O
quinto domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo primeiro do
Evangelho segundo Marcos. A perícope de hoje inicia-se a partir do v.29 e se
estende até o v.39. É o final de “um dia de
Missão” de Jesus, que havia começado no v.14, quando o evangelista fez-nos saber
que João, o Batista, havia sido preso. Nas margens do lago de Genesaré encontra
quatro homens e os convida segui-lo e tornarem-se pescadores de gente. Na cena seguinte,
a pesca começa, ao realizar a libertação da consciência de um homem na sinagoga
de Cafarnaum, enquanto ensinava a Palavra com autoridade.
O evangelista, na arte de narrar realiza a transição de cenário. Da sinagoga dos judeus, Jesus se dirige para a casa de Simão e André. A casa se torna, ao interno do evangelho de Marcos, o lugar do ensino e da realização da missão. Ela se tornará o ambiente da comunidade cristã. E isso é muito importante, pois esta não é a moradia de qualquer pessoa, mas de Simão. Ora, trata-se de uma imagem para a Igreja. Curioso é, que também dentro desta casa, exista uma pessoa impedida de viver plenamente, como na sinagoga, no relato anterior. Será na intimidade das casas que ele realizará os gestos de poder, com discrição, sem chamar a atenção. Portanto, para além de uma crônica dos fatos, é necessário que o leitor-ouvinte do evangelho, o discípulo, encare o texto como catequese e absorva os elementos simbólicos que apresenta, a fim de captar e entender a mensagem de salvação que brota da ação de Jesus.
Marcos elabora muito bem a cena, com certeza a partir da tradição que recebeu. Na casa, Jesus é informado que a sogra de Simão se encontrava enferma: febril e deitada. Realiza, então, mais um gesto de poder: o reerguimento daquela mulher. É importante que nos detenhamos no termo utilizado pelos autores do Novo Testamento: “gestos de poder” (gr. δυναμις / dynameis). Ele se refere às ações realizadas por Jesus, as quais traduzimos equivocadamente por milagres. Estes gestos tem a função de revelar e confirmar que Ele é o autorizado – tem autoridade, a exousia – para pregar o Reino de Deus.
Já se sabe o significado simbólico da casa. É a comunidade dos discípulos. Da mesma forma, a mulher destinatária da ação de Jesus, bem como a enfermidade dela são elementos carregados de força simbólica. A mulher, por um lado, representa o povo de Israel no A.T. Cujo o esposo é Deus. Na perspectiva do N.T, esta mulher passa a identificar o novo Israel, os discípulos do Senhor, que formam a comunidade do Reino. Então, esta passagem tem a intenção de chamar a atenção do discípulo e da comunidade. Há uma provocação que Marcos deseja fazer ao leitor-ouvinte de seu evangelho. A mulher é uma metáfora para o discípulo que, mesmo estando na casa-comunidade, se encontra impossibilitado, bloqueado, resistente e refratário ao projeto de Deus. A condição da mulher – deitada e febril – ilustram esta condição. É, portanto, uma metáfora para o discípulo que tem dificuldades de assimilar e aderir a Jesus e a sua forma de vida.
Antes de refletir sobre o significado da febre, se faz necessário compreender o gesto de Jesus. Subitamente, os discípulos falam da mulher. Isso é importante, pois eles dão a conhecer ao Senhor que existe ali uma situação que merece a atenção dele. Eles compreenderam uma novidade no ensino do mestre a partir do ocorrido na sinagoga: o bem do ser humano deve ser colocado acima de tudo. Deve vir antes mesmo da observância da Lei divina. Interessante, a centralidade na sinagoga recaia sobre a observância e no estudo da Lei. Na práxis de Jesus e na vida da comunidade, não será mais um preceito a ocupar o centro, mas a vida das pessoas. O centro daquela casa não era a Lei, mas uma pessoa a ser recuperada! Recorde-se que o preceito de guardar o sábado era o mais importante, sendo que quem o descumprisse poderia ser réu de morte. Jesus poderia muito bem ter dito, “esperemos passar o sábado”, mas não foi essa a sua atitude.
Marcos ritma a ação central de Jesus a partir de três verbos de movimento: aproximou-se, tomou-a pela mão e levantou-a (v.31). O evangelista quer recordar à sua comunidade o Sl 73,23, no qual o salmista louva a Deus por tê-lo tomado pela mão direita e introduzido em Sua Glória. Ser tomado e conduzido pela mão significa ser salvo por Deus; aponta para a realidade da ação e da presença de Deus. O gesto de Jesus chama a atenção, porque ele era desnecessário, e, ao mesmo tempo, proibido, devido ao repouso sabático e conforme a lei de pureza ritual. Ao tocá-la, sendo a pessoa em questão uma mulher, e, devido à enfermidade, Jesus, segundo a Lei, torna-se impuro. Mas a mensagem que Marcos quer transmitir é a de que, mesmo correndo tal risco, assumindo a impureza da mulher, Jesus comunica a ela a Sua força geradora e restauradora de vida.
O verbo “levantar” (gr. ἤγειρεν / ehgheiren) é muito significativo. O gesto de Jesus é descrito pelo evangelista com mesmo verbo utilizado na narrativa da ressurreição, para indicar a condição ressuscitada do Senhor. Em simples palavras: a simplicidade deste gesto, realizado na intimidade familiar, antecipa a vitória do Senhor sobre a Morte.
Qual é o significado da febre? É a compreensão equivocada acerca de Deus e de Jesus. A imagem errada que faz de si, do discipulado e da missão. Ainda no v.31, o evangelista narra que após a ação de Jesus, imediatamente a febre desapareceu e ela começo a servi-los. A febre que a mantinha deitada era a concepção de que o discipulado e o seguimento a Jesus consiste em ser servido. Ora, a enfermidade a colocava numa condição de cuidados, atenções excessivas, ser servida em suas necessidades. O encontrar-se deitada acena para o bloqueio, a resistência, e a paralisia diante da novidade que o projeto Senhor apresenta. Não é atoa que o autor utiliza o verbo “diakoneo (gr. διακονέω)”, que significa a atitude livre e amorosa de servir. O catequista bíblico pretende ensinar através deste gesto de Jesus que, o discípulo que permitiu ser tomado pelas mão e levantado por Jesus – ser ressuscitado por Ele – e, portanto, acolheu sua mensagem, só pode ter uma única atitude: servir a todos, e nunca servir-se ou ser servido pelos outros. Antes, romper com ideia de ser servido.
Dos vv.32-34, o evangelista faz um resumo da ação de Jesus fora da casa. Para mostrar que, aquilo que aconteceu na intimidade da casa, deve se tornar programa de vida para Ele e Seu discípulo fora dela. Esta ação do Senhor deve se realizar sempre em saída. Fora da casa. Ou melhor, a casa deve estar em condição de saída. O que se vive e experimenta ali dentro, deve ser realizado fora dela.
Os gestos de poder operados por Jesus não são espetáculos públicos, mas atitudes de fraternidade e solidariedade, que permitem perceber de que lado Deus atua e se coloca na estrutura do mundo. Ao lado dos marginalizados. É no interior de uma casa, e ao redor dela, que Jesus realiza seus gestos. Não é no meio do barulho, ou nos locais de evidência. Ele não era um pop-star. Não era midiático. Também não era sensacionalista. Tampouco sofria da síndrome do Pavão, a exibir-se para chamar a atenção para si. Ele jamais se autorreferenciava. Marcos, enquanto catequista de uma comunidade, preocupa-se com que seus leitores-discípulos não concebam uma falsa imagem de Jesus: um curandeiro, um milagreiro (taumaturgo), como tantos de sua época, para que não tirem conclusões precipitadas nem se confundam sobre sua identidade antes da manifestação definitiva: a morte e a ressurreição. Por isso, os gestos de poder que ele realiza não devem ser absolutizados, mas colocados em relação ao Reino e ao Deus que chama de Pai. Dai, a ordem de fazer calar os espíritos impuros, retornando o tema do segredo messiânico, o qual só será revelado na Cruz.
O v.35 traz o nascimento de um novo dia na vida de Jesus e dos discípulos. Informa que, ainda de madrugada, o Senhor se colocou em oração, num lugar deserto. Depois de um dia intenso de atividades, parou para se abastecer; para entrar na intimidade com o Pai, no intuito de compreender-se a si próprio e a sua missão. É um modo que o evangelista também tem de mostrar que, enquanto homem, Jesus também sofria a tentação de colocar sua missão de anunciar o Reino no caminho do prestígio, da glória humana, do holofote; na lógica do poder (ou do super-poder). É pela oração – na intimidade com o Pai – que ele reorienta constantemente a missão da qual foi por Ele encarregado. E retira dali a força para rejeitar o caminho contrário. É no silêncio da oração, na noite do confronto consigo, que Jesus reorienta a sua vida e missão para o querer de Deus.
Simão o interrompe. Diz que O estavam procurando. Precisamente este discípulo personifica a tentação que Jesus sofre. Pedro não compreendeu também, ainda, o sentido da missão de Jesus. Pensa que o exibicionismo, o poder e o sucesso, que podem revelar uma mentalidade de poder, de domínio, de opressão são compatíveis com Jesus e seu evangelho. Este discípulo está febril também, só que não se dá conta. Mas o Cristo é consciente de sua vida e missão. Por isso corrige imediatamente o discípulo, dizendo que “deve ir às aldeias vizinhas pregar”, pois foi para isso que veio. Sua missão não consiste em ficar ali satisfazendo as expectativas. Antes, seguimento-discipulado, missão e, também, cruz. Uma experiência pessoal com Ele, da qual brota a disponibilidade para o seguimento e a comunhão de vida com a vida, história e opções Dele.
A partir do encontro com Jesus é que se pode ficar livre da febre que paralisa e prostra. 1) Qual a febre que ainda me impede de fazer uma experiência genuína com o Senhor? 2) Ao interno do cristianismo e das comunidades ditas cristãs que febres existem nelas e impossibilitam as pessoas de viverem um encontro verdadeiro e profundo com o Senhor? 3) Nossas comunidades tem sido - a exemplo dos quatro primeiros discípulos – continuadora do gesto gerador de vida do Cristo?
Sabemos dar nomes a estas febres?
Sem pretensão de viciar a leitura e a resposta às perguntas anteriores, gostaria de, criticamente, provocá-los, nomeando algumas, dentre as inúmeras febres. Por exemplo, a febre do poder, do domínio; a febre do ser visto, da fama, do sucesso, da autorreferência na vida de fé e na missão evangelizadora e eclesial. A febre do fechamento e do esimesmamento, que não edifica comunidade, mas que promove divisão, construindo guetos e feudos. A febre do tradicionalismo legalista, que paralisa a vida das pessoas com moralismos falsos, fazendo da vida um fardo pesado de se carregar. A febre do saudosismo vazio e morto, que não consegue ressignificar o presente e mirar para o horizonte da novidade que o Evangelho gera e promove. A febre do milagre, do sensacionalismo e do extraordinário, que aliena na mesma medida que as anteriores. A febre do negacionismo diante dos sinais que os tempos vão dando. A febre da indiferença ao Evangelho e do descompromisso com a vida comunitária e eclesial. A febre da marginalização, da exclusão, do descarte.
Há quem goste de viver doente, como que um hipocondríaco em matéria de fé; há, como no tempo de Jesus, aqueles que gostam de viver com febre e deitados. Agora, a escolha é de cada um: viver das febres ou deixar Jesus comunicar e gerar vida. Com Ele somos chamados a também tomar pela mão e comunicar vida aos que se encontram deitados em estado febril.
Pe.
João Paulo Góes Sillio.
Santuário
São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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