. Outra característica desta seção consiste em mostrar como deve ser o discípulo do Reino, e sobre quais fundamentos deverá estar alicerçado. Como estas intenções ficam claras no evangelho da semana passada? Quando Jesus supera e aboli para sua comunidade todas as práticas de purificação e pureza ritual, as quais separavam os judeus dos gentios. A comunidade dos discípulos do Reino deve estar aberta e disponível para todos, e alicerçada na escuta da Palavra, para, então, anuncia-la. É o que está em Jogo na narrativa evangélica de hoje. O surdo-mudo é símbolo da comunidade que precisa abrir-se à Escuta da Palavra, rompendo sua surdez, para poder anuncia-la, superando sua mudez! Depois de ter compreendido o contexto do texto, bem como o pretexto do evangelista, que não é outro que o do próprio Jesus, podemos, pois, ir ao texto bíblico.

Marcos informa-nos que Jesus saiu da região de Tiro, passando por Sidônia, rumo a região da Decápole, contornando o mar da Galileia (v.31). Um caminho inusitado, pois seria o mesmo se alguém, saindo do Rio de Janeiro para São Paulo passasse obrigatoriamente por Belo Horizonte. Não devemos nos preocupar com a veracidade da informação, porque os Evangelhos não são crônicas nem noticias de jornal, mas Teologia. Ora, Tiro, Sidônia e as dez cidades da Decápole eram terras pagãs. Com isso, o evangelista diz que, ao contrário da lei, o evangelho não é destinado apenas a Israel, mas ao mundo inteiro. Nenhuma barreira cultural ou religiosa pode impedir a difusão do evangelho, a boa notícia que, de fato, comunica vida. Na verdade, a intenção de Marcos é realmente mostrar a abertura da missão e do anúncio de Jesus aos pagãos, e de mostrar à comunidade que esse deve ser o modo de agir dela: disposta e aberta no acolhimento a todos, sem distinção, sem fronteiras e sem cálculos!

Nesse percurso trazem à Jesus um homem surdo-mudo, e pediram que ele lhe impusesse as mãos (v.32). Surdos e mudos simbolizam, na teologia dos profetas, o povo oprimido, mas, conforme acenamos acima, alude à própria comunidade cristã: fechada para ouvir a boa nova, essa se torna também incapaz de anunciar, ou seja, de falar do amor proposto por Jesus. Ela precisa ser ajudada, assim como foi o personagem surdo-mudo. A surdez era considerada uma maldição, conforme a mentalidade judaica, pois a pessoa ficava impedia e ouvir a proclamação e a explicação da Torá, a instrução divina.

Nos deteremos, agora, na atitude de Jesus e nos gestos realizados por Ele, que revelam, na verdade, a sua pedagogia. Antes, é importante notar que Ele retirou o enfermo do meio da multidão para junto de si, e o levou para um lugar afastado. É significativo este movimento de “saída do meio da multidão”, pois ela sempre teve nos evangelhos, um papel ambíguo e negativo: permeada pela indecisão, indiferença às palavras e ensinamentos de Jesus, falta de compromisso e superficialidade. Afastar-se da multidão é, também, o primeiro passo para se tornar discípulo e discípula. Mas a atitude de Jesus também revela muito da consciência que Ele tem em relação à sua missão. Não quer que os gestos de poder que realiza sejam tidos como espetáculos; que a fé se baseie numa histeria espetacular. Antes, Ele quer ensinar que a Fé é, acima de tudo, uma relação pessoal com Ele. Afastar-se não significa puritanismo nem exclusão, mas a profundidade da relação estabelecida por Jesus.

Os gestos realizados por Jesus são carregados de simbolismos. Eles significam o cuidado ímpar que Jesus dispensa a cada necessitado. Ao tocar, ele deixa sua marca no outro, transmite a sua essência. Tocando nos ouvidos, ele doou o dom da escuta ao Evangelho. Do dom da escuta, nasce o anúncio; é esse o sentido do tocar na língua com a saliva. Para a mentalidade semita, a saliva continha o espírito da pessoa. Com esse gesto, que, aos nossos olhos parece anti-higiênico, o evangelista quer ensinar que Jesus transmitiu seu espírito vivificador àquele homem, tornando-o apto também para o anúncio.

O gesto-verbal, a seguir, é de uma beleza muito profunda: “olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!” (v. 34). O gesto de Jesus olhar para o céu é raro ao longo dos evangelhos. Esse gesto significa a oração e a comunhão de vida que ele tem com seu Pai. É, ao mesmo tempo, o reconhecimento dos limites das forças humanas e a confiança no divino. O imperativo “abri-te” (em aramaico: efatá) é uma ordem dada à pessoa na sua inteireza, e não apenas aos órgãos da audição e da fala. É o que o verbo grego usado pelo evangelista (gr. διανοίγω/dianóigo) quer enfatizar: abrir completamente, escancarar. Assim deve ser o ser humano diante do Evangelho, para que ele possa ser um elemento transformador na vida das pessoas.   

Marcos nos informa a respeito do enfermo que “imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade” (v. 35). Ora, dado o encontro que este homem teve com Jesus, sua mudança foi radical; é o que a Palavra de Jesus é capaz de realizar no ser humano. O evangelista insiste, com isso, na urgência com que a comunidade cristã e o discípulo devem estar atentos ao Evangelho. É preciso ter ouvidos abertos e atentos para ouvir, e a língua livre para anunciar; o que importa é ter coração disponível para o amor, e não centrado nas diferenças ou no exclusivismo como a comunidade cristã estava tentada a viver, reproduzindo os mesmos sistemas do judaísmo antigo. Ela, pelo contrário, deve estar aberta para acolher a Palavra de Jesus, e disponível para anuncia-la a todos, sem distinção!

Em seguida (v.36), Jesus ordena ao homem que não conte nada a ninguém, que não divulgue o fato. Ele não quer que sua missão seja má compreendida, e não deseja que a fé em Deus, que é fundamentalmente uma relação, bem como seu projeto sejam encarados como algo mágico ou supersticioso. Jesus é bem consciente de sua missão e de seu messianismo, que consiste em trilhar os caminhos do Servo de YHWH, sofredor e obediente, que não se exalta nem chama a atenção por aquilo que faz, mas pelo o que é. Por isso, Ele pede segredo. Um segredo messiânico, ou seja, que guarda e conserva a verdadeira identidade de Jesus, que será revelada – nos planos narrativos de Marcos – somente na Cruz, quando um centurião romano, pagão, faz sua profissão de Fé, confessando Jesus como o verdadeiro Filho de Deus. A pedagogia deste segredo pode ter surgido do próprio Jesus em decorrência da autocompreensão que ele possuía de si e de seu ministério; de Marcos, como sendo um recurso pedagógico para que a sua comunidade fosse descobrindo correta, e paulatinamente, a identidade de Jesus de Nazaré, como Filho de Deus; como bem poderia ter sido uma consciência que a própria comunidade ia adquirindo em relação à Jesus. Mas, se quiséssemos, poderíamos pensar na seguinte resposta: Jesus pede segredo porque, na verdade, tem muito mais importância Quem ele É, e a relação pessoal que o discípulo estabelece com ele, do que aquilo que ele pode (ou não) realizar. Nem sempre Deus nos concede aquilo que queremos.

No v.37 temos o desfecho da narrativa. Mesmo diante da orientação dado por Jesus, para que não se divulgasse o fato, “Muito impressionados, diziam: “Ele tem feito bem todas as coisas: aos surdos faz ouvir e aos mudos falar” (v. 37). Ora, fazer bem todas as coisas é a característica do Deus Criador que, ao final de cada obra criada, contemplava que aquilo era muito bom (cf. Gn 1). Fazer bem as coisas é, portanto, agir como Deus. Fazer os surdos ouvir e os mudos falar é a realização das expectativas messiânicas anunciadas pelo profeta Isaías (cf. Is 35,5), o que significa uma nova criação. Assim, Jesus, restituindo a vida e a dignidade àquele homem, re-cria à imagem do Pai, fazendo bem, e elevando a criação ao sua máxima realização (cf. CORNELIO,F, Homilia Dominical, in, porcausadeumcertoreino.blogspot).

A partir do texto, quem somos? Nos encontramos entre a multidão, que ainda não fez sua opção por Jesus, não ouviu sua Palavra, nem se colocou a anunciá-la? Estamos na mesma situação do surdo-mudo, em decorrência da dureza de nosso coração? Que a ordem “abre-te” dada por Jesus possa, de fato, ressoar em nós, abrindo-nos para proclamação do Amor de Deus aos irmãos, aos mais excluídos; sem qualquer distinção. Que possamos assumir as mesmas atitudes de Jesus: olhar com olhos de misericórdia para o irmão, seja ele quem for, e, ao mesmo tempo tocar a carne de Jesus, ao tocar a carne dos irmãos.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré /Arquidiocese de Botucatu-SP.