sábado, 31 de outubro de 2020

SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS - Mt 5,1-12:


 

A solenidade de todos os santos nos propõe o capítulo quinto do Evangelho segundo Mateus. Na catequese mateana, este capítulo funciona como o discurso inaugural de Jesus, encerrando-se em 7,11. Esta primeira catequese de Jesus é de fundamental importância para a comunidade dos discípulos e para as gerações futuras.

Com este discurso inaugural, Jesus faz uma releitura ou uma reinterpretação da Torá, a Lei de Deus, contida no Decálogo. Mateus, em seu propósito catequético e redacional, identifica a Jesus como o novo Moisés, que dá, agora, um sentido novo à Lei, através do discurso inaugural do Sermão da Montanha. Este sermão abre-se com as bem-aventuranças.

Jesus lança as bases do Reino dos Céus, cuja proximidade havia anunciado (Mt 5-7). O Sermão da Montanha corresponde ao modo de ser e agir, propostos aos que são convidados a se tornar discípulo do Reino. Jesus não prega um código dc moral. Suas palavras apontam, antes, para um ideal, um projeto de vida, que tem o Pai como fundamento e modelo (Mt 5,48) (VITÓRIO, 2017, p.42).

As Bem-aventuranças fazem parte do gênero profético de congratulações ou felicitações, podendo ser de estilo sapiencial ou escatológico. Este último alude à promessa de intervenção salvadora de Deus na história para salvar e libertar o ser humano e seu povo. É desse estilo que Jesus se serve nas bem-aventuranças que dirige aos seus.

Após dar início a sua missão, depois de ser batizado por João, o batista, e ter sido tentado no deserto quarenta dias, e retornar para a Galileia e reunir um grupo que se decidira por segui-lo, o evangelista começa o capítulo quinto situando o leitor-discípulo na narrativa, num novo cenário. Jesus, seguido de seus discípulos e de uma multidão que o seguia, conforme somos informados em Mt 4,25, chegou a uma montanha ali no território da Galileia. O autor nos descreve a atitude de Jesus.

Alguns detalhes nos chamam a atenção na redação deste texto das bem-aventuranças de Mateus: o número de ditos, que totalizam 8. E número de termos contidos, que somam 72. O número oito, na tradição cristã, alude ao dia da ressurreição, o oitavo dia, portanto o domingo. É, pois, símbolo para o Ressuscitado. Mateus quer acenar o seguinte para seus leitores, que quem se deixa guiar pelos ditos contidos neste texto possuirá já a plenitude da vida mesma do Senhor ressuscitado. O número setenta e dois alude numero das nações, em Gn 10. Mateus resgata essa ideia para a sua comunidade, a fim de fazê-la ver que o projeto contido na Palavra de Deus comunicada ao povo no Sinai, não se restringe a Israel somente, mas é um projeto de salvação universal, apresentado, agora, em sua originalidade por Jesus no Sermão da Montanha.

“Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los (v.1-2)”.  Dois pormenores merecem a atenção do discípulo-leitor nestes dois versículos introdutórios. A personagem da “multidão” e a montanha (lugar teológico).

Jesus dirige seu ensinamento desde a montanha. Esta é muito mais que uma localização geográfica, mas um lugar teológico. Ela remete o leitor-discípulo do primeiro evangelho a outra montanha importante na história do Povo: o Sinai. Ali, YHWH dera a Lei, o decálogo, à Moisés. Mateus quer ensinar para os fieis discípulos de sua comunidade judeu-cristã, que o que Jesus faz equipara-se e supera o gesto de Moisés, ao transmitir ao povo no deserto a Lei que Deus havia dado.  

A multidão, ao interno do evangelho de Mateus, será sempre aquele grupo que ouve falar de Jesus, se encanta com suas palavras e com seus ensinamentos, mas não dá o passo para o discipulado, ou seja, não compromete a vida com o ensinamento e a vida de Jesus. Os discípulos, pelo contrário, são aqueles que aderem ao ensinamento de Jesus, saem da multidão e dão o passo do discipulado, permanecendo com Ele, para, mais tarde, tornarem-se apóstolos, missionários do Reino. O evangelista afirma que Jesus viu as multidões, mas os que se aproximaram foram os discípulos. Mas é claro que o ensinamento que Jesus dirige também contempla a multidão, visando provoca-la a dar o passo para o discipulado.

O ensinamento contido nas Bem-aventuranças não são palavras de consolação, muito menos uma pregação moralista para suportar, tendo em vista uma recompensa celeste. É um apelo de alegria e exultação, que prepara um anúncio de libertação e intervenção de Deus. Não se trata de oito diferentes tipos de pessoas, e, sim, oito diferentes ilustrações da vida do discípulo centrada no Reino. O vocábulo bem-aventurado, feliz, refere-se à condição de quem é abençoado por ter Deus como centro de sua vida (cf. VITÓRIO, 2017, p.42).

Jesus começa o ensinamento, dizendo: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus (v.3)”. Ele declara serem felizes os “pobres em (ou pelo) espirito”. Quem são estes? Pode admitir dois sentidos, a pessoa dotada da virtude da humildade, que corresponde à interpretação dos textos de Qumran (hbr. ‘anwê ruah), bem como a pessoa pobre no sentido econômico. Quer seja o humilde ou o miserável, este é declarado feliz quando tem a atitude de apresentar-se diante de Deus com as mãos vazias, porque soube abdicar de sua autossuficiência e atitude orgulhosa. E, mesmo sofrendo a exclusão social, se abrem para Deus e nele põem sua confiança. Possivelmente a melhor tradução para esta primeira bem-aventurança seja “pobres com espírito”. Aqueles que se recusam a escolher o caminho da idolatria dos bens deste mundo para mudar a situação. Jesus diz ser destes o Reino dos Céus. Em outras palavras, entrarão no mundo dos ressuscitados para a vida.

No v.4, Jesus declara serem felizes (bem-aventurados) os aflitos (os que choram, em Lc 6). Mateus mudou a versão de Lucas embasando-se na profecia de Is 61, onde se lê que “O Senhor enviou-me para consolar os aflitos”. Os aflitos são aqueles sofrem os golpes de uma realidade que ainda está sob influencia das forças contrárias ao Reino, o Mal. Vítimas da violência e da injustiça, que não tem a quem recorrer, mas que tem a Deus para consolá-las. Quando os valores do Reino não permeiam as relações interpessoais e o tecido social, as pessoas são cruelmente violentadas. São aqueles que se recusam a revidar violência com violência (Mt 5,39; Rm 12,17; 1 Ts 5,15). Jesus declara que Deus mesmo será o consolador, sofrendo com elas (Is 40,1; 61,2). A consolação prometida é a salvação final e definitiva.

Nesta mesma lógica, Jesus diz serem bem-aventurados os mansos (v.4). Os mansos, pela força de Deus, recusam-se a ser violentos e, desta forma, quebram a maldita espiral da violência. Portanto, serão herdeiros da terra que, com seu gesto de resistência não violenta, ajudaram a construir (SI 37[36]) (cf. VITÓRIO, 2017, p.43). Com certeza esta bem-aventurança foi criada por Mateus, inspirando-se no Sl 37. De certo modo ela repete a primeira bem-aventurança. Todavia, em primeiro plano nesta felicitação está a relação com o próximo. Diante dos outros, o manso apresenta-se desarmado, sem defesas nem esquemas ou autoproteção, colocando-se na dinâmica da não-violência. Um modelo perfeito desta bem-aventurança é o próprio Jesus (Mt 11,29, “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração...). Somente os não-violentos, aqueles que quebram a cadeia (espiral) da violência podem possuir a terra (que num sentido metafórico alude ao Reino de Deus).

A bem-aventurança relacionada aos famintos e sedentos de justiça pode ser compreendida de duas maneiras: 1) Os famintos e sedentos da justiça não têm quem os defenda, para fazer valer seus direitos. Na Lei mosaica, todos e, especialmente, os mais fracos e desprotegidos deveriam ter um protetor (go’el). No projeto de Jesus, o Pai, em pessoa, será o go’el dos discípulos do Reino. Esta bem-aventurança é difícil de traduzir do original grego, que, literalmente poderia vir traduzida assim “Felizes os famintos e sedentos da justiça”. O artigo “a” faria referência à Justiça do Reino (cf. Mt 5,20). E, sendo assim, esta bem aventurança abre-se para uma segunda interpretação: 2) os bem-aventurados por terem fome e sede da Justiça do Reino são saciados quando colaboram para que esta Justiça (que é o agir e a vontade de Deus acontecendo na história) se cumpra, ou seja, se propõem a fazer aquilo que o pai quer.

No v.7, Jesus declara: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. Um tema muito querido por Mateus. A misericórdia na bíblia não se trata de um sentimento, mas de uma atitude operativa em favor do outro. É uma atitude relacionada à vida concreta. Na mentalidade do evangelista, o Pai, no último juízo, se mostrará misericordioso com aqueles que viveram uma existência pautada pelo amor o pela misericórdia para com o próximo. Quem tem o coração cheio de misericórdia assimilou o modo de ser de Deus, cuja bondade é eterna (SI 136 [135]). Assim, será também destinatário especial da misericórdia do Pai (cf. VITÓRIO, 2017, p.43).

A bem-aventurança relacionada à pureza de coração deve ser entendida corretamente. São aqueles que são puros desde o íntimo do ser, para além das aparências. Não são pessoas de fachada. Sem falsidades e sem dolo. São transparentes, e essa condição os coloca lado-a-lado com Deus.

Os “fazedores de paz (gr. eirehnopoioí)” empregam toda sua vida para construir o Shalom (paz) neste mundo, propiciando um nível de vida humano e justo onde todos desfrutem do bem-estar e da prosperidade. Serão chamados filhos de Deus por construírem o mundo querido por Deus. São aqueles que colaboram para o diálogo, a concórdia, a reconciliação entre as pessoas, costurando novamente os fios corroídos e selando os laços afrouxados da relações humanas. Jesus diz que, no último dia, estes serão reconhecidos solenemente por Deus como autênticos filhos seus.

Nos vv.10-12, Jesus diz diretamente aos discípulos (bem-aventurados vós...) que estes são felizes por serem perseguidos por causa da Justiça, recebendo injurias, sendo perseguidos e alvos de mentiras por causa dele. Os discípulos deverão se alegrar e exultar, porque a recompensa nos céus será grande. Quem assume viver a dinâmica do Reino, abraçando a causa de Jesus, atrai sobre si insultos, perseguições, mentiras e maledicências. Todavia, os perseguidos por causa da justiça não devem temer, tampouco recuar, pois já possuem a recompensa mais valiosa: o Reino dos Céus. Essas situações difíceis são para eles motivos de alegria e de exultação, contrariando as expectativas do mundo que os quer tristes e derrotados. Sua sorte se compara à dos antigos profetas (cf. VITÓRIO, 2017, p.43).

As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta.

O discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo ingênuo ou mesmo estéril; que faça pensar ou conceber a santidade, a que todos somos chamados, como sendo algo de outro mundo ou só possível a alguns “separados ou alienados” da realidade. A santidade vive-se na dinâmica relacional e histórica, ou seja, através das relações fraternas restauradoras da dignidade humana, e nesta realidade bem concreta. Por isso, é preciso ter clareza que o programa de vida de Jesus, as bem aventuranças, não se trata de um discurso alienante ou desvinculado da realidade concreta; tampouco um conjunto de ditos moralizantes, mas como processo de seguimento e discipulado, bem como balizas para se viver o projeto do Reino aberto e proposto a todos os batizados e batizadas.

No hoje de nossa vida e de nosso discipulado podemos nos considerar bem-aventurados pelo Senhor? Estamos na multidão já conseguimos dar o passo do discipulado, assumindo as Bem-aventuranças como nosso programa de vida? Nossas comunidades se encontram inseridas nesse projeto de seguimento e discipulado ou concebem-se santamente alienadas e separadas da realidade concreta e histórica onde é chamada a viver e testemunhar a verdadeira santidade de vida? Ora, não vivemos a aventura da santidade sozinhos. Somos chamados à santidade com os nossos irmãos e com eles e através deles nos santificamos também. Será conseguimos reconhecer os bem-aventurados de Hoje? Aprendamos também com eles. 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia Sagrada Família /Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 24 de outubro de 2020

HOMILIA PARA O XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 22,34-40:

 


O evangelho deste trigésimo domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo 22 do evangelho de Mateus, o qual apresenta o último conflito entre Jesus e as lideranças do povo. Devemos sempre situar a cena em seu contexto. Jesus está em Jerusalém e ali acirra-se a resistência, a recusa e a rivalidade por parte dos chefes do povo. Nesta perícope, o evangelista apresenta o último ataque empreendido por eles contra Jesus.

No templo, Jesus tratou desmascarar as ações dos chefes, acusando-os de ladrões e assassinos. Ladrões, porque cooptavam o povo simples para si, usurpando o lugar de Deus, e assassinos, porque o faziam pela força. Diante deste agouro provocado por Jesus, as autoridades tratam de deslegitima-lo diante dos seus seguidores. Todavia, Jesus sai sempre vencedor destes conflitos, e seus seguidores, por outro lado, seguem entusiasmados com Ele.

“Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus” (v.34). O narrador se refere ao questionamento que os saduceus fizeram a Jesus acerca do tema da ressurreição dos mortos. Os fariseus, tendo conhecimento do fato, “reuniram-se em grupo” para novamente testarem a Jesus. Aqui, o autor do evangelho serve-se do Sl 2,2, onde se lê que “os reis da terra se reuniram” contra o Senhor Deus de Israel. Mateus opera a reinterpretação do texto do salmo à luz de Jesus, de modo a iluminar a vida da sua comunidade de fé que passa à limpo a vide de Jesus de Nazaré, a fim de reconhece-lo messias esperado.

Quem lhe dirige a pergunta é um legista, ou seja, um doutor da lei, o qual tinha um valor e peso muito altos em suas palavras, somado ao fato de que era um perito da Escritura; os fariseus unem forças com esse outro grupo visto que no texto bíblico do domingo passado saíram frustrados ao juntarem-se com os herodianos na questão do imposto. Os fariseus, unidos aos doutores da lei querem tentar a Jesus. Mateus utiliza o verbo “tentar” (gr. πειράζων / peiráson), que já apareceu no capítulo 4, na narrativa das tentações no deserto, por parte de Satanás. Este verbo segue sendo utilizado pelo evangelista para ilustrar as ações dos fariseus, escribas, saduceus frente a Jesus. Ora, o que Mateus está querendo insinuar para a sua comunidade é que os chefes religiosos do povo, ao invés de serem instrumentos de Deus, estavam a serviço do opositor, de Satanás; do Diabo, aquele que gera a divisão. Enquanto o Deus de Jesus é amor que se coloca à serviço, o deus deles é o poder que deseja dominar. Aquele que está ao lado do poder age conforme Satanás.  

Eis a tentação: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” (v.36). Novamente o título de mestre aparece na boca daqueles que se posicionam hostis a Jesus. Atenção: a pergunta não está colocada com a intenção de se recolher através da resposta um ensinamento importante, mas está posta na intenção de condenar. Os doutores e fariseu sabem qual é o maior mandamento da lei de Moisés: é o mandamento do repouso sabático; a prescrição para guardar o Sábado. A observância deste único mandamento correspondia ao cumprimento de toda a lei. Sua transgressão equivalia à transgressão de todos os outros mandamentos. Para isso estava prevista a pena de morte.

Mas por que interrogam a Jesus sobre isso? Evidentemente porque Ele já havia atuado em dia de Sábado, em favor da gente simples e sofredora. Quando Jesus foi interrogado pelo jovem em Mt 17, ao elencar os mandamentos, Ele deixa de fora da lista os três primeiros mandamentos e grandes mandamentos relacionados exclusivamente à Israel. E indicou aqueles que encontram-se ligados às relações humanas e fraternas, e, que, por sua vez, adquiriam relevância universal, e não aqueles que ficavam confinados ao povo de Israel.

Jesus responde à pergunta-armadilha sem citar os mandamentos. Ele responde com a profissão de fé religiosa do povo de Israel, contida em Dt 6,4, o Shemá (Escuta, ó, Israel), ainda que Mateus omita a ordem/verbo “escuta”, ao contrário de Marcos, que o explicita. “Jesus respondeu: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento!” (v.37). Interessante é a mudança (ou releitura) que o próprio Jesus faz do Shemá. No texto contido em Dt, não aparece a palavra entendimento/mente, que Jesus se serve, mas a palavra “força”.

Ora, na compreensão e experiência de Deus que Jesus faz e transmite através de sua vida, o Deus de Israel não é aquele que se alimenta e consome-se da força vital do ser humano, do homem de fé; mas é aquele que dá a vida, que promove o nutrimento do homem. O Deus de Jesus não é um deus que pede, mas que dá, oferece-se e propõe-se em gratuidade.

Jesus acrescenta que este é o maior de todos os mandamentos. Mas este não é um mandamento. Ele, então, o eleva à condição de mandamento. Na perspectiva de Mateus, Jesus atua na ruptura, continuidade e superação da história de seu povo. Imediatamente, acrescenta: “O segundo é semelhante a esse: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (v.38). Ele toma a prescrição de Levítico relacionado ao amor ao próximo. Para Ele, não há relação de amor com Deus que não passe pela relação humana e fraterna com o próximo, com o outro.

Se faz necessário questionar-se sobre o seguinte: é difícil entender como que um doutor da lei interroga a Jesus sobre a pergunta mais simples: Qual o maior dos mandamentos. Qualquer criança do ensino básico, bem como o bravo israelita, ao acordarem pela manhã rezam a profissão de Fé “Shema Israel”. Imagine-se o doutor da lei, diante de Jesus, chamado por todos de mestre, fazendo uma pergunta concernente a um aluno de primeira série do ensino religioso.

Jesus responde tranquilamente. Ele sabe a resposta: “Amaras o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda alma e com todo o teu entendimento”, isto é, com todo o teu “ti mesmo”. Este é o maior e primeiro mandamento. O segundo é igual: “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Interessante: à Deus, com o todo de “ti mesmo” e ao próximo como ti mesmo.

Na lista formal e oficial das seiscentas e treze prescrições, elaboradas por Maimonedes, o mandamento “amarás o teu próximo como a si mesmo”, ocupava o ducentésimo sexto (206º) lugar. Antes deste, portanto, vinham duzentos e cinco mandamentos. Jesus o desloca de lugar, colocando-o em segundo, e igual ao primeiro. Ora, recordemos que toda a cena deste confronto acontece ao interno do Templo de Jerusalém, quando todos estão ali para cumprir o Primeiro mandamento; quando todos estão lá para olhar para Deus e amá-lo. Daquele lugar, Jesus se lembra do próximo. Não há como amar à Deus sem que se ame o próximo. Toda a Lei e os Profetas se sustentam nestes dois mandamentos.

Não são dois mandamentos a mais, de uma lista maior. Não. Eles são os sustentáculos de toda a Escritura viva que norteia a vida do homem. Jesus já havia dito isso no Sermão da Montanha, quando disse “faça aos outros aquilo que os outros façam a você”, e acrescentou que toda a Lei e os Profetas, dependem disso. Um paralelo com o Evangelho de João é oportuno. O evangelista sintetiza os mandamentos num único mandamento: “amar ao próximo”. E é interessante que, no momento em que se discute sobre a autoridade de Jesus, ele recorda ao legista – aquele que tem autoridade de fazer e explicar as leis, e quase sempre em benefício próprio – que o poder de Deus está em comandar o que é impossível e exigente, o amor. Nenhum poderoso tem um poder tamanho que possa dizer “você tem que me amar”. Não se obriga ninguém a amar. No momento que Deus diz que o primeiro e o segundo mandamento enquadram-se no amor, Ele está renunciando a ser amado. Consequentemente, a única atitude que ele tomará será a de nos amar por primeiro, como nos dirá o Quarto Evangelho.

Toda a narrativa se dá ao interno do Templo de Jerusalém. Aquele templo que, na época de Mateus, já não existia mais. Havia sido destruído pelas legiões romanas. O evangelista, com esta reinterpretação feita por Jesus, que recupera para a sua comunidade quer dizer: “o verdadeiro templo é você mesmo”, “com o todo de ti mesmo, tu amas a Deus; como a ti mesmo, tu amas o teu irmão”. Este é o templo e o culto que agradam a Deus e que nos insere na pedagogia de Jesus.

Quando todos olham para Deus, então Jesus reorienta o olhar para o irmão. O amor à Deus passa pelo amor, pelo cuidado, pela compaixão para com o próximo. Este é o culto agradável à Deus. Não há outro. Qualquer outro é ilusão e mentira. Muitas vezes transformamos a religião em algo que é “para mim mesmo”; isso será o estrago maior para a religião.  Ela não é para mim. Ela é para Deus e para o irmão.  

Na sua resposta Jesus elenca não um, mas dois mandamentos presentes na lei mosaica, um do Deuteronômio (6,5), e o outro no Levítico (19,18). Em concreto, ele quer afirmar a equiparação prática entre o amor a Deus e o amor ao próximo. Os dois mandamentos estão implicitamente situados no mesmo pedestal.

Jesus conclui sua resposta, dizendo: “Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (v.40). Lei e Profetas são a síntese das escrituras sagradas de Israel. Jesus, ao elevar à condição de mandamento o amor à Deus e ao irmão, está dizendo que toda a Sagrada Escritura (Lei e Profecia) se alicerça nesta ordem relacional, neste modo de ser e de existir a partir do horizonte de Deus, encarnado na história, através do amor para com o próximo.

Por fim, uma vez mais Jesus sai vitorioso da armadilha pretendida pelos chefes do povo, no intuito de deslegitimá-lo. Jesus sai vencedor ao proclamar uma nova realidade nas relações entre Deus e o ser humano, não mais embasada sobre a prática e observância dos preceitos da lei, mas sobre a acolhida e a prática de Seu amor.

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

HOMILIA PARA O XXIX DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 22,15-21:

 


A liturgia deste vigésimo nono domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo 22 do evangelho de Mateus, a partir do v.15, o qual apresenta-nos uma controvérsia entre Jesus e as lideranças do povo, os fariseus, seus discípulos e os herodianos. O tema do conflito é o imposto a ser destinado ao imperador. Os capítulos e versículos precedentes mostraram uma série de acusações feitas por Jesus às autoridades do povo. As autoridades do povo revidam, a partir de agora. É a vez delas atacarem e tramarem contra Jesus. Tratarão de desacreditá-lo diante de seus seguidores.

 

O texto original começa assim: “Então, os fariseus fizeram um plano para apanhar Jesus em alguma palavra” (v.15). O adverbio “então” serve de conexão com o evento anterior, a parábola contada por Jesus sobre a festa de casamento, que denunciara a recusa dos primeiros convidados para as bodas, metáfora para as lideranças que agiam mediante a conveniência própria. Nesse sentido, o que virá a seguir será a reação dos chefes do povo em relação à Jesus. A conveniência é o que determina o agir das lideranças religiosas. A expressão “fizeram um plano (lit. reuniram-se / juntaram-se; gr. συμβούλιον)” nos evangelhos soa sempre negativamente, e indica uma trama, um complô. Atenção para a informação que Mateus dá à seus leitores.

 

“Então mandaram os seus discípulos, junto com alguns do partido de Herodes” (v.16a). Fariseus e herodianos são os grupos que rivalizam com Jesus nesta narrativa. Porém, ambos se odiavam. Os Herodianos, partido de Herodes, assim como ele eram favoráveis à dominação romana, uma vez que o tetrarca era um fantoche do poder imperial. Os fariseus, por sua vez, eram contrários à dominação romana. Mas para ambos existe um perigo em comum: Jesus. Agora, colocam-se lado a lado para eliminá-lo.

 

Os rivais entabulam um diálogo com Jesus, chamando-o de “Mestre”. Este vocativo está sempre na boca dos adversários de Jesus ou daqueles que lhes são hostis no Evangelho de Mateus. Faz parte do vocabulário adulador. Todavia, a afirmação que fazem sobre Jesus é correta: “sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências” (v.16b). Reconhecem que Jesus mostra o caminho de Deus segundo a verdade, porque não se deixa levar pelas opiniões dos outros, nem julga segundo as aparências. Eis aqui uma diferença entre Jesus e os chefes do povo, que procuravam realizar as coisas visando admiração e procurando a própria vanglória. Jesus, ao contrário não faz isso; não se referencia a si mesmo, tampouco procura sua própria glória. Não faz nada visando suas conveniências, mas as o bem do ser humano. Quando se coloca o bem do outro acima de suas próprias conveniências, já não se faz mais conta das aparências. Já não se leva mais a sério a opinião dos outros. Na verdade, Mateus pretende mostrar através desta constatação feita pelos fariseus e herodianos, que Jesus é diferente daquelas autoridades.

 

No entanto, eis a insídia: “Dize-nos, pois, o que pensas: É lícito ou não pagar imposto a César?” (v.17). Observe-se que a fala dos chefes está na forma imperativa. Não se está, da parte deles, pedindo uma opinião. Antes, estão exigindo de Jesus uma resposta. Não é um pedido, e sim, uma imposição. Estão impondo a Jesus uma posição acerca do imposto que devia ser pago por todos (entre 12 a 65 anos) ao poder dominador: Roma. Trata-se de uma pergunta auspiciosa. O imposto já havia gerado muitas revoltas ao interno da vida do povo. Basta recordar a revolta liderada por Judas, o Galileu, que levantou contra o poder imperial por conta desse tributo. É, pois, uma armadilha em forma de pergunta. Dependendo da resposta se desencadeará o agir dos líderes.

 

Se Jesus responde afirmativamente irá contra a Lei, segundo a qual o único Senhor do povo é Deus, e, neste caso estaria afirmando ser Cesar maior do que Deus. Não esqueçamos o fato de que a cena se dá ao interno do pátio do Templo. Se Jesus responde de maneira negativa pode ser acusado de agitador e de subversivo frente ao poder romano. Jesus pode ser preso imediatamente pela guarda do templo, se se posicionar dessa forma.

 

Ora, se os chefes se dão ao direito de preparar uma armadilha a Jesus, este da mesma forma lhes devolve a resposta em gesto e pergunta. Depois de chama-los de hipócritas e constatar a armadilha, ele lhes pede uma moeda e põe lhes a pergunta: “De quem é a figura e a inscrição desta moeda? Eles responderam: De César” (v.20). Os chefes mostram-no uma moeda romana. Estas eram confeccionadas com a efigie do imperador, no caso Tibério, numa das faces da moeda, em que se trazia a inscrição “Divus Augustus Pontificis Maximus (Divino Cesar, Augusto e máximo pontífice)”, e, na outra face da moeda encontrava-se gravada a efigie de sua mãe, representada pela deusa da paz. Mas ao interno do Templo era proibido trazer consigo moedas romanas, justamente devido ao fato de que elas apresentavam o imperador como um ídolo, e, segundo o Deuteronômio, se proibia fazer representações de figuras humanas, porque era isso que as religiões pagãs vizinhas de Israel faziam. Ora símbolos pagãos eram proibidos dentro do santuário. Por isso, a existência das bancas de cambio no pátio do templo, para trocar a moeda romana pela do templo. O que fazem ali com uma moeda romana as lideranças judaicas?

 

Precisamente é essa a denúncia que o evangelista deseja fazer: mostrar que são pelos seus próprios interesses que as autoridades do povo agem. Este é o verdadeiro deus a quem os fariseus prestam culto. Ora, aqueles que travavam com o povo uma luta sobre o que é puro e o que é impuro; eram escrupulosos e meticulosos no cumprimento do preceito, portam consigo, ao interno do templo, lugar da pureza ritual, algo que é impuro diante da Lei. Quando se trata do dinheiro e de suas próprias conveniências passam por cima de tudo; relativizam a tudo. Eis a armadilha que lhes faz cair Jesus.

 

Jesus não responde se é lícito ou não pagar o imposto. Ele usa outro verbo que dá a ideia de restituição. Ou seja, se as lideranças são contrárias a ideia da dominação romana, deverão, pois, devolver e restituir à Cesar a moeda que lhe pertence, e não ficar com ela em poder deles. Se não querem, portanto, a dominação de Cesar, não devem usar para benefício próprio aquilo que é dele. Devolvam-no, é o que quer dizer Jesus. Por isso, “Dai, pois, a Cesar o que é de Cesar” (v.21).

 

“A Deus, o que é de Deus”. O que é preciso dar a Deus, segundo Jesus? Aqui deve se recordar a parábola dos vinhateiros homicidas. Aqueles vinhateiros eram metáforas para as lideranças do povo, os quais usurparam o lugar de Deus na vida religiosa do povo. Portanto, o que deve ser devolvido a Deus é o seu lugar, tomado pelos chefes. Esta é tarefa realizada por Jesus em toda a sua vida e ministério público.

 

Dobrar os joelhos diante de Deus significa logicamente recusar dobrá-los diante dos homens. Reconhecê-lo como Senhor comporta a negação de qualquer pretenso senhorio humano sobre as pessoas. Devolva-se o imposto ao imperador, mas a Deus seja tributada a adesão total e exclusiva das nossas pessoas porque nós não temos um outro Senhor (BARBAGLIO, 1998, p.329).

 


Devolver a César o que é de César é, portanto, dizer não a todo poder que se absolutiza – seja ele religioso ou político – gerando usurpação, exploração e dominação. Dar a Deus o que é de Deus significa lutar para que todos tenham liberdade e vida, sejam quais forem as formas de dominação e de morte.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

MARIA: O PEQUENO EVANGELHO. Artigo de Pe. Jean Richard Lopes:

Maria: o pequeno evangelho!

Jean Richard Lopes e Edward Guimarães (PUC Minas)[1]

 

RESUMO: Maria como símbolo que recolhe inúmeros sentimentos dos fiéis. Símbolo que tem sua origem no Novo Testamento, mas sempre referido à cristologia e à eclesiologia. Importância de descobrir a força do símbolo, liberando-o também dos aspectos que infantilizam o fiel, descobrindo sua força evangélica. A imagem de Aparecida que se situa na esteira da simbólica de Maria e do povo que a ela é devoto.

PALAVRAS-CHAVE: Maria, símbolo, Nossa Senhora Aparecida.


Quando se fala de Maria, corre-se sempre o risco de cair em exageros. De um lado, é possível que ela seja exaltada demais e, assim, se desconfigure a sua real importância e significado na história da Salvação. Do outro lado, desmerecê-la pode esvaziar o sentido dessa figura tão sentida em nossa tradição católica; algo que também se tornaria um empecilho para colher todas as suas nuances e semânticas evangélicas.

Soma-se o problema de que, ao menos em âmbito católico, a maternidade de Maria é fortemente colocada em primeiro plano. Algo que, obviamente, extrapola a reflexão teológica da fé e toca cordas muito íntimas e sensíveis do devoto e da devota. De fato, apesar dos muitos títulos, na pastoral, o aspecto mais evidenciado é o da maternidade de Maria estendida a todos que se dirigem a ela com fé. Tal concepção, sabemos, encontra seu fundamento no evangelho (Jo 19,25-27) e, exatamente por isso, exige uma maior atenção à polissemia do texto e da sua força pragmática, que não excluem o elemento afetivo, mas o enquadram na dupla dimensão cristológica e eclesiológica.

Maria, mãe de Jesus Cristo e nossa, como símbolo, desperta emoções, sentimentos e mecanismos profundos, típicos da psique humana, cuja força nem sempre é entendida com clareza. Alguns dos sentimentos são da área da proteção, da segurança que, evitando um julgamento precipitado e arrogante, responde a necessidades do âmbito mais infantil. Isso não quer dizer, imediatamente, infantilização, embora o perigo exista. Mas não falta também uma atitude de quem busca, junto a ela, motivo de esperança para não se deixar afogar nas vicissitudes negativas da vida.

Outro fator a considerar, na devoção mariana, está ligado a uma limitação da liberdade diante dela, ou seja, a ideia de que o não cumprimento de algumas devoções marianas, como a reza do terço, é uma transgressão grave. Culpa e desconforto acabam por desvirtuar o sentido da devoção, ofuscando o significado das mesmas; em vez de incentivar a prática na perspectiva da história da salvação – na qual Maria é escolhida e protagonista –, direcionando o devoto para Jesus Cristo. Uma devoção mais livre e bem orientada leva a descobrir em Maria um modelo que pode ser seguido, no hoje, diante da mensagem/convocação comunicada pelo anjo (Lc 1,38) ou na transformação do sentido de gratidão, pelas graças recebidas, num ato de fé e louvor de quem canta a ação do Deus Salvador (Lc 1,47-55).

Na Sagrada Escritura e na história da Igreja, Maria está sempre ligada à compreensão que a Igreja tem de si mesma. Nesse sentido é uma excelente representação da comunidade de fé. Mas não faltaram também ocasiões nas quais ela foi usada como defesa ideológica da instituição, como contraposição e autoafirmação diante de situações reconhecidas como perigosas. A polivalência desta figura, portanto, tem consequências na compreensão do feminino, da relação com a sociedade e na formação dos cristãos.

A preeminência de Maria é destacada muito cedo, no cristianismo. A maior prova disso é o próprio texto do Novo Testamento, com suas muitas citações: Mt 1,1-17.18-25; 2,1-23; Mc 3,31-35; 6,1-6; Lc 1,26-38.39-45.46-55; 2,1-20.21-40.41-52; 8,19-21; 11,27-28; Jo 2,1-12; 19-25-27; At 1,14; Gl 4,4-5; Ap 12,1-6. Devido à particularidade do modo como ela está em direta relação com Jesus Cristo, o Salvador, não poderia ser diferente. Todavia, a sobriedade com a qual Maria é inserida ou apresentada nas narrativas ou discursos neotestamentários é algo que deveria ser considerado melhor, com a força de nos ajudar colher a constante novidade e a força salvadora, libertadora, do evangelho.

Longe de ser algo simplório ou miserável no conteúdo, a citada sobriedade é, do ponto de vista literário e da reflexão teológica da comunidade primitiva, dotada de uma grande força hermenêutica e significativa. Ela entrelaça dois aspectos muito importantes. O primeiro é a figura histórica – que não pode ser esquecida ou desconsiderada, com o risco de desmerecer a intenção do evangelho de impregnar a vida do homem, no tempo e no espaço –, uma jovem mulher real, pertencente a um povo, com fé e esperança judaicas, aberta e disponível ao projeto de Deus, que se torna mãe e contrai matrimônio. O segundo aspecto é como a Igreja, a comunidade de fé, se percebia diante dela e com ela na história da salvação, ao assumir a condição de discípula e testemunha do Evangelho.

Nem sempre é fácil distinguir os dois aspectos, mas, desde muito cedo, os cristãos olharam para Maria e viram nela o espelho apto para traduzir o reflexo da própria experiência de fé. Mais ainda, relendo a maternidade de Maria na linha do discipulado, a Igreja primitiva se identifica com ela e se descobre também visitada, fecundada por Deus e chamada a dar à Luz ao Emanuel, no mundo, onde quer que se encontre. Não acaso em muitas catedrais medievais, em plena sintonia com a teologia elaborada no período patrístico, na frente do ambão, vemos representada a cena da anunciação. Como Maria, a comunidade celebrativa é fecundada na escuta da Palavra e com essa mesma Palavra comprometida livremente.

Todo evento ou personagem significativo pode ser abordado de vários modos. Emprestando da metodologia aplicada à exegese bíblica, destacamos duas linhas fundamentais: diacronia e sincronia. A primeira, no campo dos estudos bíblicos, busca descobrir e entender todo o processo histórico reproduzido no texto ou o processo de elaboração e redação das narrativas, poesias e outras formas literárias que compõem a Sagrada Escritura. Essa linha tem, entre outras coisas, o mérito de afastar atitudes fundamentalistas, quando não triunfalistas, e localizar a narração ou discurso de fé num processo histórico real. A sincronia, sem negar a diacronia, focaliza mais o texto e seu dinamismo capaz de comunicar uma mensagem. Afinal o texto sagrado não se limita a informar, mas, sobretudo comunica algo, princípio básico da teoria da linguagem mais contemporânea e fundamento da nossa compreensão de revelação.

Nesse sentido, poder-se-ia dizer que Maria é um “pequeno evangelho”. Pequeno não por desmerecimento, mas por respeito proporcional à sua figura na história da salvação. Não é preciso, como muitos parecem pensar, que ela seja “grande”, exageradamente exaltada, para comunicar algo de Deus. Aliás, a narrativa evangélica ressalta a grandeza reconhecida na pequenez dela (Lc 1,48a).

O adjetivo pequeno garante que ela continue a comunicar algo de Deus, nosso Salvador, que faz grandes coisas (Lc 1,49ss). Na devoção mariana é possível encontrar também a voz de Deus e fazer experiência da potência salvadora dele. Mas como todo “texto” – permitam-nos analogicamente referir-se a Maria como texto – é preciso que ele seja decifrado, para então colhermos a mensagem comunicada. É preciso ler Maria inclusive na sua fenomenologia mais recente, como das aparições e manifestações, como é o caso de Aparecida, para então descobrir a beleza dessa mulher-mãe, fecundada da potência de Deus.

Ao nos concentrarmos mais especificamente em Nossa Senhora Aparecida, sabemos que são vários os estudos e documentos diacrônicos que nos permitem conhecer e entender a manifestação acontecida há 300 anos e tão presente na vida de fé de inúmeros brasileiros, até hoje. Neste V Colóquio de Teologia e Pastoral (2017), tivemos também a oportunidade de fazer um balanço histórico do que aconteceu e de avaliar pesquisas mais recentes – brilhantemente desenvolvidas pelo Prof. Dr. Ney de Souza – que mostram por onde anda essa devoção.

As devoções populares tendem a florear o fenômeno religioso, dando ares mais extraordinários, às vezes, até mágico. Criam-se narrativas que não obrigatoriamente reproduzem a realidade empírica, o fato ocorrido. Algo de particular se vê também na arquitetura. O cristianismo, como outras religiões, tende a monumentalizar os lugares e espaços reconhecidos como importantes e sagrados.

Desenvolvem-se também práticas de oração, penitência, e outras expressões de fé e apego à figura venerada. Tudo isso se apresenta como um grande “texto” que, como tal, comunica algo. Convencionou-se, nos últimos anos, com forte sabor de marketing, chamar o Santuário Nacional de “Casa da Mãe”. São inúmeras as histórias dos milagres acrescentadas a um elenco já amplo e, certamente, virão muitas outras ainda. A imagem encontrada no rio foi revestida de manto principesco e triangular, escondendo as curvas da mulher.

Se os devocionismos exacerbados podem esvaziar Aparecida do seu significado propriamente cristão, intelectualismos podem ser muito arrogantes, assumindo uma posição nada pastoral distante das expressões mais populares da devoção, muitas vezes entendida como irracional e por isso não aceitável. Mas Aparecida é uma mensagem viva de grande força e alcance que pede para ser decifrada. Nesse sentido, uma leitura sincrônica de Aparecida se sustenta, obviamente, no evangelho, critério hermenêutico fundamental, e busca, então, identificar elementos do mesmo evangelho presentes na devoção e no seu contorno (narrativas, arquitetura, práticas devocionais, arte, música...).

Isso é possível, claro, desde que, em algum momento toque a existência dos devotos, iluminando a sua condição, e se torne significativo para eles; sejam eles membros ativos das paróquias ou peregrinos sem participação fixa ou rumo certo. Por isso, a matemática da “necessidade - resposta milagrosa”, embora muito imediatista, não pode simplesmente ser descartada como ilusória, mágica, alienante, mesmo que esses perigos sejam reais. Afinal na necessidade não se intelectualiza, mas se invoca uma ajuda. A necessidade, querendo ou não, real ou não, é uma porta de acesso à tradução e atração na própria existência da experiência religiosa e da atitude de fé. São muitos os relatos de pessoas que, por muito tempo alheias ao evangelho e ao compromisso comunitário, iniciaram um caminho e compromisso de fé, depois de alguma experiência num santuário mariano.

Nas narrativas dos milagres, os primeiros contos carregam um significado que vai além da matemática citada. Elas têm um caráter fundacional, porque colocam as bases da expressão mais popular da devoção que se desenvolverá ao longo do tempo. Para isso é necessário destacar os protagonistas, os antagonistas, denúncias ou confirmações da situação social, organização comunitária, qualidade da solidariedade despertada, quais perspectivas são atendidas e quais surgem a partir daquele momento, modelo eclesial, com sua força e deficiências... Sem anacronismos, estes elementos todos convidam a uma leitura constante da realidade – em jargão hermenêutico, dir-se-ia atualização –, de modo a não calar a força eloquente da ação do Deus Salvador presente no “pequeno evangelho”.

As manifestações marianas, quando permeadas pelo evangelho, tendem a mostrar um horizonte que abarca o pessoal e o projeta para o comunitário (Jo 17,20-26). Nesse sentido, é importante o confronto com os contos presentes e as primeiras narrativas, mesmo que não ainda amplamente elaboradas. Esse esforço constante de interpretação e, porque não, de oração, acolhe o homem e a mulher contemporâneos, nos seus anseios, ao mesmo tempo em que purifica a tentativa de uma apropriação indevida – de caráter mais supersticioso e consequentemente, individualista, e, muitas vezes, alienantes – da ação de Deus. E abre os mesmos peregrinos a uma nova compreensão da humanidade, nas suas relações entre si, com o mundo e com Deus, segundo a lógica do Reino. O significado existencial e salvador do evangelho alcança seu ápice na experiência comunitária, não entendida meramente como aglomeração, mas na cura e transformação das relações e no compromisso com o dom da vida, seja a nível social, ecológico ou religioso, como muito bem nos ensina Papa Francisco, na Evangelii Gaudium.

O Santuário Nacional tem passado por uma série de reformas que o aproximam sempre mais da grandeza e criatividade típicas da cultura cristã, católica. A sua arquitetura e espaço tem reproduzido vários elementos simbólicos (o pedestal do círio pascal, por exemplo) e técnicas catequéticas (painéis ilustrativos de cenas evangélicas) desenvolvidas ao longo dos séculos, na história da Igreja. Todos estes elementos são válidos, sem dúvida, e de alta qualidade artística. Tudo isso enriquecido com a inserção de dados tipicamente brasileiros, provenientes da fauna e flora. Todavia, há de se perguntar o quanto tem sido feito para que esses elementos não se percam em questões puramente estéticas, mas, somados aqueles mais próprios de Aparecida, exerçam uma força mistagógica sobre todos os peregrinos, do laicato como do clero.

A Rainha do Brasil, como muitas vezes nos referimos à Aparecida, é negra e isso não pode ser encoberto pelo manto ou ofuscado pela coroa – apesar desses dois revestimentos simbolizarem respeito e reconhecimento –, sobretudo num país como o Brasil, ainda com tantas barreiras raciais a serem vencidas. A negritude da imagem da mãe deve ter espaço para proclamar uma irmandade de homens e mulheres comprometidos com dar respostas a necessidades e ausência de direitos do indivíduo situado numa sociedade que precisa se constituir como comunidade – dos filhos e filhas de Deus –, promotora da justiça e dignidade de todos.  

O manto a reveste e a sua coroa brilha, portanto, de uma realeza não monárquico-humana, de submissão, ou celestial-triunfalista, mas sim realmente divina. Trata-se da realeza/soberania de Deus (Ap 12,5) que a reveste da sua força (Ap 12,1b) e, como na vida dela – da jovem mulher carregada da fé e esperança de seu povo –, abraça o ser humano por completo e vence os “dragões” (Ap 12,7-8.11) sempre prontos a perseguir, devorar e bagunçar a criação (Ap 12,3-4.13.15.17), matando a esperança dos homens e mulheres e, com isso, sua capacidade de reação e defesa da dignidade da vida de todos ou esvaziando a perseverança a qual todo cristão é chamado (Ap 1,9), como testemunha do Ressuscitado e do reinado de Deus em Jesus Cristo (Ap 1,2-3.9; 7,13-17; 11,15-16; 19,6b).

A Casa da Mãe é sinal do evangelho se proporciona uma entrega confiante, em Deus, e, no seu espaço simbólico-existencial, nos direciona para a casa do Pai (Jo 14,1-11.12-21). E isso acontece, de fato, se, além da força de atração, o Santuário tiver caráter propagador do evangelho e dos cuidados que a maternidade/paternidade pode representar, como experiência de salvação, cuidando e fecundando a sociedade brasileira.

Como teólogos, pastoralistas, catequistas, agentes comunitários, todos somos convocados a ler, refletir e trabalhar para evidenciar a força evangélica de Aparecida, decifrando sua mensagem e colhendo a comunicação divina nela presente. Claro que conservando o devido e autêntico respeito pelo peregrino e suas necessidades, mas também com o sentido da responsabilidade pela edificação da comunidade de fé (1Cor 3,9 [1Pd 2,5]; 8,1b; 10,23-24; 14,12; 1Ts 5,11; At 2,41-42; 4,32-35), afastando triunfalismos e encarnando o evangelho; anunciando o Reino de Deus, como fermento (Mt 13,33), sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13-14). E, parafraseando Maria, prontos para fazer o que ele nos diz! (Jo 2,5).

Por fim, não poderíamos deixar de recomendar a leitura dos enxertos que o Papa Francisco fez na oração que lhe propuseram no Santuário de Aparecida. Ele que se mostra tão entusiasta do Santuário, grande devoto mariano, em poucas palavras, corrige a diacronia atual e atualiza a sincronia do pequeno do evangelho.


[1] Reação à conferência do Prof. Ney de Sousa. 

domingo, 11 de outubro de 2020

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA APARECIDA - Jo 2,1-11:


 

O Quarto Evangelho é constituído de duas partes. A primeira, o Livro dos Sinais, que inicia em Jo,1,18 e conclui-se com em 12,51, e do livro da Glória, Jo 13 – 20. O autor esquematiza sua catequese dessa maneira a fim de informar e fazer memória para seus discípulos sobre a identidade de Jesus, uma vez que a comunidade enfrenta uma crise de fé em relação à pessoa do mestre, e para informar aos que estão aderindo à Fé no Senhor. É, pois, o Quarto Evangelho, um escrito iniciático que visa também formar na fé os candidatos ao batismo no tempo das primeiras comunidades.

Cumpre função catequética este primeiro bloco, chamado, pois, de livro dos Sinais. No Quarto Evangelho jamais aparece o termo milagre. Jesus não é mostrado realizando nenhum gesto de poder (Dynameis). O autor prefere o termo Sinal (ou sinais, no plural / gr. tá semeia) para indicar as ações de Jesus. Os Sinais, na perspectiva de João, são gestos simbólicos de Jesus que apontam para a realidade profunda e essencial de sua identidade. Eles devem ser lidos em ordem de gestos proféticos realizados por Jesus que visam apontar para real identidade de Jesus. Que Nele existe e desponta a novidade (escatológica, da ultimidade, da plenitude) de Deus agindo na história. Mas estes sinais não devem ser vistos e meditados em si mesmos, e sim orientados para a Hora da Glória de Jesus. Esta é preparada pelos sinais que Jesus realiza. A Hora da Glória é o momento do enaltecimento de Jesus; sua revelação como Filho de Deus e Messias, na hora da Cruz. Por isso, só pode transitar para a contemplação da hora da Glória de Jesus quem percorreu o itinerário descrito no livro dos sinais, e se deixou educar por eles, crescendo na consciência acerca da identidade de Jesus, e, livremente faz sua adesão e decide-se por Ele. 

O capítulo 2 do Evangelho segundo João apresenta o primeiro sinal realizado por Jesus. Ele o realiza em Caná, na Galileia, no terceiro dia de sua semana inaugural, conforme descrita por João. Não é atoa que esse dado aparece. O episódio 2,1-11 parece dar seqüência ao contexto de 1,19-51. Se “no terceiro dia” (2,1) faz soma com os quatro dias de 1,19-51, o episódio de Jo 2,1-11 completa uma “semana inaugural”. Portanto, o sétimo dia.

Devemos recordar que o Quarto Evangelho é escrito para pessoas que já foram evangelizadas numa primeira vez, por isso é chamado de evangelho ruminado, e que ao escutar a expressão “terceiro dia” já fazem uma associação de ideias; recordam do terceiro dia, o dia da ressurreição. No horizonte da narrativa, no sétimo dia da semana inaugural de Jesus – que remete a semana da criação descrita em Gênesis 1 – 2,25, sendo esta semana de Jesus a inauguração da nova criação – acontece um casamento em Caná. Ou, numa palavra mais arcaica, “bodas”. Mais uma vez, não é do nada que o evangelista se serve deste termo. As bodas fazem parte do imaginário do povo de Israel. A imagem do casamento serve de metáfora/símbolo para a Aliança (relação) com Deus. Mais ainda, nas expectativas do povo, as bodas seriam o momento da inauguração da era messiânica. Ela representa, nesse sentido, a alegria e a expectativa das núpcias messiânica, que é a núpcia do cordeiro, na mentalidade do discípulo de Jesus. Assim, a narrativa deste casamento, no terceiro dia da semana inaugural da missão de Jesus, adquire o caráter de núpcia escatológica, que Deus realiza com a humanidade através de Jesus.

Adentrando no horizonte do texto, a personagem que encabeça a narrativa é a mãe de Jesus, primeiramente. No Quarto Evangelho ela nunca é chamada pelo nome. A mãe de Jesus está aí e também ele fora convidado. Quem provavelmente teria articulado a presença de Jesus naquelas núpcias foi sua mãe. O que narrativamente tem uma certa naturalidade, porque a organização das festas geralmente ficava a cargo das mulheres, as mães de família. Os homens ficavam ali como figuras decorativas. Mas o evangelista elenca também a presença dos discípulos que acompanham a Jesus.

O vinho vem a faltar. A mãe de Jesus nota o fato. Uma festa de núpcias sem vinho! O vinho representa a alegria. Mas para a tradição de Israel, o vinho simbolizava a inauguração da era messiânica. A mãe se dirige à Jesus, conta-lhe o que está acontecendo e ele responde algo que dá a entender que isso não é assunto dele (lit: “O que há para mim e para ti?”, uma forma de dizer que isso não lhes diz respeito, cf. v.2). Culpa deles. Com efeito, em seguida, acrescenta Jesus algo que soa igualmente intrigante: “Minha hora ainda não chegou”. Quase como se dissesse, “me deixe em paz”. Todavia, como estamos meditando o Evangelho segundo João que é o “evangelho ruminado”, se recorrermos à catequese de Marcos, Jesus, no Getsêmani, declara que sua hora chegou. Quem ouve/lê esse dito nas bodas poderá ficar com uma pulga atrás da orelha. De que hora Jesus está falando? De qualquer maneira, ainda não é sua hora, mas o que acontecerá imediatamente será um sinal que encaminhará para a sua hora.

A mãe diz aos que estavam servindo (lit. diáconos), “fazei o que Ele vos disser”. Primeira dos que crêem, Maria orienta a confiança do povo para Jesus: “Fazei tudo o que ele vos disser”. O autor do Quarto Evangelho se serve de todo o patrimônio das Escrituras Sagradas de Israel e faz aqui um midrash (uma releitura e reinterpretação) da cena de Gn 41,55, onde o Faraó, após instalar José como seu  primeiro ministro, ordena que todos se dirijam a José e façam o que ele ordenar. Ora, a personagem que tinha encabeçado a narrativa, a mãe de Jesus, passa a batuta para Ele, tomando, portanto, a direção dos acontecimentos. E agora?

O evangelista nos informa que ali estavam seis talhas de pedras, de mais ou menos cem litros, utilizadas para a purificação/ablução higiênica e ritual que os judeus costumavam fazer. Não nos é informado se elas continham água. Mas após a ordem de Jesus para enche-las, a atitude dos servos é de completa-las até a borda. Logo, estariam vazias, ou com quantidade insuficiente de água. Estão ali inutilizadas; já não servem mais, a não ser para o que serviam antes.

Jesus ordena que aquelas tinas de água sejam enchidas “de novo”. O adverbio utilizado por Jesus, recordado pelo evangelista, “de novo”, retoma o tema da novidade: do antigo não se diz mais; acontece uma coisa nova. Devem ser enchidas até a borda. Emerge aqui a ideia da abundância. Assim foi feito. Trazem as talhas à Jesus que pede para que os servidores as levem até o mestre-sala. O qual prova da água que tinha se transformado em vinho. O evangelista informa que “Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois eram eles que tinham tirado a água”. João dá essa informação para sua comunidade para mostrar que havia testemunhas. Os servos sabiam de onde vinha a água que se tinha transformado em vinho (v.9).

O evangelista trabalha com o esquema da superação do sistema levítico-cultual religioso da cultura dos judeus. As seis talhas eram feitas de pedra. Foi sobre duas tábuas de pedra que, no Sinai, Moisés recebeu a Lei. No simbolismo judaico, a água é associada à Torá. Essa não falta, vinho sim — falta a alegria messiânica. A Lei representa todo este pano de fundo do sistema religioso do Antigo Testamento. Quando o narrador faz notar que as talhas (de pedra) usadas para a purificação (ritualismo antiga) estavam lá, sem utilidade, ele estaria insinuando a inutilidade das práticas religiosas judaicas que, diante da novidade de Jesus, encontram-se superadas a partir de agora. A atitude de encher as talhas de água até a borda, dando ideia de abundância, significa que o sistema antigo encontra-se superado pela vida e obra de Jesus, que apresenta a novidade de Deus agindo na história através do dom da vida do Senhor e não mais pela mediação de um sistema cultual falido. 

O mestre de cerimônias chama o noivo, que até agora tinha ficado incógnito. Outro fator curioso é que este não tem nome. Aparece para receber do mestre-sala uma observação crítica ou irônica da parte de um servo que era o mestre de cerimônias. “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (v.10). Esta última parte do versículo adquire um peso devido ao adverbio de tempo “agora”. Ele expressa a realidade de que o “agora” está ai. Este “agora” é novidade da renovação escatológica, que é marcada pela abundância do vinho bom, como recorda Am 9, ao dizer que das colinas destilaram vinho em abundância. Relembra também a profecia de Isaias, que recorda a abundância escatológica (Is 61; 63; 66).

O noivo era quem pagava a festa de casamento, para mostrar que tinha posses, que tinha condições econômicas de sustentar a vida. Se o mestre-sala faz observações acerca da qualidade do vinho, onde ele reconhece a superioridade deste, então qual é o verdadeiro noivo para o qual ele deveria ter dito isto? Jesus, que não deixa faltar o vinho novo e bom. Porque, ao mesmo tempo, o noivo e o vinho melhor são Ele mesmo. Assim, há um “noivo escondido” na história, que vem realizar as núpcias de Deus com a humanidade nesta história.

Por fim, o autor situa aquilo que ele acabou de narrar: “Este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele” (v.11). Notemos que o Quarto Evangelista sublinha que este foi o princípio dos sinais (gr. ἀρχὴν τῶν σημείων/arché tón semeíon), realizados por Jesus. Arché (gr. ἀρχὴν / princípio , origem) faz um arco narrativo com o prólogo do Evangelho, quando o catequista bíblico inicia a obra com um solene “No princípio”, que remete ao primeiro dia da criação em Gn 1,1, com a conclusão provisória desta semana inaugural, que remete à nova criação. Nesta semana, Jesus começa a manifestação da Glória de Jesus, mas ainda não plenamente. Os sinais servem para preparar este momento.

 Que Maria, a Mãe Aparecida, possa ser sempre o modelo do discípulo crente para todos nós: aquele que reconhece Jesus com sua fé e adesão e o aponta como a novidade enquanto Dom de Deus para nós.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu - SP

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

HOMILIA PARA O XXVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 22,1-14:

 


O capítulo 22 do evangelho de Mateus insere-se no bloco narrativo que compreendem os capítulos 20 – 22. A seção se abre com a narrativa da entrada de Jesus em Jerusalém (21,1-11), identificado como Messias pacífico e desarmado da profecia de Zacarias, bem como reformador da vida cultual do povo, quando reivindica para o Templo o seu autêntico lugar de oração. Todavia, a cidade e suas lideranças – sumo sacerdotes, fariseus (escribas) e anciãos do povo – permanecem indiferentes à sua pessoa e à mensagem que traz consigo, tornando-se, até mesmo, hostis a Ele. Recusa, hostilidade e dureza de coração perpassam as lideranças do povo em relação à Jesus.

Mt 22 encontra-se, pois, dentro de uma série de cinco controvérsias entre Jesus e as autoridades judaicas, tanto em âmbito político como religioso: a discussão acerca da autoridade reivindicada por Jesus, diante da expulsão dos vendedores no Templo (21,23-27); a legalidade do imposto ao imperador romano (22,15-22); a ressurreição dos mortos (22,23-33); o mandamento importante (22,34-40), e finalmente, a problemática acerca da filiação davídica (ser filho de Davi, em 22,41-46). Jesus, no entanto, sai vitorioso de todas estas situações.

O evangelista Mateus pretende mostrar à sua comunidade, e às gerações posteriores dos discípulos que, à incredulidade e à recusa por parte das autoridades judaicas corresponde o Juízo de Deus, que se revela como condenação e destruição para a cidade e seus responsáveis. É o que pretende demonstrar a narrativa parabólica de Mt 22,1-14: os convidados de honra (que foram chamados primeiro, ou seja, as autoridades religiosas-políticas de Israel), que recusaram o convite da festa, são excluídos definitivamente do banquete nupcial. Tal é o contexto da narrativa. Agora, vamos ao texto!

Jesus inicia um diálogo parabólico, dirigido, mais uma vez, aos líderes do povo (sacerdotes e anciãos do povo). Ele começa comparando o Reino dos Céus a uma festa de casamento, dada por um rei a seu filho (v.1-3). Retorna, aqui, o tema do Reino dos Céus (abordado anteriormente no capítulo 13 do Evangelho de Mateus, no discurso em parábolas). Este tema deve ser muito bem assimilado: o Reino dos Céus (ou o Reinado de Deus) é Deus mesmo atuando em Jesus, que por meio dele quer estabelecer novo céu e nova terra, uma sociedade mais justa e fraterna, solidária e igualitária. Objetivamente, o Rei da parábola é Deus mesmo, e os primeiros convidados são o povo de Israel e seus líderes.

Na Sagrada Escritura, o banquete – e principalmente o banquete nupcial – tornou-se símbolo da iminente vinda do Messias. Tal concepção teve sua origem no pós-exílio. No entanto, as expectativas messiânicas já florescem nos primeiros momentos da pregação de Isaias, quando a monarquia de Judá começava dar sinais de corrupção.

O gênero das parábolas chama a atenção do leitor justamente por suas particularidades, que numa primeira leitura, podem parecer incomuns. Deve chamar a atenção o fato de que, diante do convite de um evento grandioso (a festa de casamento de um príncipe), os convidados fazem pouca conta. Ora, no tempo e na realidade de Jesus, onde os recursos para subsistência eram escassos, e constantemente havia muita carestia e, por conseguinte, o povo passava necessidade, as festas de casamento tornavam-se oportunidade para o povo se alimentar melhor, e renovar as esperanças futuras. Todavia, ao interno da parábola paira a recusa dos convidados.

O rei insistiu (v.4-7). Essa insistência do monarca revela, na verdade, a insistência mesma de Deus, que acena para a necessidade de se decidir pelo Reino dos Céus com urgência. Não é possível adiar a decisão de acolher os apelos de Deus.

Foi tudo em vão, nos relata Jesus na parábola: uma parte dos convidados foi para os campos; outra foi cuidar de seus negócios; e outra, mais hostil, responde com violência frente aos funcionários do rei. A preocupação e insistência do rei chocam-se com a despreocupação dos convidados: eles não estão nem ai! O rei irrompe, então, em fúria, e envia seu exército para derriçar com os convidados indiferentes.

Jesus diz que a festa estava preparada, e o rei ordenou, então, aos seus funcionários, que fossem pelos caminhos e pelas encruzilhadas, e que chamassem aqueles que encontrassem: bons e maus (v.8-10). A festa não deixou de acontecer em face a recusa dos primeiros convidados. Os que não esperavam, tiveram a honra de tomar parte de um banquete de alto nível.

O ensino subjacente destes versículos reside, de acordo com a lógica da parábola, na mudança de atitude de Deus, ao redirecionar o convite não mais exclusivamente aos judeus, mas a todos. Emerge, nesse sentido, a temática da salvação universal acenada pelo relato parabólico. O anúncio do Reino não é mais exclusivo à Israel, mas inclusivo, agora, aos que não fazem parte do povo. Isso é o que significa convidar Bons e Maus. A categoria dos maus simboliza, na verdade, os que não pertencem ao povo. Não se trata aqui de uma acepção moral, necessariamente.

Chamo a atenção, aqui, para um termo que foi mal traduzido. “Encruzilhada” enfraquece o termo “Diéxodos (Diexódous; gr. διεξόδους)”, que seria melhor traduzido por “saída”, “fronteira” e “periferia”. “Ide, pelas saídas (fronteiras – periferias) dos caminhos” traduz melhor a intenção de Jesus e do evangelista Mateus em dar enfoque, a partir da rejeição e auto exclusão de Israel do convite recebido, à universalidade da salvação, destinada, agora, àqueles que se  encontravam às margens da sociedade daquele tempo. E de nosso tempo também!

Mas não basta ser convidado para festa. É necessário mostrar-se predisposto e com atitudes de justiça. Todavia, houve quem ousou participar da festa sem o traje festivo. O rei notou, e, imediatamente mandou expulsar o penetra (v.11-14). O traje, em toda a Sagrada Escritura (e principalmente no Apocalipse), é símbolo para as boas ações, as obras de Justiça, Amor e Misericórdia. Simboliza a Fé do indivíduo traduzida e encarnada, a partir de sua vida, em obras de misericórdia e justiça aos irmãos, principalmente aos que estão nas margens, nas fronteiras e periferias. A veste festiva corresponde à Justiça inerente ao Reino dos Céus, ou seja, ao querer / projeto de Deus sendo realizado na história, na realidade.

A comunidade de Éfeso, recordando os ensinamentos de Paulo e a pregação do Evangelho, foi a que melhor percebeu que a veste do cristão são a caridade e a Justiça, que brotam da vivência da Palavra de Deus, encarnada na vida do fiel discípulo de Jesus, em Ef 6,10-17 (famoso texto da "armadura ou veste do cristão", que infelizmente foi tão deturpado em sua interpretação). Jesus não está falando de uma veste física, de grife (até mesmo das “grifes religiosas”), tampouco estaria ele imbuído de moralismos acerca do quê e como se vestir. O texto não permite tal abordagem.

Nem todos os que são chamados são, por isso, escolhidos. O chamado de Jesus vai, então, noutra direção. O fato de se pertencer à comunidade do Reino, não significa ter assimilado o modo de ser peculiar ao Reino. Participar da Eucaristia, ou manter uma vida espiritual (ainda que a seu modo) não implica ou garante salvação. Os que estiverem nesta situação (assim como os primeiros convidados) serão excluídos do banquete messiânico: não serão escolhidos! Ora, o chamado inicial se distingue na perseverança final e consequente salvação. Infelizmente, haverá discípulos que não experimentarão a alegria final do Reino, pela incapacidade de perseverar, até o fim, no caminho iniciado (Mt 24,13).

Quem somos diante do texto de Mt 22,1-14? Estamos nas periferias (às saídas ou nas fronteiras e limites humanos, sociais, religiosas), ou indo até elas? Temos vestido a veste das obras de misericórdia, amor e justiça, dada a cada um de nós através de nosso Batismo? Poderíamos nos considerar convidados para banquete do Reino, e sermos escolhidos para dele participar? Que possamos ver nossa vida no espelho deste texto bíblico. 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família. Arquidiocese de Botucatu-SP


sábado, 3 de outubro de 2020

HOMILIA PARA O XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 21,33-43:


O evangelho para este vigésimo sétimo domingo do tempo comum prossegue com a leitura e meditação do capítulo 21 da catequese mateana. Jesus está já em Jerusalém. Seguem-se confrontos e controvérsias entre ele as autoridades do povo. Na cena anterior, contou uma parábola de dois filhos que apresentavam condutas distintas no falar e no agir (Mt 21,28-32), aplicando-a aos anciãos e aos sumos sacerdotes. Os versículos propostos hoje seguem direcionando a fala do Senhor às mesmas personagens.

Jesus conta aos anciãos e aos sacerdotes uma parábola que visa ainda mais denunciar a atitude deles de recusa diante do projeto de Deus que o mestre revela através da práxis de sua vida: a parábola dos vinhateiros homicidas. O Jesus de Mateus se serve de um texto do AT, situado em Is,5,1-7, o cântico da vinha, onde o profeta Isaias relata a história de uma vinha plantada por seu amigo, que não produziu uvas boas, senão frutos amargos. O evangelista Mateus serve-se de um recurso chamado midrash, onde reinterpreta e, portanto, relê os textos antigos da fé do povo de Israel, aplicando-o para a realidade e para a vida de sua comunidade, a fim de confirmar a identidade de Jesus de Nazaré como Messias. A imagem da vinha é apresentada novamente. Ela simboliza, como já sabemos, o próprio povo de Israel e sua história de altos e baixos, perpassada história da salvação. A própria parábola deixa isso muito evidente. Jesus faz, através dela, um resumo e recapitulação de toda a história salvífica de Israel. 

Mateus, ao recuperar este ensino de Jesus, propõe duas perspectivas de leituras, onde a primeira desembocará na segunda. Ler a parábola a partir de Jesus, isto é, cristológico: ler, reinterpretar e aplicar a parábola à Sua própria vida e missão, através de sua práxis reconhece-lo como enviado de Deus; e a perspectiva eclesial (comunitária, eclesiológica), que aplica o texto para a situação da vida da comunidade, a Igreja, o Novo (latente) Israel, que deve assumir a vocação do primeiro povo: produzir frutos de Justiça. Isto posto, podemos tomar o texto e meditá-lo.

Dos vv. 33-39, Jesus descreve a ação de um proprietário de terra que planta uma vinha, prepara-lhe tudo para a sua subsistência, e, partindo para o estrangeiro, decide-se arrenda-la à terceiros para que a administrem, e, depois, possa recolher o lucro. Chegada a época da colheita, enviou seus empregados para recolher os frutos e os lucros. Estes foram desrespeitados pelos vinhateiros, os quais agiram com violência, espancando um, matando outro e apedrejando o terceiro. O quarto enviado foi o filho do dono, que pensava que diante de seu filho os vinhateiros teriam atitudes diferentes. Nada de novo! Ao filho, agarraram, levaram para fora da vinha e o mataram. Jesus conclui com uma pergunta aos ouvintes destinatários da parábola: “Pois bem, quando o dono da vinha voltar, o que fará com esses vinhateiros?” (v.40). Com essa pergunta, Jesus utiliza-se da técnica antiga de envolver os leitores, a fim de se identificarem com as personagens e elaborarem um juízo, um veredicto sobre si, suas vidas e condutas. É uma forma que Jesus tem para fazer com os anciãos e sacerdotes fiquem comprometidos com a parábola.

Na parábola, Jesus denuncia, uma vez mais, a atitude das lideranças do povo que se fecharam em relação à sua pessoa, rejeitando-o. Joga lhes às claras a recusa que lhe estão fazendo. Esta recusa chegará ao radicalismo da eliminação da vida de Jesus sob a responsabilidade dos chefes do povo. O mestre está descrevendo a história da fidelidade e da infidelidade do povo e das lideranças ao longo da história. Ao interno desta história está a de Jesus. Ele é o filho do dono da vinha enviado. Assim, o Senhor e Mateus estão, no mesmo plano narrativo descrevendo a atitude dos chefes que levarão Jesus à morte. O levarão para morrer porque não suportam a forma que ele vive; não toleram a sua Justiça, ou seja, sua vida colocada em relação ao projeto e ao querer do Deus que chama de Pai; não aguentam a fidelidade radical de Jesus à Palavra de Deus, que desmantela e revela lhes a infidelidade. Neste sentido, a parábola é lida em chave de compreensão para a vida e missão de Jesus.

Na perspectiva de Mateus, Jesus recupera toda a história e tradição religiosa do povo de Israel, levando-a à sua superação plena, no intuito de revelar aos seus leitores-ouvintes a identidade de Jesus como Messias verdadeiro. Na parábola (// com Is 5,1) são diversos os servos que são mandados para receber. Alguns destes foram espancados, outros mortos e outros ainda apedrejados. A referência aos profetas do AT não podia ser mais clara. O primeiro evangelista mostra um interesse nítido pela história da salvação. Nesse sentido, Jesus tem seu lugar na longa série daqueles que Deus enviou a seu povo. Até a recusa feita pelos judeus tem atrás de si uma longa história de infelicidade, como a dos profetas. Mas Jesus não é um dos profetas, e sim o Filho de Deus enviado ao mundo. A sua missão é o gesto salvífico extremo e decidido do Pai. Tê-lo rejeitado e posto à morte é o gravíssimo pecado dos chefes de Israel.

Agora, emerge a perspectiva eclesial da parábola de Jesus sobre os vinhateiros homicidas. Devido à recusa, rejeição e trama homicida em relação à Jesus, na perspectiva das primeiras comunidades cristãs, especialmente a de Mateus, o antigo Israel não poderá mais ser o povo de Deus. No seu lugar entrará a Igreja. Um novo povo nasce do antigo. Este está como que em gérmen no primeiro. É um tema muito caro para o evangelista: o verdadeiro Israel. O primeiro, com a sua obstinada incredulidade culminada na rejeição de Cristo, negou os frutos de fidelidade que Deus esperava. É precisamente esta passagem o ponto crucial da interpretação de Mateus. Demonstra-o o acréscimo do v. 43: “Por isso eu vos digo: o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos”.

As duas perspectivas, cristológica e eclesiológica, complementam e iluminam-se. A primeira ajuda o discípulo-leitor e ouvinte da pregação de Mateus acerca de Jesus a reconhecer no mistério de sua vida, práxis, missão, morte trágica (e tramada), o sentido duma vida e existência segundo o querer e o projeto de Deus, e, logo, salvífica. E, que, por outra parte, ilumina a compreensão da comunidade em relação à sua vocação e missão: produzir os frutos que não foram produzidos. Não reproduzir a história antiga, tampouco as condutas e atitudes dos antigos líderes do povo frente ao projeto de Deus em Jesus.

Mateus, como pastor solícito, quer mover sua comunidade a abandonar os comportamentos de autocomplacência contemplativa e preguiçosa para assumir um empenho na práxis, realizador daquilo que ela é por vocação. A práxis dos discípulos e discípulas na linha do ensinamento do Senhor que veio para revelar a vontade última e definitiva do Pai. A comunidade cristã encontra assim a sua característica essencial ao fazer. Uma ortodoxia estéril a igualaria a Israel. O Reino se faz presente na ortopráxis. Assim se excluem qualquer pretensão e segurança fundadas sobre o fato de ser o novo povo de Deus; qualquer confiança mágica no sacramento; qualquer apelo à aceitação inicial da mensagem evangélica. A fé e a própria identidade de Igreja do Senhor não pode desconectar-se de uma verificação operativa. O exemplo do Israel infiel é colocado diante dos olhos como advertência. A graça salvífica que se revelou na comunidade é exigente: ser o novo povo de Deus levado ao compromisso com uma nova vida fecunda de frutos de fidelidade.

Quais frutos temos produzidos?

Pe. João Paulo Sillio. Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.