O Quarto Evangelho é constituído de duas partes. A primeira, o Livro dos Sinais, que inicia em Jo,1,18 e conclui-se com em 12,51, e do livro da Glória, Jo 13 – 20. O autor esquematiza sua catequese dessa maneira a fim de informar e fazer memória para seus discípulos sobre a identidade de Jesus, uma vez que a comunidade enfrenta uma crise de fé em relação à pessoa do mestre, e para informar aos que estão aderindo à Fé no Senhor. É, pois, o Quarto Evangelho, um escrito iniciático que visa também formar na fé os candidatos ao batismo no tempo das primeiras comunidades.
Cumpre função catequética este primeiro bloco, chamado, pois, de livro dos Sinais. No Quarto Evangelho jamais aparece o termo milagre. Jesus não é mostrado realizando nenhum gesto de poder (Dynameis). O autor prefere o termo Sinal (ou sinais, no plural / gr. tá semeia) para indicar as ações de Jesus. Os Sinais, na perspectiva de João, são gestos simbólicos de Jesus que apontam para a realidade profunda e essencial de sua identidade. Eles devem ser lidos em ordem de gestos proféticos realizados por Jesus que visam apontar para real identidade de Jesus. Que Nele existe e desponta a novidade (escatológica, da ultimidade, da plenitude) de Deus agindo na história. Mas estes sinais não devem ser vistos e meditados em si mesmos, e sim orientados para a Hora da Glória de Jesus. Esta é preparada pelos sinais que Jesus realiza. A Hora da Glória é o momento do enaltecimento de Jesus; sua revelação como Filho de Deus e Messias, na hora da Cruz. Por isso, só pode transitar para a contemplação da hora da Glória de Jesus quem percorreu o itinerário descrito no livro dos sinais, e se deixou educar por eles, crescendo na consciência acerca da identidade de Jesus, e, livremente faz sua adesão e decide-se por Ele.
O capítulo 2 do Evangelho segundo João apresenta o primeiro sinal realizado por Jesus. Ele o realiza em Caná, na Galileia, no terceiro dia de sua semana inaugural, conforme descrita por João. Não é atoa que esse dado aparece. O episódio 2,1-11 parece dar seqüência ao contexto de 1,19-51. Se “no terceiro dia” (2,1) faz soma com os quatro dias de 1,19-51, o episódio de Jo 2,1-11 completa uma “semana inaugural”. Portanto, o sétimo dia.
Devemos recordar que o Quarto Evangelho é escrito para pessoas que já foram evangelizadas numa primeira vez, por isso é chamado de evangelho ruminado, e que ao escutar a expressão “terceiro dia” já fazem uma associação de ideias; recordam do terceiro dia, o dia da ressurreição. No horizonte da narrativa, no sétimo dia da semana inaugural de Jesus – que remete a semana da criação descrita em Gênesis 1 – 2,25, sendo esta semana de Jesus a inauguração da nova criação – acontece um casamento em Caná. Ou, numa palavra mais arcaica, “bodas”. Mais uma vez, não é do nada que o evangelista se serve deste termo. As bodas fazem parte do imaginário do povo de Israel. A imagem do casamento serve de metáfora/símbolo para a Aliança (relação) com Deus. Mais ainda, nas expectativas do povo, as bodas seriam o momento da inauguração da era messiânica. Ela representa, nesse sentido, a alegria e a expectativa das núpcias messiânica, que é a núpcia do cordeiro, na mentalidade do discípulo de Jesus. Assim, a narrativa deste casamento, no terceiro dia da semana inaugural da missão de Jesus, adquire o caráter de núpcia escatológica, que Deus realiza com a humanidade através de Jesus.
Adentrando no horizonte do texto, a personagem que encabeça a narrativa é a mãe de Jesus, primeiramente. No Quarto Evangelho ela nunca é chamada pelo nome. A mãe de Jesus está aí e também ele fora convidado. Quem provavelmente teria articulado a presença de Jesus naquelas núpcias foi sua mãe. O que narrativamente tem uma certa naturalidade, porque a organização das festas geralmente ficava a cargo das mulheres, as mães de família. Os homens ficavam ali como figuras decorativas. Mas o evangelista elenca também a presença dos discípulos que acompanham a Jesus.
O vinho vem a faltar. A mãe de Jesus nota o fato. Uma festa de núpcias sem vinho! O vinho representa a alegria. Mas para a tradição de Israel, o vinho simbolizava a inauguração da era messiânica. A mãe se dirige à Jesus, conta-lhe o que está acontecendo e ele responde algo que dá a entender que isso não é assunto dele (lit: “O que há para mim e para ti?”, uma forma de dizer que isso não lhes diz respeito, cf. v.2). Culpa deles. Com efeito, em seguida, acrescenta Jesus algo que soa igualmente intrigante: “Minha hora ainda não chegou”. Quase como se dissesse, “me deixe em paz”. Todavia, como estamos meditando o Evangelho segundo João que é o “evangelho ruminado”, se recorrermos à catequese de Marcos, Jesus, no Getsêmani, declara que sua hora chegou. Quem ouve/lê esse dito nas bodas poderá ficar com uma pulga atrás da orelha. De que hora Jesus está falando? De qualquer maneira, ainda não é sua hora, mas o que acontecerá imediatamente será um sinal que encaminhará para a sua hora.
A mãe diz aos que estavam servindo (lit. diáconos), “fazei o que Ele vos disser”. Primeira dos que crêem, Maria orienta a confiança do povo para Jesus: “Fazei tudo o que ele vos disser”. O autor do Quarto Evangelho se serve de todo o patrimônio das Escrituras Sagradas de Israel e faz aqui um midrash (uma releitura e reinterpretação) da cena de Gn 41,55, onde o Faraó, após instalar José como seu primeiro ministro, ordena que todos se dirijam a José e façam o que ele ordenar. Ora, a personagem que tinha encabeçado a narrativa, a mãe de Jesus, passa a batuta para Ele, tomando, portanto, a direção dos acontecimentos. E agora?
O evangelista nos informa que ali estavam seis talhas de pedras, de mais ou menos cem litros, utilizadas para a purificação/ablução higiênica e ritual que os judeus costumavam fazer. Não nos é informado se elas continham água. Mas após a ordem de Jesus para enche-las, a atitude dos servos é de completa-las até a borda. Logo, estariam vazias, ou com quantidade insuficiente de água. Estão ali inutilizadas; já não servem mais, a não ser para o que serviam antes.
Jesus ordena que aquelas tinas de água sejam enchidas “de novo”. O adverbio utilizado por Jesus, recordado pelo evangelista, “de novo”, retoma o tema da novidade: do antigo não se diz mais; acontece uma coisa nova. Devem ser enchidas até a borda. Emerge aqui a ideia da abundância. Assim foi feito. Trazem as talhas à Jesus que pede para que os servidores as levem até o mestre-sala. O qual prova da água que tinha se transformado em vinho. O evangelista informa que “Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois eram eles que tinham tirado a água”. João dá essa informação para sua comunidade para mostrar que havia testemunhas. Os servos sabiam de onde vinha a água que se tinha transformado em vinho (v.9).
O evangelista trabalha com o esquema da superação do sistema levítico-cultual religioso da cultura dos judeus. As seis talhas eram feitas de pedra. Foi sobre duas tábuas de pedra que, no Sinai, Moisés recebeu a Lei. No simbolismo judaico, a água é associada à Torá. Essa não falta, vinho sim — falta a alegria messiânica. A Lei representa todo este pano de fundo do sistema religioso do Antigo Testamento. Quando o narrador faz notar que as talhas (de pedra) usadas para a purificação (ritualismo antiga) estavam lá, sem utilidade, ele estaria insinuando a inutilidade das práticas religiosas judaicas que, diante da novidade de Jesus, encontram-se superadas a partir de agora. A atitude de encher as talhas de água até a borda, dando ideia de abundância, significa que o sistema antigo encontra-se superado pela vida e obra de Jesus, que apresenta a novidade de Deus agindo na história através do dom da vida do Senhor e não mais pela mediação de um sistema cultual falido.
O mestre de cerimônias chama o noivo, que
até agora tinha ficado incógnito. Outro fator curioso é que este não tem nome. Aparece
para receber do mestre-sala uma observação crítica ou irônica da parte de um
servo que era o mestre de cerimônias. “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor
e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu
guardaste o vinho melhor até agora!” (v.10). Esta última parte do versículo
adquire um peso devido ao adverbio de tempo “agora”. Ele expressa a realidade
de que o “agora” está ai. Este “agora” é novidade da renovação escatológica,
que é marcada pela abundância do vinho bom, como recorda Am 9, ao dizer que das
colinas destilaram vinho em abundância. Relembra também a profecia de Isaias,
que recorda a abundância escatológica (Is 61; 63; 66).
O noivo era quem pagava a festa de casamento, para mostrar que tinha posses, que tinha condições econômicas de sustentar a vida. Se o mestre-sala faz observações acerca da qualidade do vinho, onde ele reconhece a superioridade deste, então qual é o verdadeiro noivo para o qual ele deveria ter dito isto? Jesus, que não deixa faltar o vinho novo e bom. Porque, ao mesmo tempo, o noivo e o vinho melhor são Ele mesmo. Assim, há um “noivo escondido” na história, que vem realizar as núpcias de Deus com a humanidade nesta história.
Por fim, o autor situa aquilo que ele acabou de narrar: “Este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele” (v.11). Notemos que o Quarto Evangelista sublinha que este foi o princípio dos sinais (gr. ἀρχὴν τῶν σημείων/arché tón semeíon), realizados por Jesus. Arché (gr. ἀρχὴν / princípio , origem) faz um arco narrativo com o prólogo do Evangelho, quando o catequista bíblico inicia a obra com um solene “No princípio”, que remete ao primeiro dia da criação em Gn 1,1, com a conclusão provisória desta semana inaugural, que remete à nova criação. Nesta semana, Jesus começa a manifestação da Glória de Jesus, mas ainda não plenamente. Os sinais servem para preparar este momento.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de
Botucatu - SP
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