Desde o domingo passado, a liturgia inseriu-nos na leitura do capítulo sétimo da catequese marcana. A narrativa meditada neste final de semana encontra-se na conclusão deste capítulo. O evangelista apresenta Jesus curando um surdo-mudo, depois de ter curado a filha de uma mulher sírio-fenícia. Com essas informações, já podemos compreender um pouco da localização geográfica de Jesus: em território pagão. Eis o texto para o vigésimo terceiro domingo do tempo comum, Mc 7,31-37.
Devemos recordar a estrutura do evangelho de Marcos, de modo a perceber a sua finalidade. Esta é a seção (da formação) da fé dos discípulos, enquadrada entre os capítulos 6,30 – 8,21. O tema da cegueira por parte dos discípulos perpassa todo este bloco narrativo, ela os impede de serem formados na Fé. Outra constatação importante é a delimitação geográfica ilustrada por Marcos. Ele nos mostra Jesus ultrapassando as fronteiras geográficas entre a Galileia e a região siro-fenícia da Decápole. Neste “cruzar as fronteiras”, o evangelista faz ver que Jesus supera as questões de pureza ritual e alimentar que separam judeus e gentios (cf. Gl 2,11-16 etc.), bem como em relação aos tradicionalismos inerentes aos preceitos da lei de Moisés, as quais eram derivações e interpretações humanas da Torah (Decálogo).
A intenção de Jesus consiste em mostrar que o Evangelho que ele anuncia não é como a lei mosaica, restritiva e exclusivista, destinada somente a um povo. Antes, é um anúncio universal, que rompe com as fronteiras e que chama a comunidade dos discípulos a acolher os que antes encontravam-se excluídos do projeto de Salvação universal, sonhado por Deus. Outra característica desta seção consiste em mostrar como deve ser o discípulo do Reino, e sobre quais fundamentos deverá estar alicerçado. Como estas intenções ficam claras no evangelho da semana passada? Quando Jesus supera e aboli para sua comunidade todas as práticas de purificação e pureza ritual, as quais separavam os judeus dos gentios. A comunidade dos discípulos do Reino deve estar aberta e disponível para todos, e alicerçada na escuta da Palavra, para, então, anuncia-la. É o que está em Jogo na narrativa evangélica de hoje. O surdo-mudo é símbolo da comunidade que precisa abrir-se à Escuta da Palavra, rompendo sua surdez, para poder anuncia-la, superando sua mudez! Depois de ter compreendido o contexto do texto, bem como o pretexto do evangelista, que não é outro que o do próprio Jesus, podemos, pois, ir ao texto bíblico.
Marcos informa-nos que Jesus saiu da região de Tiro, passando por Sidônia, rumo a região da Decápole, contornando o mar da Galileia (v.31). Um caminho inusitado, pois seria o mesmo se alguém, saindo do Rio de Janeiro para São Paulo passasse obrigatoriamente por Belo Horizonte. Não devemos nos preocupar com a veracidade da informação, porque os Evangelhos não são crônicas nem noticias de jornal, mas Teologia. Ora, Tiro, Sidônia e as dez cidades da Decápole eram terras pagãs. Com isso, o evangelista diz que, ao contrário da lei, o evangelho não é destinado apenas a Israel, mas ao mundo inteiro. Nenhuma barreira cultural ou religiosa pode impedir a difusão do evangelho, a boa notícia que, de fato, comunica vida. Na verdade, a intenção de Marcos é realmente mostrar a abertura da missão e do anúncio de Jesus aos pagãos, e de mostrar à comunidade que esse deve ser o modo de agir dela: disposta e aberta no acolhimento a todos, sem distinção, sem fronteiras e sem cálculos!
Nesse percurso trazem à Jesus um homem surdo-mudo, e pediram que ele lhe impusesse as mãos (v.32). Surdos e mudos simbolizam, na teologia dos profetas, o povo oprimido, mas, conforme acenamos acima, alude à própria comunidade cristã: fechada para ouvir a boa nova, essa se torna também incapaz de anunciar, ou seja, de falar do amor proposto por Jesus. Ela precisa ser ajudada, assim como foi o personagem surdo-mudo. A surdez era considerada uma maldição, conforme a mentalidade judaica, pois a pessoa ficava impedia e ouvir a proclamação e a explicação da Torá, a instrução divina.
Nos deteremos, agora, na atitude de Jesus e nos gestos realizados por Ele, que revelam, na verdade, a sua pedagogia. Antes, é importante notar que Ele retirou o enfermo do meio da multidão para junto de si, e o levou para um lugar afastado. É significativo este movimento de “saída do meio da multidão”, pois ela sempre teve nos evangelhos, um papel ambíguo e negativo: permeada pela indecisão, indiferença às palavras e ensinamentos de Jesus, falta de compromisso e superficialidade. Afastar-se da multidão é, também, o primeiro passo para se tornar discípulo e discípula. Mas a atitude de Jesus também revela muito da consciência que Ele tem em relação à sua missão. Não quer que os gestos de poder que realiza sejam tidos como espetáculos; que a fé se baseie numa histeria espetacular. Antes, Ele quer ensinar que a Fé é, acima de tudo, uma relação pessoal com Ele. Afastar-se não significa puritanismo nem exclusão, mas a profundidade da relação estabelecida por Jesus.
Os gestos realizados por Jesus são carregados de simbolismos. Eles significam o cuidado ímpar que Jesus dispensa a cada necessitado. Ao tocar, ele deixa sua marca no outro, transmite a sua essência. Tocando nos ouvidos, ele doou o dom da escuta ao Evangelho. Do dom da escuta, nasce o anúncio; é esse o sentido do tocar na língua com a saliva. Para a mentalidade semita, a saliva continha o espírito da pessoa. Com esse gesto, que, aos nossos olhos parece anti-higiênico, o evangelista quer ensinar que Jesus transmitiu seu espírito vivificador àquele homem, tornando-o apto também para o anúncio.
O gesto-verbal, a seguir, é de uma beleza muito profunda: “olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!” (v. 34). O gesto de Jesus olhar para o céu é raro ao longo dos evangelhos. Esse gesto significa a oração e a comunhão de vida que ele tem com seu Pai. É, ao mesmo tempo, o reconhecimento dos limites das forças humanas e a confiança no divino. O imperativo “abri-te” (em aramaico: efatá) é uma ordem dada à pessoa na sua inteireza, e não apenas aos órgãos da audição e da fala. É o que o verbo grego usado pelo evangelista (gr. διανοίγω/dianóigo) quer enfatizar: abrir completamente, escancarar. Assim deve ser o ser humano diante do Evangelho, para que ele possa ser um elemento transformador na vida das pessoas.
Marcos nos informa a respeito do enfermo que “imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade” (v. 35). Ora, dado o encontro que este homem teve com Jesus, sua mudança foi radical; é o que a Palavra de Jesus é capaz de realizar no ser humano. O evangelista insiste, com isso, na urgência com que a comunidade cristã e o discípulo devem estar atentos ao Evangelho. É preciso ter ouvidos abertos e atentos para ouvir, e a língua livre para anunciar; o que importa é ter coração disponível para o amor, e não centrado nas diferenças ou no exclusivismo como a comunidade cristã estava tentada a viver, reproduzindo os mesmos sistemas do judaísmo antigo. Ela, pelo contrário, deve estar aberta para acolher a Palavra de Jesus, e disponível para anuncia-la a todos, sem distinção!
Em seguida (v.36), Jesus ordena ao homem que não conte nada a ninguém, que não divulgue o fato. Ele não quer que sua missão seja má compreendida, e não deseja que a fé em Deus, que é fundamentalmente uma relação, bem como seu projeto sejam encarados como algo mágico ou supersticioso. Jesus é bem consciente de sua missão e de seu messianismo, que consiste em trilhar os caminhos do Servo de YHWH, sofredor e obediente, que não se exalta nem chama a atenção por aquilo que faz, mas pelo o que é. Por isso, Ele pede segredo. Um segredo messiânico, ou seja, que guarda e conserva a verdadeira identidade de Jesus, que será revelada – nos planos narrativos de Marcos – somente na Cruz, quando um centurião romano, pagão, faz sua profissão de Fé, confessando Jesus como o verdadeiro Filho de Deus. A pedagogia deste segredo pode ter surgido do próprio Jesus em decorrência da autocompreensão que ele possuía de si e de seu ministério; de Marcos, como sendo um recurso pedagógico para que a sua comunidade fosse descobrindo correta, e paulatinamente, a identidade de Jesus de Nazaré, como Filho de Deus; como bem poderia ter sido uma consciência que a própria comunidade ia adquirindo em relação à Jesus. Mas, se quiséssemos, poderíamos pensar na seguinte resposta: Jesus pede segredo porque, na verdade, tem muito mais importância Quem ele É, e a relação pessoal que o discípulo estabelece com ele, do que aquilo que ele pode (ou não) realizar. Nem sempre Deus nos concede aquilo que queremos.
No v.37 temos o desfecho da narrativa. Mesmo diante da orientação dado por Jesus, para que não se divulgasse o fato, “Muito impressionados, diziam: “Ele tem feito bem todas as coisas: aos surdos faz ouvir e aos mudos falar” (v. 37). Ora, fazer bem todas as coisas é a característica do Deus Criador que, ao final de cada obra criada, contemplava que aquilo era muito bom (cf. Gn 1). Fazer bem as coisas é, portanto, agir como Deus. Fazer os surdos ouvir e os mudos falar é a realização das expectativas messiânicas anunciadas pelo profeta Isaías (cf. Is 35,5), o que significa uma nova criação. Assim, Jesus, restituindo a vida e a dignidade àquele homem, re-cria à imagem do Pai, fazendo bem, e elevando a criação ao sua máxima realização (cf. CORNELIO,F, Homilia Dominical, in, porcausadeumcertoreino.blogspot).
A
partir do texto, quem somos? Nos encontramos entre a multidão, que ainda não
fez sua opção por Jesus, não ouviu sua Palavra, nem se colocou a anunciá-la?
Estamos na mesma situação do surdo-mudo, em decorrência da dureza de nosso
coração? Que a ordem “abre-te” dada por Jesus possa, de fato, ressoar em nós,
abrindo-nos para proclamação do Amor de Deus aos irmãos, aos mais excluídos;
sem qualquer distinção. Que possamos assumir as mesmas atitudes de Jesus: olhar
com olhos de misericórdia para o irmão, seja ele quem for, e, ao mesmo tempo
tocar a carne de Jesus, ao tocar a carne dos irmãos.
Pe.
João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré /Arquidiocese de Botucatu-SP.
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