O texto bíblico proposto para o vigésimo quarto domingo do Tempo Comum situa-se ao interno do capítulo oitavo do Evangelho segundo Marcos. Este capítulo é importante, pois ele delimita a transição para a segunda parte da catequese evangélica. Dos capítulos de 1 – 8, o evangelista propôs para a sua comunidade uma catequese sobre a pessoa de Jesus, fomentando no leitor-discípulo a pergunta “Quem é Jesus de Nazaré?” As respostas foram sendo dadas a partir da prática, do modo de vida, e, também, através dos gestos de poder que realizava. Todavia, quanto mais ele agia, mais dúvidas suscitava nas pessoas que o seguiam. Para que sua missão não fosse compreendida de modo errado, ordenava que não contassem nada a ninguém acerca de sua identidade após os gestos de poder que realizava.
Agora, do capítulo oitavo em diante (precisamente de Mc 9 – 16), começa um novo ciclo da atuação de Jesus que terá seu desenlace em Jerusalém, no alto do calvário. Nesta segunda parte do evangelho de Marcos, a pergunta se direciona àqueles que se propõem a segui-lo, a saber, os discípulos. O catequista bíblico quer saber se a sua comunidade está pronta para se dizer diante do mestre. Assim, perguntar-se sobre a identidade de Jesus resulta, em última análise, perguntar sobre a identidade do discípulo de Jesus, e se aquele está pronto para, de fato, acompanhá-lo até o alto da Cruz, comprometendo-se realmente com Ele.
O texto começa situando o diálogo catequético de Jesus com os discípulos. Eles estão no território de Cesaréia de Filipe. Lugar situado na fronteira entre Judeus e Gentios (pagãos). Ao mesmo tempo, a cidade funciona como um reduto dos partidários de Herodes, que viviam amistosamente com os poderes romanos. Esta localização geográfica ajuda a fomentar naqueles que ali vivem ideiais messiânicos e nacionalistas. É neste contexto que Jesus, em caminho, inaugura o ensinamento, a seguir.
Interessante notar que o evangelista informa o leitor que Jesus e seus discípulos estão em caminho. Estão em movimento, e não acomodados. O catequista faz questão de evidenciar o aspecto itinerante e a falta de comodidade no discipulado. Por isso, “o caminho” com os inerentes perigos é lugar de catequese e anúncio. Então, Jesus interroga a seus discípulos sobre a compreensão que o povo, a gente simples, tinha a seu respeito (v.27). Ele não está interessado em autopropaganda, tampouco preocupado com o que dizem a seu respeito. Ele apenas quer saber como o povo está compreendendo a sua missão. A sua preocupação não é a do inseguro: “será que gostam de mim?”, ou “estou agradando?”. Ele não está atrás de fama, na mesma medida que não quer se mal compreendido em sua missão.
Os discípulos reproduzem a mentalidade da multidão, dizendo que na cabeça deles, Jesus era compreendido com alguém dentre os profetas. Ainda que os profetas e suas mensagens sejam importantes para a vida do povo, Jesus trata de superá-los. Então, Ele questiona pessoalmente os discípulos: “E para vocês, quem sou eu?”. Pedro (v.29), em nome da comunidade dos Doze responde, confessando: “Tu és o messias”. Resposta acertada. Contudo, ordena-lhes não contar nada a respeito disso. Mais uma vez pede segredo.
Pedro, ao responder (e ao mesmo tempo confessar as expectativas do grupo), está amarrado ao ideal davídico de Messias: o descente de Davi, que viria para restaurar a realeza, bem como recuperar Israel, na base da espada. O ideal messiânico que perpassa a mentalidade dos judeus naquela época era o do messias, guerreiro, líder político e com armas nas mãos. Jesus não quis ser identificado assim. Ele sempre se esquivou dessa ideologia davídica. Por isso pediu, uma vez mais, que os doze guardassem segredo sobre sua verdadeira identidade: a de Ungido de Deus, e, portanto, Messias (gr. Kristós). Pedro responde bem, mais ainda ele está no nível da convicção e de um certo sentimento de fé, e não da fé em profundidade. Ou seja, da fé como aquela adesão, decisão e relação pessoal do discípulo com o mestre, a ponto de conformar sua vida à vida de seu mestre. É claro que o pescador de Betsaida confessa a fé da Comunidade Cristã, mas esta é uma compreensão e uma certeza posterior à ressurreição, porque naquele momento preciso eles não estavam em condições de compreender, de fato, quem era Jesus para eles.
Ciente de que eles precisavam purificar a mentalidade, ainda que tivessem respondido bem, Jesus não lhes fala a partir da categoria ou do título messias, mas lhes ensina sobre a sua missão enquanto “Filho do Homem”. É como se Jesus dissesse: Não pensem num messias que vai acabar com esse conluio de herodianos e romanos! Nem me chamem de messias! Eu vou lhes falar a respeito do Filho do Homem! Termo que pode significar tanto a simples humanidade, quanto a missão divina do protagonista do Reino de Deus (Dn 7,13-14). O Filho do Homem do qual fala Jesus deverá sofrer muito, ser desprezado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, no terceiro dia (cf. Os 6,2), ser ressuscitado por Deus.
Jesus se apresenta, então, aos doze como aquele Filho do Homem, o encarregado de Deus para inaugurar seu agir, seu querer e seu tempo na história. Mas de que modo ele fara isso? Tornando-se um servo padecente. Esse é o primeiro dos três anúncios da paixão presentes no evangelho: “sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da lei; ser morto, e ressuscitar depois de três dias” (v. 31). Ao invés de matar, o Messias Jesus é quem padece e, por consequência, essa deveria ser também a sorte dos seus discípulos.
A reação de Pedro, homem de honra, diante deste anuncio de desonra de seu mestre revela-nos bem que a sua confissão precisava ainda mais de uma purificação. Ele toma Jesus a parte e começa a censurá-lo. Fechado nas ideias de um messias nacionalista, não aceita um messias sofredor. Ele nega, assim, a sua condição de discípulo. E é, por isso, chamado a colocar-se em seu lugar por Jesus.
O v.33 apresenta uma fala severa de Jesus. Ela precisa ser bem compreendida. A tradução correta é “Venha para trás de mim, Satanás”, e não “afasta-te (ou vai para longe) de mim”. “ὀπίσω / Opísso”, é o verbo grego utilizado por Marcos, que significa “ir para atrás” é sinônimo de seguir (gr. akholutein). Como “ir atrás” é terminologia de seguimento e discipulado (cf. v. 34), Jesus ordena Simão comportar-se como discípulo e não como sabichão que quer saber melhor do que o mestre. O termo Satanás significa tentador, opositor e divisor. Jesus censura Pedro porque não pensa segundo pensa Deus, mas segundo pensam os homens (v. 27). Ele não precisa mostrar o caminho a Jesus, mas segui-lo no caminho, como explicará nas palavras a seguir.
Pedro e seus companheiros querem se desvencilhar da cruz. Jesus, ao contrário, afirma que a cruz é condição para o seguimento (v. 34). Ele repreende Pedro, mas não o expulsa do grupo. Apenas subverte sua lógica. Com isso, o evangelista ensina que a última palavra na comunidade deve ser sempre a de Jesus. O discípulo nunca deve tomar o lugar do mestre.
Acontece que Marcos não quer apenas falar do caminho de Jesus, mas também do de seus discípulos, os da primeira hora e os de sempre. Para tirar dos discípulos toda presunção de serem eles os protagonistas de uma revolução messiânica, mistura-os novamente à multidão. Então ensina, a todos: Se alguém quer vir atrás de mim (ser meu companheiro de caminhada), deve negar-se a si mesmo (como também a seus planos) e tomar sua cruz e seguir-me. Pois o que quiser salvar sua vida (literalmente “sua alma”), a perderá; mas o que perder (arriscar) sua vida por causa de mim e do Evangelho, a salvará! Com esse dito, Jesus ensina que é preciso engajar tudo o que somos para realizar (salvar) a vocação que, nele, nossa vida recebe.
Diante
do texto bíblico, que acaba por ser nosso o espelho através do qual
confrontamos a nossa vida, se fazem necessárias algumas provocações. 1) Quem
sou eu nesta Narrativa, em que grupo estou (o das multidões, que ainda não
deram um passo significativo em relação à Jesus; o dos discípulos, que tem uma
ortodoxa visão a respeito da identidade de Jesus, mas que ainda não colocou sua
ortodoxia em relação à ortopraxia (a relação pessoal com Jesus e o serviço aos
irmãos, até o fim, assim como Ele fez); ou nos identificamos com Satanás (não
uma entidade maligna que invade alguém), mas como opositores do projeto de
Deus)? 2) Tenho agido de acordo com a mentalidade o opositor, tentador e
divisor na vida da minha comunidade, tendo sempre a pretensão de, ao seu
interno, ter a última palavra, correndo o risco de conformar Deus aos
propósitos e projetos pessoais? 3) Ou tenho deixado Deus ser Deus, e conformado
minha vida e discipulado ao seu projeto, no seguimento de seu Filho Jesus?
Pe.
João Paulo Sillio.
Santuário
São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.
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