sábado, 27 de janeiro de 2024

IV DOMINGO DO TEMPO COMUM (Ano B) - Mc 1,21-28:

 


O evangelho proposto para o quarto domingo do tempo comum continua a leitura e meditação do dia missionário de Jesus. Mc 1,21-28 está profundamente conectado com a cena anterior, o chamado dos quatro primeiros discípulos para a pesca de gente. Pescar as pessoas, para Jesus, significa retirá-las das circunstâncias, sistemas e situações de morte e transportá-las para o âmbito da vida, através do anúncio libertador da Boa Nova do Reino. Ora, a atividade de Jesus consiste em salvar a vida das pessoas do âmbito da Morte.

Num só dia, o evangelista vai exemplificando através dos gestos que Jesus realiza, o que significa verdadeiramente pescar gente: a liberação do “endemoninhado” (Mc 1,21), a cura da sogra de Pedro (Mc 1,29), a purificação do leproso (Mc 1,40). Esta pesca não é somente uma metáfora, mas a concretização do querer e do agir de Deus através de Jesus.

Mas, aonde se inicia esta pesca: nos lugares difamados e desprestigiados, frequentados pelos pecadores? Categoricamente, não! A atividade geradora de vida de Jesus – a pesca de gente – se realiza ao interno das estruturas de seu tempo, de sua sociedade e história. Feitas as considerações a nível de contextualização, podemos adentrar no horizonte do texto.

“Estando com seus discípulos em Cafarnaum, Jesus, num dia de sábado, entrou na sinagoga e começou a ensinar” (v.21). O evangelista nos situa no tempo e no espaço: Cafarnaum, na Galileia. É Shabat, isto é, dia de Sábado. Neste dia, o judeu piedoso observa a prescrição da Lei de parar com seus afazeres e orientar-se para Deus. Se reúnem na sinagoga para ouvirem a Palavra. Marcos mostra Jesus cumprindo o preceito de ir à sinagoga. Interessante, pois, é o uso do verbo “entrar” no singular. Ora, se Jesus está com seus discípulos, não seria mais conveniente que o verbo que mostra ação estivesse conjugado no plural? Como o texto não se trata de uma crônica dos fatos, mas de uma mensagem catequética, a intenção do autor é a de ensinar para sua comunidade que aqueles primeiros discípulos, mesmo acompanhado o mestre, não o seguem profundamente. Há uma diferença significativa entre seguir e acompanhar. A primeira atitude indica a decisão de conformar e adequar a vida à do mestre, estreitando os laços, estabelecendo uma comunhão e relação de vida com ele. Já a atitude de acompanhar pode indicar que eles ainda não estão completamente comprometidos com Jesus, ou seja, não estão prontos para o que acontecerá.

Uma consideração importante: por três vezes, no horizonte da narrativa, o evangelista mostra Jesus na sinagoga. Lá emergirão situações de conflitos. O número três é simbólico, não se trata de uma grandeza matemática. Ele substitui o adverbio “sempre”. Marcos pretende acenar para o fato de que “sempre” que Jesus entra numa sinagoga emergem situações polêmicas, controvérsias, conflitos. Jesus e os lugares “sagrados” de sua época tornam-se incompatíveis.

Na sinagoga, Jesus se põe a ensinar. Ele não entra para participar do culto sinagogal e ouvir o ensinamento dos chefes da sinagoga, dos escribas (teólogos oficiais da época), que se embasavam na interpretação da lei pela letra. Marcos pretende estabelecer, com isso, uma distinção entre Jesus e doutrinadores oficiais da época.

A reação dos que ali se encontram é de admiração em relação à Jesus, “pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei” (v.22). Marcos apresenta ao seus leitores-ouvintes, o tema da autoridade de Jesus, a qual chama a atenção dos que ali estavam. Ele ensina de modo diferente dos mestres da lei. A autoridade na bíblia consistia no mandato que Deus havia dado aos profetas para pregar a Palavra, a fim de fazê-la conhecida. A autoridade de Jesus revela que Ele é o enviado da parte de Deus para pregar a Boa-Notícia do Reino. Nesse sentido, as pessoas presentes na sinagoga escutam e sentem no Seu ensinamento, a Palavra de Deus.

A autoridade (gr. ἐξουσία/exousia) de Jesus consiste na Sua coerência de vida. O falar coincide com o agir; o Seu agir confirma sua palavra, que, em última análise, é a Palavra do próprio Deus. Ela é acompanhada por aquilo que os sinóticos chamam de “Dynameis” (gr. δυναμις). Este termo deve ser traduzido corretamente como “gestos de poder”. A compreensão desta palavra não pode assumir a conotação de milagre. Não existem milagres no Novo Testamento. Jesus não é um milagreiro exibicionista ou supermercado, por meio do qual se busca sempre um favorzinho ou satisfação das necessidades. O discípulo não pode alimentar em sua consciência uma imagem do Senhor como esta.

Os gestos de poder realizados por Jesus servem para confirmar a sua autoridade enquanto Messias enviado, o autorizado por Deus, para inaugurar, anunciar e realizar o Seu Reinado, por meio de palavras e obras. O primeiro gesto de poder mostrado pelo evangelista é a libertação da consciência de um homem, “possuído” por uma mentalidade/espírito impuro. O que se desenvolve na cena a seguir.

“Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau” (v.23). A tradução litúrgica utiliza o adjetivo mau, traduzindo equivocadamente o termo akathárto. É correto traduzir o termo por impuro. Por quatro vezes Jesus confrontará alguém possuído por um espírito impuro (gr. πνεύματι ἀκαθάρτῳ/pneúmati akathárto). Não há equívocos neste termo. Tampouco há espaços para dramatizações medievais pitorescas e fantasiosas. O que se pretende dizer com “espírito impuro”? Na compreensão judaica, o espírito indica uma energia (um dinamismo) vital que, quando provém de Deus se chama santa porque santifica a pessoa, separando-a do mal. Quando este dinamismo/força provém de realidades contrárias a Deus, se diz que é impura, porque mantém o indivíduo na esfera das trevas. Tornando-o, inclusive, opositor de Deus. Quem é este homem possuído por um espírito impuro? É um indivíduo que aderiu voluntária, livre e acriticamente à um sistema de valor e a uma doutrina que o torna refratário e hostil ao ensinamento de Jesus, à sua vida e ao seu projeto. Portanto, uma pessoa que possui um espírito impuro, é alguém que alimenta em si uma mal espírito, uma má-consciência, uma compreensão equivocada sobre a relação com Deus (Fé), e alimenta uma visão equivocada acerca da prática religiosa.

Ora, onde se dá esta cena? Na sinagoga! Ele a identifica como um espaço que não serve mais à Jesus e seus discípulos, bem como para a própria comunidade cristã. No seu evangelho, as casas emergem como lugares apropriados para se fazer experiência com a Palavra de Deus que o Senhor anuncia. Elas se tornam espaço de vida para a comunidade nascente. Ao passo que a sinagoga dos líderes religiosos se torna espaço de morte. Lugar de alienação da consciência e da experiência de Deus, a partir de uma religiosidade equivocada e desconectada da vida concreta, que não projeta para a liberdade dos filhos de Deus. Pelo contrário, oprime, domina e aprisiona. Neste sentido, Marcos deseja afirmar que tanto as instituições religiosas do tempo de Jesus, bem como as do seu encontram-se atrofiadas. Não conseguem suportar a novidade anunciada por Jesus. Por isso, tornam-se enredadas nos sistemas e nas situações de morte.

No v.24, Marcos dá voz a esta personagem: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus”. O evangelista está denunciando um grupo que se sente ameaçado pelo ensinamento de Jesus. São as lideranças judaicas, os escribas, mestres da lei, que veem seu autoritarismo, prestígio e poder de dominação sendo arruinados pela autoridade, pelo modo de viver e de falar do Senhor.  Serão eles os denunciados Jesus, por estarem ensinando preceitos humanos ao invés da Palavra de Deus. Anulando-as, inclusive, com as tradições e preceitos deles.

“Jesus o intimou: Cala-te e sai dele! Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu” (v.25-26). Jesus interrompe o homem com uma réplica que impossibilita o diálogo. De forma muito hábil, Marcos joga com a personagem do homem obsesso. Ele faz com que ele chame a Jesus de “o Santo de Deus”. Uma expressão que indicava o messias esperado, que interpretaria a Lei de Deus a faria ser observada. O Cristo ordena que se o homem se cale justamente por isso: a imagem que tem a alimenta é absolutamente equivocada, pois o messianismo de Jesus não é conforme a expectativa religiosa equivocada. Porque “o Santo de Deus” também viria com o poder, com a destruição, o domínio, conforme a crença dos chefes religiosos do povo. E o caminho do Senhor será outro: amor e serviço, através da misericórdia e da salvação à todos. No confronto entre o homem possuído pelo espírito impuro e o homem possuído pelo Espírito Santo, é este último que sai vencedor.

Porém, uma nota importante se faz necessária. A proibição feita por Jesus, no evangelho de Marcos, a todos que o confessam como Messias é também proposital, e cumpre função catequética. É o tema do segredo messiânico. É um tema pedagógico e teológico. Pedagógico porque tem a função de conduzir o leitor-discípulo para a realidade teológica de Jesus. Teológico, porque acena para revelação de sua identidade verdadeira, que só acontecerá em Mc 15, com a proclamação feita pelo oficial romano, confessando Jesus como Filho de Deus. A represália ao homem possuído pelo espírito impuro serve de admoestação para que o público que O rodeia, bem como o seu discípulo, não compreenda ou faça uma imagem falsa dele e de sua missão. Para poder confessá-lo como Santo de Deus, de fato, se fará necessário percorrer o caminho e o sentido de Sua vida até as últimas consequências.

Qual a finalidade deste relato? Mostrar que o anúncio da Boa Nova do Reino só pode ser acolhido pela pessoa mediante uma consciência livre. A ação de Jesus revela como Deus age e quem Ele é. O Senhor mostra a face de um Deus que é Pai amoroso, paciente, misericordioso, gerador de vida abundante; que toma a decisão de se colocar nas margens da vida e da história, assumindo o lado dos excluídos, dos despossuídos, marginalizados pelos sistemas de morte. Além da face original de Deus que O Cristo revela, Ele também mostra uma forma nova de se relacionar com Ele, baseada no amor fraterno, na gratuidade, no socorro e no acolhimento aos irmãos. Aquele que não acolhe esta face de Deus e a forma como Ele age através de Jesus, bloqueia a Sua ação, se torna refratário e resistente ao Evangelho. Não está livre para acolher a Boa Nova e o Reino. É semelhante a este homem possuído por uma consciência má; pela mentalidade equivocada; pela errônea religiosidade que pode, inclusive, se tornar uma amarra ou zona de conforto.

Diante deste evangelho, 1) temos, de fato, seguido a Jesus, ou apenas O acompanhado? 2) Com coragem e amparados pela Graça, conseguimos identificar a consciência má, a mentalidade equivocada em nós, simbolizada pelo espírito impuro? 3) Quais são as amarras ou zonas de conforto religiosas equivocadas nas quais nos permitimos enredar? Conseguimos identificá-las?

Oxalá estejamos no discipulado e no seguimento a Jesus, realizado com Ele a libertação das pessoas e desta história.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

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