sábado, 27 de janeiro de 2024

IV DOMINGO DO TEMPO COMUM (Ano B) - Mc 1,21-28:

 


O evangelho proposto para o quarto domingo do tempo comum continua a leitura e meditação do dia missionário de Jesus. Mc 1,21-28 está profundamente conectado com a cena anterior, o chamado dos quatro primeiros discípulos para a pesca de gente. Pescar as pessoas, para Jesus, significa retirá-las das circunstâncias, sistemas e situações de morte e transportá-las para o âmbito da vida, através do anúncio libertador da Boa Nova do Reino. Ora, a atividade de Jesus consiste em salvar a vida das pessoas do âmbito da Morte.

Num só dia, o evangelista vai exemplificando através dos gestos que Jesus realiza, o que significa verdadeiramente pescar gente: a liberação do “endemoninhado” (Mc 1,21), a cura da sogra de Pedro (Mc 1,29), a purificação do leproso (Mc 1,40). Esta pesca não é somente uma metáfora, mas a concretização do querer e do agir de Deus através de Jesus.

Mas, aonde se inicia esta pesca: nos lugares difamados e desprestigiados, frequentados pelos pecadores? Categoricamente, não! A atividade geradora de vida de Jesus – a pesca de gente – se realiza ao interno das estruturas de seu tempo, de sua sociedade e história. Feitas as considerações a nível de contextualização, podemos adentrar no horizonte do texto.

“Estando com seus discípulos em Cafarnaum, Jesus, num dia de sábado, entrou na sinagoga e começou a ensinar” (v.21). O evangelista nos situa no tempo e no espaço: Cafarnaum, na Galileia. É Shabat, isto é, dia de Sábado. Neste dia, o judeu piedoso observa a prescrição da Lei de parar com seus afazeres e orientar-se para Deus. Se reúnem na sinagoga para ouvirem a Palavra. Marcos mostra Jesus cumprindo o preceito de ir à sinagoga. Interessante, pois, é o uso do verbo “entrar” no singular. Ora, se Jesus está com seus discípulos, não seria mais conveniente que o verbo que mostra ação estivesse conjugado no plural? Como o texto não se trata de uma crônica dos fatos, mas de uma mensagem catequética, a intenção do autor é a de ensinar para sua comunidade que aqueles primeiros discípulos, mesmo acompanhado o mestre, não o seguem profundamente. Há uma diferença significativa entre seguir e acompanhar. A primeira atitude indica a decisão de conformar e adequar a vida à do mestre, estreitando os laços, estabelecendo uma comunhão e relação de vida com ele. Já a atitude de acompanhar pode indicar que eles ainda não estão completamente comprometidos com Jesus, ou seja, não estão prontos para o que acontecerá.

Uma consideração importante: por três vezes, no horizonte da narrativa, o evangelista mostra Jesus na sinagoga. Lá emergirão situações de conflitos. O número três é simbólico, não se trata de uma grandeza matemática. Ele substitui o adverbio “sempre”. Marcos pretende acenar para o fato de que “sempre” que Jesus entra numa sinagoga emergem situações polêmicas, controvérsias, conflitos. Jesus e os lugares “sagrados” de sua época tornam-se incompatíveis.

Na sinagoga, Jesus se põe a ensinar. Ele não entra para participar do culto sinagogal e ouvir o ensinamento dos chefes da sinagoga, dos escribas (teólogos oficiais da época), que se embasavam na interpretação da lei pela letra. Marcos pretende estabelecer, com isso, uma distinção entre Jesus e doutrinadores oficiais da época.

A reação dos que ali se encontram é de admiração em relação à Jesus, “pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei” (v.22). Marcos apresenta ao seus leitores-ouvintes, o tema da autoridade de Jesus, a qual chama a atenção dos que ali estavam. Ele ensina de modo diferente dos mestres da lei. A autoridade na bíblia consistia no mandato que Deus havia dado aos profetas para pregar a Palavra, a fim de fazê-la conhecida. A autoridade de Jesus revela que Ele é o enviado da parte de Deus para pregar a Boa-Notícia do Reino. Nesse sentido, as pessoas presentes na sinagoga escutam e sentem no Seu ensinamento, a Palavra de Deus.

A autoridade (gr. ἐξουσία/exousia) de Jesus consiste na Sua coerência de vida. O falar coincide com o agir; o Seu agir confirma sua palavra, que, em última análise, é a Palavra do próprio Deus. Ela é acompanhada por aquilo que os sinóticos chamam de “Dynameis” (gr. δυναμις). Este termo deve ser traduzido corretamente como “gestos de poder”. A compreensão desta palavra não pode assumir a conotação de milagre. Não existem milagres no Novo Testamento. Jesus não é um milagreiro exibicionista ou supermercado, por meio do qual se busca sempre um favorzinho ou satisfação das necessidades. O discípulo não pode alimentar em sua consciência uma imagem do Senhor como esta.

Os gestos de poder realizados por Jesus servem para confirmar a sua autoridade enquanto Messias enviado, o autorizado por Deus, para inaugurar, anunciar e realizar o Seu Reinado, por meio de palavras e obras. O primeiro gesto de poder mostrado pelo evangelista é a libertação da consciência de um homem, “possuído” por uma mentalidade/espírito impuro. O que se desenvolve na cena a seguir.

“Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau” (v.23). A tradução litúrgica utiliza o adjetivo mau, traduzindo equivocadamente o termo akathárto. É correto traduzir o termo por impuro. Por quatro vezes Jesus confrontará alguém possuído por um espírito impuro (gr. πνεύματι ἀκαθάρτῳ/pneúmati akathárto). Não há equívocos neste termo. Tampouco há espaços para dramatizações medievais pitorescas e fantasiosas. O que se pretende dizer com “espírito impuro”? Na compreensão judaica, o espírito indica uma energia (um dinamismo) vital que, quando provém de Deus se chama santa porque santifica a pessoa, separando-a do mal. Quando este dinamismo/força provém de realidades contrárias a Deus, se diz que é impura, porque mantém o indivíduo na esfera das trevas. Tornando-o, inclusive, opositor de Deus. Quem é este homem possuído por um espírito impuro? É um indivíduo que aderiu voluntária, livre e acriticamente à um sistema de valor e a uma doutrina que o torna refratário e hostil ao ensinamento de Jesus, à sua vida e ao seu projeto. Portanto, uma pessoa que possui um espírito impuro, é alguém que alimenta em si uma mal espírito, uma má-consciência, uma compreensão equivocada sobre a relação com Deus (Fé), e alimenta uma visão equivocada acerca da prática religiosa.

Ora, onde se dá esta cena? Na sinagoga! Ele a identifica como um espaço que não serve mais à Jesus e seus discípulos, bem como para a própria comunidade cristã. No seu evangelho, as casas emergem como lugares apropriados para se fazer experiência com a Palavra de Deus que o Senhor anuncia. Elas se tornam espaço de vida para a comunidade nascente. Ao passo que a sinagoga dos líderes religiosos se torna espaço de morte. Lugar de alienação da consciência e da experiência de Deus, a partir de uma religiosidade equivocada e desconectada da vida concreta, que não projeta para a liberdade dos filhos de Deus. Pelo contrário, oprime, domina e aprisiona. Neste sentido, Marcos deseja afirmar que tanto as instituições religiosas do tempo de Jesus, bem como as do seu encontram-se atrofiadas. Não conseguem suportar a novidade anunciada por Jesus. Por isso, tornam-se enredadas nos sistemas e nas situações de morte.

No v.24, Marcos dá voz a esta personagem: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus”. O evangelista está denunciando um grupo que se sente ameaçado pelo ensinamento de Jesus. São as lideranças judaicas, os escribas, mestres da lei, que veem seu autoritarismo, prestígio e poder de dominação sendo arruinados pela autoridade, pelo modo de viver e de falar do Senhor.  Serão eles os denunciados Jesus, por estarem ensinando preceitos humanos ao invés da Palavra de Deus. Anulando-as, inclusive, com as tradições e preceitos deles.

“Jesus o intimou: Cala-te e sai dele! Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu” (v.25-26). Jesus interrompe o homem com uma réplica que impossibilita o diálogo. De forma muito hábil, Marcos joga com a personagem do homem obsesso. Ele faz com que ele chame a Jesus de “o Santo de Deus”. Uma expressão que indicava o messias esperado, que interpretaria a Lei de Deus a faria ser observada. O Cristo ordena que se o homem se cale justamente por isso: a imagem que tem a alimenta é absolutamente equivocada, pois o messianismo de Jesus não é conforme a expectativa religiosa equivocada. Porque “o Santo de Deus” também viria com o poder, com a destruição, o domínio, conforme a crença dos chefes religiosos do povo. E o caminho do Senhor será outro: amor e serviço, através da misericórdia e da salvação à todos. No confronto entre o homem possuído pelo espírito impuro e o homem possuído pelo Espírito Santo, é este último que sai vencedor.

Porém, uma nota importante se faz necessária. A proibição feita por Jesus, no evangelho de Marcos, a todos que o confessam como Messias é também proposital, e cumpre função catequética. É o tema do segredo messiânico. É um tema pedagógico e teológico. Pedagógico porque tem a função de conduzir o leitor-discípulo para a realidade teológica de Jesus. Teológico, porque acena para revelação de sua identidade verdadeira, que só acontecerá em Mc 15, com a proclamação feita pelo oficial romano, confessando Jesus como Filho de Deus. A represália ao homem possuído pelo espírito impuro serve de admoestação para que o público que O rodeia, bem como o seu discípulo, não compreenda ou faça uma imagem falsa dele e de sua missão. Para poder confessá-lo como Santo de Deus, de fato, se fará necessário percorrer o caminho e o sentido de Sua vida até as últimas consequências.

Qual a finalidade deste relato? Mostrar que o anúncio da Boa Nova do Reino só pode ser acolhido pela pessoa mediante uma consciência livre. A ação de Jesus revela como Deus age e quem Ele é. O Senhor mostra a face de um Deus que é Pai amoroso, paciente, misericordioso, gerador de vida abundante; que toma a decisão de se colocar nas margens da vida e da história, assumindo o lado dos excluídos, dos despossuídos, marginalizados pelos sistemas de morte. Além da face original de Deus que O Cristo revela, Ele também mostra uma forma nova de se relacionar com Ele, baseada no amor fraterno, na gratuidade, no socorro e no acolhimento aos irmãos. Aquele que não acolhe esta face de Deus e a forma como Ele age através de Jesus, bloqueia a Sua ação, se torna refratário e resistente ao Evangelho. Não está livre para acolher a Boa Nova e o Reino. É semelhante a este homem possuído por uma consciência má; pela mentalidade equivocada; pela errônea religiosidade que pode, inclusive, se tornar uma amarra ou zona de conforto.

Diante deste evangelho, 1) temos, de fato, seguido a Jesus, ou apenas O acompanhado? 2) Com coragem e amparados pela Graça, conseguimos identificar a consciência má, a mentalidade equivocada em nós, simbolizada pelo espírito impuro? 3) Quais são as amarras ou zonas de conforto religiosas equivocadas nas quais nos permitimos enredar? Conseguimos identificá-las?

Oxalá estejamos no discipulado e no seguimento a Jesus, realizado com Ele a libertação das pessoas e desta história.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 20 de janeiro de 2024

III DOMINGO DO TEMPO COMUM (Ano B) - Mc 1,14-20:

 


O evangelho proposto para o terceiro domingo do tempo comum é retirado de Mc 1,14-20. Um dia de missão na vida de Jesus. O capítulo primeiro da catequese de Marcos apresenta, após a prisão de João Batista, o início do ministério público do Mestre. A partir do v.14, o autor começa a narrar a Sua atividade missionária, ambientando-a num só dia. Ele situa a narrativa no espaço: a Galiléia. Terra de ninguém; vista com maus olhos pelos judeus do sul.

“Jesus foi para a Galiléia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (v.14-15). Por três vezes, só neste primeiro capítulo, o termo Evangelho é utilizado pelo evangelista, e, por isso, merece atenção. No Novo Testamento, a categoria Evangelho significa Deus mesmo atuando na história, através da vida e das ações de Jesus. Esta Boa Nova consiste numa forma nova de revelar a Deus de se falar sobre Ele. Por isso, Marcos define o tempo em quem a boa-noticia é inaugurada como definitivo e pleno, isto é, um Kairós (gr. καιρὸς). O conteúdo desta boa notícia (Evangelho), neste tempo oportuno (Kairós) consiste no seguinte: “o Reino de Deus está próximo”. Literalmente, “se aproximou”, “chegou”. Dito de outra forma: chegou o tempo oportuno e favorável da ação libertadora de Deus na história, através deste Jesus.

Nos detenhamos um pouco sobre o conceito Reino de Deus. Na teologia e exegese bíblica atuais, o conceito Reino de Deus não pode ser resumido tão somente a um espaço. O Reino de Deus – ou Reinado – consiste no Seu agir; o Seu Senhorio manifestado na história através de seu enviado. Por isso, o Reinado de Deus é uma pessoa, Jesus, que revela o agir e o querer do Pai na história. Mas é sempre importante ter em mente o seguinte: por mais que o Reino seja a atuação de Deus através da vida e da missão de Jesus, existe uma ética, um ser/estar e agir enquanto consequência da adesão a Cristo. Esta ética se vive no mundo. Ainda que não encontre aqui o seu fim e sua plenitude.

A este agir e ser, o evangelista define como Conversão: “convertei-vos”. O autor usa aqui o verbo metânoeho (gr. μετανοέω). Conversão na tradição bíblica não se refere a uma simples mudança de rota ou direção. Tampouco é a conversão da qual falava o Batista, aquela religiosa e institucional. Trata-se de uma mudança de mentalidade. É uma atitude que brota da interioridade humana, que passa a delimitar o agir da pessoa. É o convite a viver a vida segundo a mentalidade, as opções e as escolhas inerentes ao projeto de Deus que vai se desvelando a partir da vida e da missão de Jesus.

A primeira conversão que a pessoa que foi chamada ao discipulado deve abraçar é aquela acerca da imagem equivocada de Deus que alimenta em si. Converter-se da imagem de um Deus carrasco, vingativo, punitivo, para a assimilação da imagem do Deus e Pai de Jesus, que é revelado como amor, misericórdia, perdão, doador de vida. Ora, Deus exerce seu senhorio (Reinado), não através de leis exteriores aos homens, mas comunicando-lhes Sua mesma capacidade de amar, de colocar-se ao lado dos pequenos, dos excluídos; de se abaixar, para servir o outro. Este anúncio deve gerar uma radical transformação no discípulo. Por isso, para se aderir de verdade à esta Boa Nova, se faz necessária a conversão.

“E, passando à beira do mar da Galileia, Jesus viu Simão e André, seu irmão, que lançavam a rede ao mar, pois eram pescadores” (v.16). Depois de mostrar o anúncio proclamado por Jesus, o evangelista o situa noutro lugar importante: às margens do Mar da Galileia. Na teologia de Marcos, o Mar da Galileia remonta a outro: aquele que o povo, no Êxodo, atravessou para viver livre da escravidão. Para o autor, Jesus será aquele que inaugurará o novo Êxodo para a humanidade que aderiu ao projeto de Deus.

Nas margens, Jesus encontra os pescadores. Símbolos de uma realidade e sociedade que promove marginalização. Também eles se encontram nesta situação. É com estes que Ele quer contar, enquanto colaboradores. Primeiro, Simão e seu irmão André. Estavam lançando as redes. A estes, Jesus diz: “Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens” (v.17). Qual o significado do convite? “vir após mim” significa reorientar a vida para um sentido novo; implica renunciar aos próprios interesses, e estabelecer uma relação pessoal com o Cristo. Isto é seguimento, discipulado.

O que fazem os pescadores? Ao pescarem, primeiramente pensam em suas próprias necessidades. Ao retirarem os peixes das águas, os matam para sanar a fome e ganhar o dia de trabalho. Ora, o ambiente vital do peixe é água. Ao ser tirado de lá, ele morre. Em contrapartida, a água não é o ambiente vital do homem. Elas, além da vida, podem também trazer a morte para o ser humano. Jesus inverte a lógica das coisas a partir deste convite. “Pescar homens” significa, então, retirar o ser humano das condições e das situações que representam a não-vida, uma vez que o mar é símbolo para as forças hostis e de morte. Imagem das forças opostas ao querer e ao projeto de Deus, conforme a tradição bíblica.

Ao colocar Jesus nas margens do mar da Galileia, o catequista bíblico pretende ensinar para a sua comunidade que com Jesus, o discípulo deverá refazer sempre sua caminhada, optando pelo projeto de vida plena, atravessando o mar como o povo fez no Êxodo. Mas será sempre nas margens que, aquele que aderiu ao projeto de Jesus e do Pai, deverá andar para se permitir encontrar pelo Senhor, a fim de encontrar os que foram marginalizados. A exemplo do mestre.

Retirar as pessoas das situações de morte, nas quais estiverem enredadas, e transporta-las para a vida. Será a missão de Jesus, e, por conseguinte, a do discípulo. É a capacidade de desenvolver a missão de gerar vida nos outros, não mais pensando nos próprios interesses, mas visando o bem do outro. “E eles, deixando imediatamente as redes, seguiram a Jesus” (v.18). O adverbio “imediatamente” é forte. Ele pretende indicar que a decisão de mudar de vida e se pôr em seguimento não é postergada, não é deixada para depois, mas assumida com prontidão. Os dois irmãos deixam as redes, ou seja, aquilo que lhes poderia significar algum empecilho para abraçar o tempo pleno que se inaugurava diante deles.

Os versículos finais (19-20) introduzem mais duas personagens: os filhos de Zebedeu, Tiago e João. O narrador nos informa que eles estão consertando as redes em companhia de seu pai. Jesus passa por eles, faz-lhes o convite e, imediatamente, deixando tudo, e põem-se a segui-lo. É interessante: o evangelista não dá a conhecer o que o Cristo teria dito aos dois. Ele só nos informa qual foi a atitude deles, deixar o pai e os empregados na barca. O pai tinha um papel muito importante na sociedade palestinense daquele tempo. Ele representava as instituições e tradições; simbolizava a segurança do clã, a zona de conforto e de convívio da família. Os irmãos Tiago e João servem de imagem para o discípulo que está aderindo ao projeto de Jesus: quem quiser ouvir o chamado que o Senhor faz precisa aprender a deixar para trás as tradições do passado; o modo antigo de pensar; as condutas equivocadas. O Evangelho, ao entrar na vida das pessoas, coloca tudo no seu lugar. Nunca acima, ou no lugar dele, mas sempre posto em relação à Boa Notícia.

Como o texto bíblico é uma página de catequese, e, portanto, não tem a intenção de transmitir uma crônica dos acontecimentos, outro elemento que merece a nossa atenção é a imagem dos empregados, também deixados na barca, com o pai. Eles mostram a condição que os dois irmãos possuíam, a de senhores. Ao deixarem o pai, juntamente com seus empregados na barca, Marcos pretende ensinar que eles deixaram para trás a pretensão e a lógica de serem servidos, de modo a aprenderem a dinâmica do serviço com o Senhor. Quem quiser aderir ao projeto de Jesus deverá assimilar, aprender e crescer na consciência do serviço; a lógica do servir, e não ser mais servido. A atitude de colocar a vida sempre mais em relação às necessidades dos outros. Assim será a vida de Jesus, e, portanto, deverá ser a lógica da vida de seu seguidor.

Há uma última peculiaridade que o texto evangélico de hoje apresenta, gerando provocação. O fato de que as atividades destes quatros primeiros são diferentes. O evangelista fala que Simão e André eram pescadores. Já, Tiago e João seriam consertadores de redes. O que esta peculiaridade pretende ensinar? A uns o Senhor chama para pescar; a outros, para consertar (tecer) as redes. Ou seja, há uma multiplicidade de dons a serem realizados, mas um só é o chamado. Ele é universal, ou seja, para todos: ao seguimento, ao discipulado a Jesus, a capacidade de descentrar-se de si para colocar-se em relação aos outros, cooperando na promoção do dinamismo libertador e gerador de vida, que Reinado de Deus propõe.

O anúncio do Reino é uma proclamação de vida para todos. Como nossas comunidades vêm se comportando diante do chamado de pescar homens e consertar redes? Como e onde sermos pescadores de gente nesta história nesta sociedade? Como tenho respondido ao convite para o Discipulado ao Senhor, imediatamente ou ainda não tenho dado resposta? Quais são as redes que ainda podem nos prender, nos enredar, e, portanto, impedir-nos de acolher o tempo presente que é pleno e carregado de Salvação? Deus, em Jesus, chamou-nos a todos.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 13 de janeiro de 2024

II DOMINGO DO TEMPO COMUM (Ano B) - Jo 1,35-42:

 


O segundo domingo do tempo comum, apresenta novamente a leitura do Evangelho segundo João. No domingo anterior, a Igreja celebrava a Epifania, encerrando o tempo do Natal, e, em seguida a festa do Batismo do Senhor, que nos introduzira na dinâmica do tempo comum. As personagens do Batista e de Jesus retornam, mas sob a perspectiva do Quarto Evangelho, a partir de Jo 1,35-42, bloco narrativo importante, pois apresenta a semana inaugural de Jesus no evangelho joanino, a qual prepara a realização do primeiro sinal. Este ministério público – visibilizado pela semana inaugural - inicia-se imediatamente após batismo.

O autor do Quarto Evangelho tem uma finalidade específica para essa periodização. Ele delimita os dias com o termo, “na manhã (no dia) seguinte”, esquematizando a semana inaugural da missão de Jesus a partir da mesma estrutura narrativa do Livro do Gênesis. Lá, o autor sagrado narra, dia após dia, o evento da criação. Servindo-se deste mesmo esquema, João quer ensinar para a sua comunidade que a semana inaugural da missão de Jesus é a inauguração de uma nova criação. Um novo tempo. Um dia novo!

“João estava de novo com dois de seus discípulos” (v.35). O evangelista apresenta de novo a figura do Batista, mas, agora acompanhado. Nos versículos anteriores, o havia apresentado sozinho. É interessante ressignificar esta cena, pois, na maioria das vezes se pensa que o profeta do Jordão tenha declarado publicamente, pela primeira vez, a identidade de Jesus. Não. O texto da primeira declaração ambienta o Batista sozinho, como que se quisesse mostra-lo chegando à conclusão de que seu discípulo, Jesus, viria a ser o realizador da vontade de Deus (“cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”). Por ser conhecedor das Escrituras consegue tomar consciência de que Deus começará a atuar de forma nova naquele Jesus.

Nova, por que? Porque o ungido de Deus não aparecerá mais como o Leão de Judá, o descendente de Davi, guerreiro, poderoso, vinculado à violência e ao domínio. Mas atuará como cordeiro. É um contraste tremendo que também o Batista precisa assimilar: um cordeiro, em contraposição ao Leão. Este é violento, grandioso, predador. Ao passo que o primeiro é manso. Mais adiante nos deteremos no significado deste termo para o evangelho joanino. Até aqui, basta saber que esta é nova concepção acerca do Messias de Deus que o Batista adquire e adere. Isso nos permite entrar no desenvolvimento da cena.

“Vendo Jesus passar, disse: Eis o Cordeiro de Deus!” (v.36). O evangelista mostra João Batista com dois de seus discípulos. E, trabalhando novamente com o verbo “ver”, faz, então a proclamação da identidade de Jesus a eles. O verbo sofre uma alteração para explicitar o seu significado. Blepein (gr. βλέπω/ver) aparece aqui como Emblépsas (gr. ἐμβλέψας), que possui o sentido de olhar fixamente, na direção de alguma coisa, a fim de conseguir captar lhe a identidade. Ou seja, é a capacidade de orientar o olhar na direção correta. Nesse sentido, o Batista “vê” em Jesus a sua autêntica identidade de Messias. Ele consegue assimilar a direção correta que a vida daquele homem tomará.

Agora, se pode avançar na compreensão do termo “Cordeiro de Deus! (ἀμνὸς τοῦ θεοῦ)” (v.36). Esta afirmação revela duas dimensões da identidade de Jesus: cordeiro de Deus e Filho de Deus, porque batiza com o Espírito de Deus (vv. 32-34). Pode ser que, como bom judeu, o evangelista tenha se apropriado do cordeiro pascal de Ex 12, o qual Moisés ordenou (cf. Ex 12) a cada hebreu e seus familiares, matassem e o comessem. O sangue serviria de sinal salvador nas portas do hebreus, para que o anjo exterminador pulasse aquela casa e fossem salvos. A carne do cordeiro, daria força na jornada que os hebreus teriam de realizar. O autor do evangelho identifica a Jesus como o cordeiro, cujo sangue é redentor e salvador, e cuja carne alimenta e dá força para no caminho. A segunda imagem é a do Servo Sofredor de Is 53,4-12.  O servo-profeta seria como um cordeiro manso levado ao matadouro, que reconciliaria e curaria as feridas do povo de Israel com seu sangue e sua morte. Nesse sentido, alguém que reconcilia as pessoas com Deus pode ser comparado ao cordeiro. Este é o significado que o evangelista dá à proclamação do Batista.

Assim, todo o discípulo que desejar aderir ao projeto de Jesus deve estar disposto a acolhê-lo como cordeiro de Deus. Assimilar o sentido de sua vida e obra (comer sua carne), e o da sua existência (beber o seu sangue). Significa compreender que o caminho deste Jesus, como cordeiro (manso, livre, despossuído, servo) não se coaduna com as ideologias do poder, do prestígio, das evidências, da autorreferência, do ter e do ser, da grandiosidade, da prepotência e da autossuficiência, isto é, com a imagem do leão de Judá.

“Ouvindo essas palavras, os dois discípulos seguiram Jesus” (v.37). Dois discípulos se colocam em movimento. Um será logo identificado. André é seu nome. Mas o outro não recebe nome. João faz de propósito. Quando o leitor se depara com uma personagem bíblica que não possui nome, o leitor deve se identificar com ela; fazer dela um espelho para si. É o discípulo que iniciou agora a sua caminhada na fé. Este, portanto, é a imagem exemplar para todo aquele que se propõe a seguir a Jesus. Ele se tornará o discípulo amado, aquele que reconhecerá Jesus em sua real identidade e que viverá a mesma vida do Senhor.

Na ordem da narrativa, Jesus percebe que está sendo seguido: "Voltando-se para eles e vendo que o estavam seguindo, Jesus perguntou: "O que estais procurando?" Agora, o verbo importante que deve chamar a atenção do leitor-ouvinte é o aplicado à Jesus pelo evangelista em relação aos discípulos, Theaomai (gr. θεάομαι/θεασάμενος). Ele expressa o olhar para o interior, um olhar contemplativo. Muito mais profundo que o Emblépsas (gr. ἐμβλέψας). O Senhor não olha a direção que eles tomam, mas mira o interior deles, para ver qual seria a verdadeira intenção destes dois. Por isso, a pergunta: “O que estais procurando?” (v.38).

Jesus não pergunta “quem vocês estão procurando”, mas “o que”? Ou seja, quais expectativas ou intenções os move? É intencional a pergunta transmitida pelo evangelista. Ele deseja provocar e confrontar sua comunidade de discípulos: “o que estais a procurar neste Jesus?” “Quais anseios e vontades procuram Nele?” “Quais vantagens, benesses, regalias, posições procurais em Jesus?” As provocações que emergem desta pergunta feita pelo Jesus de João são sérias e profundas, e, por isso, devem sempre colocar o discípulo num exame de consciência.

“Rabi (que quer dizer: Mestre), onde moras? Jesus respondeu: "Vinde ver". Foram pois ver onde ele morava e, nesse dia, permaneceram com ele. Era por volta das quatro da tarde” (v.38-39). O tema da habitação é recorrente no Quarto Evangelho. Para o autor e sua comunidade, Jesus é a morada de Deus. Jesus habita, onde está o amor de Deus. Essa é a morada, o endereço de Deus em Cristo. O Senhor está convidando o discípulo a permanecer (habitar) com Ele e Nele, pois assim habitarão (morarão) no amor do Pai. Naquele tempo, o discípulo não só recebia as lições do mestre, mas também convivia com ele, de modo a estabelecer uma profunda relação e comunhão de ideias e de vida com o mestre.  O Evangelista anota o horário. “Era por volta das quatro da tarde”. Já se aproximava o pôr-do-sol. Era o fim da jornada. Todavia, ao entardecer, conforme o costume de se contar as horas e de dividir os dias na tradição do povo de Jesus, se inaugurava um novo dia. Está, portanto, para iniciar um novo dia para o discípulo que se decide por permanecer com Jesus: um novo tempo, um novo caminho e uma vida nova.

Outro discípulo é inserido na narrativa, Simão, irmão de André, o qual, ao iniciar o novo dia, vai em busca de seu irmão. Mas a reação dele, diante da novidade do anúncio é intrigante. Não esboça reação alguma ao receber a notícia do encontro do messias. Nem uma palavra sequer verbaliza. Parece que ele se assemelha a um peso morto. Fato é que precisa ser conduzido por André. O que acena para as resistências que o discípulo ainda possui.

“Jesus olhou bem para ele e disse: ‘Tu és Simão, filho de João; tu serás chamado Cefas’ (que quer dizer: Pedra)” (v.42). Pela segunda vez aparece o verbo “ver”, que, como dissemos acima, indica a capacidade de ver na direção correta, a real identidade de uma pessoa. Agora, ação é realizada por Jesus em relação à Simão. O Senhor faz uma radiografia de Simão: “Tu és Simão, filho de João”. Simão, do hebraico Shimom, significa “Deus ouviu”, pode aludir ao desejo do seu pai de ter um filho homem. Como Deus ouviu sua oração, então o pescador de Betsaida tenha recebido do pai este nome. Não se esqueça que os nomes na tradição bíblica indicam a identidade e a missão a desempenhar. Mas Jesus acrescenta à personagem o segundo nome: “tu serás chamado Cefas”, que é traduzido pelo evangelista por “pedra”. Simão recebe a vocação de ser pedra de construção (lit. tijolo). Ou seja, João, ao utilizar novamente este verbo para Jesus em relação à Simão, deseja ensinar a comunidade de discípulos a olhar para direção correta para a qual deve tender a vida: a experiência com Jesus, que tem a força de transformar a vida, e de orientar para a missão a ser vivida. Apontar a Jesus, o Cordeiro de Deus, e cooperar, enquanto tijolo-pedra de construção, na edificação do Reino.

Com qual das personagens nos identificamos? Sabemos apontar a Jesus como o Cordeiro de Deus? O que estamos procurando em Jesus? Temos permanecido com ele, ou ido embora, sem comprometimento? Em que hora da vida estamos, diante do chamado que o Senhor nos dirige? Sabemos olhar para nosso nome e perceber nele a missão-direção correta que Jesus nos dá?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 6 de janeiro de 2024

EPIFANIA DO SENHOR (Ano B) - Mt 2,1-12:

O evangelho proposto para a solenidade da Epifania do Senhor é retirado da catequese mateana, Mt 2,1-12. O texto bíblico situa-se ao interno das narrativas da infância de Jesus. O material literário que toca a infância do Cristo não possui a finalidade de ser uma crônica exata dos acontecimentos e dos fatos. A propósito, nenhum dos quatro evangelhos canônicos o são. Mas, narrativas das experiências das respectivas comunidades de fé em torno de Jesus crucificado-ressuscitado, que tratam de confessar e proclamá-lo como Senhor e Cristo à luz de todos os acontecimentos pascais, que iluminam toda a trajetória da Sua vida. Por isso, os evangelhos não são biografias Dele, mas narrativas de uma experiência comunitária de fé. Portanto, são teologias (cristologias, soteriologia) acerca de Jesus.

A narrativa proposta para a liturgia de hoje é uma teologia narrativa elaborada por Mateus, a fim de transmitir uma mensagem para a sua comunidade dos anos 80 d.C e para os discípulos de todos os tempos e lugares a respeito de Jesus de Nazaré. O autor, através dos versículos de hoje, quer responder para a comunidade quem é esse Jesus, pelo qual sofrem.

Mateus, ao escrever o seu Evangelho, serve-se de todo o patrimônio religioso-histórico do povo de Israel. Assim, recordando os acontecimentos e as personagens da tradição religiosa, as reinterpretará a partir de Jesus de Nazaré, através da técnica do midrash – a reinterpretação dos textos legislativos e narrativos da Torah. Para o evangelista, o Senhor assume e revive a história e a tradição de seu povo com a seguinte finalidade: fazer crescer em sua comunidade a convicção de Jesus de Nazaré é o Messias enviado por Deus.

O texto proposto para hoje enquadra-se naquele estilo dito acima e nas intenções do evangelista. Para construir esta narrativa, Mateus se serve de um texto do Antigo Testamento, a visita da rainha de Sabá ao sábio rei Salomão, o descendente de Davi, em 1Rs 10 (// 2Cr 9). Ela se dirige à Judá para colocar a prova a sabedoria do rei. A sabedoria de Deus, da qual Salomão compartilha atraia os estrangeiros. É uma forma de se dizer que esta mesma sabedoria não conhece limites. Não tem fronteiras. Ela extrapola os muros de Judá e chega às nações. Exposto este pano de fundo que sustenta a narrativa de hoje, pode-se mergulhar em seu horizonte.

“Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo’” (v. 1-2). Os dois primeiros versículos introduzem a narrativa no tempo e no espaço. Mateus bebe da mesma tradição de Lucas e confirma o nascimento de Jesus, em Belém, no período de Herodes Antípas (rei asmoneu, usurpador e subserviente à Roma). Mas o que deve chamar a nossa atenção é a chegada de três estrangeiros de profissão duvidosa, que já surpreendem os leitores do evangelho, provocando certa inquietação. O evangelista usa o termo “mago” (gr. μάγος). Estes, não eram bem vistos segundo a Lei de Israel. Deveriam ser banidos do meio do povo, de acordo com a prescrição de Lv 19 e, também, posteriormente no Talmud se lê que “aquele que aprende qualquer coisa relacionado à magia deverá morrer”.

Os primeiros a receberem a boa notícia do nascimento de Jesus Messias, no evangelho mateano – diferentemente de Lucas, que narra o anúncio do anjo aos pastores – são os estrangeiros, que são pagãos e de profissão duvidosa. O evangelista os identifica como forasteiros, estrangeiros, que, no tempo da sociedade de Jesus, bem como na que se encontra inserida a comunidade para qual escreve, não eram bem vistos. Eram pessoas a serem temidas.

Todavia, ao interno dos Evangelhos, são vistos sob perspectiva positiva, pois são destinatários do projeto salvífico de Deus. Eles oferecem o testemunho de uma boa noticia de salvação que se estende a todos. Há, aqui, a primeira lição importante a ser retida do texto. A salvação, que representa todo o projeto de vida e benção que Deus oferece, não é um privilégio exclusivo de Israel, mas inclusivo. É um convite destinado a todos, sem distinção e restrição.

Contudo, diante da boa notícia, Herodes, o rei posto, se perturba. “Ao saber disso, o rei Herodes ficou perturbado, assim como toda a cidade de Jerusalém” (v.3). Mateus acrescenta que também Jerusalém compartilha do mesmo estado de ânimo. O rei e a cidade santa são símbolos do poder, da dominação, da tirania. Se perturbam porque sentem-se ameaçados em sua zona de conforto.  O evangelista, para colorir vivamente a cena utiliza verbo “tarásso” (gr. ταράσσω), “ficou perturbado”. Utilizado muitas vezes nas narrativas evangélicas para expressar a agitação das águas do mar. Ele quer dar a conhecer o estado de ânimo das personagens: uma agitação interior incontrolável! Para, nesse sentido, revelar como os líderes políticos e religiosos ficam quando percebem sinais de mudança nas bases, com a possibilidade de perda de poder e privilégios.

Acontece que esta salvação não reside em Jerusalém, centro do poder religioso e político do povo. Consultando as elites religiosas (v.4-5), experts nas Escrituras, obtém-se a informação sobre o lugar do nascimento do novo rei: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá um chefe que vai ser o pastor de Israel, o meu povo” (v.6). Mateus se serve da profecia antiga de Miqueias. Em Belém. Fora de Jerusalém, portanto. Ali não encontram o novo rei e sua luz. Só encontram a falsidade, a tirania, o poder e as trevas.

Interessante. Mateus omite que a luz que havia guiado os visitantes pagãos continuava brilhando sobre a cidade santa. Ali ela não se faz ver. Ao contrário, somente quando eles se afastam de Jerusalém e da influência de Herodes é que podem novamente contemplá-la. Os magos partem, pois, para Belém. Em Jerusalém, naquele ambiente de trevas, corrupção, poder, falsidade e tirania, eles não puderam fazer uma experiência autêntica de Deus.

“Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele, e o adoraram. Depois abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra” (v.11). O evangelista utiliza o verbo “adorar” (gr. προσκυνέω / proskinêo). Verbo utilizado somente para a atitude do homem em relação à Deus. Ele quer ensinar para a sua comunidade que os magos reconheceram no menino a presença de Deus que os atraiu para lá. Assim, o catequista bíblico, aos servir-se da técnica da reinterpretação dos textos antigos, na perspectiva de uma continuidade histórica, opera uma superação. Na visita dos sábios do Oriente, são eles (mestres das ciências, estudiosos dos astros e dos fenômenos), que se deixam interpelar e se render pela sabedoria de Deus, presente e revelada naquele pequeno recém-nascido. Este é o segundo ensinamento que narrativa nos oferece.

Uma interpretação acerca dos presentes oferecidos. Os visitantes apresentam ouro, incenso e mirra. Muitas vezes se romantizou demais a cena, aludindo aos sofrimentos inerentes a vida de Jesus, à sua divindade e “realeza”. Em suma, os presentes não querem aludir ao destino de Jesus. Eles simbolizam a vocação que Israel não consegui responder, mas que o Cristo recapitula em si e leva à realização, inclusive transmitindo-a para o novo Israel, a comunidade dos discípulos e das discípulas de Jesus. Vejamos: o ouro está ligado à realeza de Deus, e, na tradição de Israel, o povo é chamado a se tornar um “povo de reis”. O incenso, é a oferta que os sacerdotes ofereciam no templo; as Escrituras afirmam que Israel recebe de YHWH o chamado para ser um “povo sacerdotal”. A mirra é um perfume utilizado nas núpcias do casal; segundo a tradição profética, Israel é a esposa desposada por Deus, o marido. De acordo com o evangelista, este projeto de “povo de reis, sacerdotal, e esponsal” não pertence tão somente à Israel, mas, nos magos, que trazem estas ofertas, encontra-se aberto a todas as nações. É uma proposta dirigida a toda a humanidade através da manifestação que Deus realiza em Jesus.

“Avisados em sonho para nãos voltarem a Herodes, os magos retornaram para sua terra seguindo outro caminho” (v. 12). Seguir outro caminho é a primeira atitude de quem faz um encontro autêntico com Jesus. Desse encontro, surge uma nova maneira de relacionar-se com Deus e com o próximo. A experiência autêntica com Deus, portanto, provoca no ser humano a necessidade de percorrer novos caminhos, o que pode ser compreendido como uma nova maneira de viver, com novas atitudes parecidas com as de Jesus. Relações humanas sinceras, reconciliadas; relações de justiça com a criação; relações equilibradas com as coisas; estruturas de vida e de liberdade. Em simples palavras: viver como vive o Filho de Deus, sendo Nele e através de Dele, filhos do Pai, e, portanto, e irmãos. 

O evangelho da solenidade da Epifania aponta para três ensinamentos importantes: 1) A salvação não é um privilégio exclusivo de poucos, mas inclusivo para todos. 2) Saber reconhecer a sabedoria de Deus presente no pequeno de Belém. Reconhecer-se pequeno, mesmo com tudo o que se sabe e com tudo aquilo que se é, diante de Outro, maior que si. Ainda, aprender sobre Deus – realizar uma experiência com Ele – também com os que são de fora; com os que pensam e vivem de modo diverso. O outro que pensa e vive diferente de mim, não é um inimigo a ser vencido, um oponente a ser derrotado, um adversário ou “herege” a ser combatido. O outro é um irmão. E, comigo, chamado igualmente a participar deste projeto de vida plena revelado integralmente a todos. Indistintamente. 3) Assumir outro caminho, diferente do de Herodes, a conversão. Mudança daquela mentalidade equivocada do poder, do domínio, do privilégio, arrogância, autossuficiência, morte, para o sentido que a vida de Jesus aponta: amor, serviço, fraternidade, solidariedade e vida plena.

A manifestação de Deus revela quem Ele é a partir de Jesus, mas desvela, ao mesmo tempo, quem é o homem e a mulher, a pessoa humana diante do Deus de Jesus. Por isso, quem somos diante do texto? Herodes ou os magos? Onde estamos: envolvidos das trevas ou seguindo a luz?

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.