O tempo da Quaresma, momento de Graça, conversão, reconciliação, que visa preparar o cristão-católico para o ápice da vida de fé, a pascoa do Senhor, inicia-se nesta quarta-feira de cinzas, com um texto evangélico muito provocador e bastante profundo. Ele é sempre tomado do capítulo sexto do Evangelho segundo Mateus, inserido no Sermão da Montanha, o discurso inaugural de Jesus no primeiro evangelho (Mt 5,1 – 7).
O capítulo seis começa com uma exortação de Jesus aos discípulos, “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serem vistos por eles (v.1)”. Jesus chama a atenção dos discípulos, dentro da catequese de Mateus, para um tema muito importante para a tradição bíblica: a justiça de Deus (Justiça do Reino). Ela deve ser superior à “justiça dos fariseus”.
A justiça na bíblia é a vontade soberana de Deus. Dito de outra maneira: é o senhorio (vontade) de YHWH, acontecendo na história e na vida do ser humano, que, ao se tornar discípulo do Reino, tende a ser a expressão histórica do agir divino. Assim, a Justiça do Reino é uma forma de viver – uma ética de vida. Jesus está chamando a atenção do discípulo para o seguinte: aquele que adere à sua Palavra, ao seu modo de viver, não pode mais ser como os mestres da Lei e fariseus. Isto é, devem romper com a moral deles.
Mateus, recuperando o ensinamento de Jesus, quer ensinar que o agir do discípulo deve ser discreto, como o sal, que não é visto, mas que se sabe presente porque se pode senti-lo. Ou seja: a religiosidade do discípulo do Reino não pode ser exibicionista, e nem a religião deve se sujeitar a isso. Uma certa ala do farisaísmo daquele tempo era muito exibicionista. Era uma piedade muito afetada, de modo a se colocarem sempre em evidência e serem considerados perfeitos e santos. O Senhor não quer que essa mentalidade e estas práticas estejam presentes na vida dos discípulos e das comunidades. A perfeição e a santidade a serem esperadas do fiel-discípulo deverão ser vividas em outra ordem.
No v.2-4, Jesus reinterpreta a prática da esmola: “Quando deres esmola não façais como os hipócritas... em público para serem vistos e elogiados”. As obras de caridade, a Lei e o culto eram consideradas as três colunas de sustentação do mundo judaico. Daí a importância da esmola (Tb 4,7-11.16-17; 12,9). O discípulo, porém, é exortado a não fazer como os hipócritas que dão esmola pelas ruas e nas sinagogas, onde se reúne muita gente, de modo a chamar a atenção sobre si e granjear elogios. Esta já seria a recompensa deles. Para dar ênfase à atitude equivocada que deve ser corrigida Jesus é duro na orientação, ao utilizar o adjetivo “Hipócrita”. Quem eram estes? Em primeiro lugar, os atores dos teatros da antiguidade clássica, que, ao atuarem na interpretação de um papel vestiam a máscara, chamada hipocretes. A vida de fé, a religião e sua expressão mais profunda, isto é, a religiosidade não podem ser palanques para uma peça de teatro, tampouco ser elas mesmas uma encenação. No horizonte do ensinamento do Senhor, os hipócritas são os líderes religiosos de seu tempo, e no panorama da vida comunitária, que é justamente onde o texto incide, são os fieis que ainda possuem uma visão equivocada da fé vivida.
“De modo que a mão esquerda não saiba o que faz a direita” (v.3). Na antropologia bíblica, a mão responsável por fazer o bem é a direita. A mão esquerda, faz o mal. A esmola, entendida como caridade precisa ser discreta. O que a caracteriza como um gesto autêntico de piedade, porque pautada unicamente pela gratuidade. Por isso, ela é testemunhada apenas pelo Pai, que recompensará o discípulo da maneira adequada. Um aspecto muito importante da caridade é o fato dela projetar a pessoa para a relação com o próximo necessitado. Este é o peso que ela deve assumir na vida do cristão, a partir da ressignificação que Jesus faz desta prática. Ele se torna o modelo de vida para o ser humano que abraçou a Justiça do Reino. Porque toda a existência e missão do Senhor são uma constante saída e doação de si para o outro.
Os v.5-6 tratam da oração, que deve ser do mesmo modo. Na intimidade e no silêncio. O discípulo do Reino não deve rezar de maneira teatral, como os hipócritas. Ela não pode ser uma máscara, que oculta as incoerências pessoais. A oração do discípulo deve ser feita com simplicidade e discrição, no oculto do próprio quarto (2 Rs 4,33), de modo a ser visto apenas pelo Pai. O próprio Jesus rezava solitário (Mt 14,23; Mc 1,35; 6,46). Nesse sentido, Ele se torna o modelo para o ser humano orante, relacionado e referenciado à Deus. Com isto, não se está proibindo a oração em comum (Mt 18,20), prática muito antiga das comunidades cristãs. Ele mesmo participava delas na sinagoga (Mc 1,21; Lc 4,16). O Cristo questiona, sim, a motivação e a atitude equivocadas por parte de quem reza. A oração, assim sendo, coloca o discípulo na relação com Deus.
Já os v.16-18, tratam do tema do Jejum. O Jejum é uma prática de controle contra as desordens interiores. É a possibilidade da integração relacional consigo mesmo. A maneira hipócrita de jejuar consiste em desfigurar-se, empalidecendo a fisionomia, assumindo uma aparência desarrumada, de modo a ser percebido e, por isso, ser louvado pelos demais. Se assim for, então este jejum não servirá, porque visa mostrar o exterior (a cara de coitadinho), e não corrigir o interior.
Para Jesus, esmola, oração e jejum estão no mesmo nível e só têm sentido se estiverem unidas, pois são inseparáveis e inter-relacionáveis. É digno de nota que, a forma como Mateus estrutura o texto, nos ajuda a perceber essa dinâmica interna entre elas. Quando os autores colocam em segundo lugar alguma coisa, dito, pessoa, seja na estrutura da frase, ou na própria obra, significa que este segundo termo tem importância. No caso, a prática da oração vem elencada por Jesus em segundo lugar, entre a caridade e o jejum.
A oração, na vida cristã, é muito mais do que decorar fórmulas prontas (e mágicas, dependendo da concepção equivocada). Ela é a oportunidade da relação com o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. É a orientação da vida para Ele, centro e meta da existência. Estando no centro da estrutura do texto, enquanto relação com Deus projeta a pessoa para relação com outro, ou seja, impulsiona para a caridade. E, por fim, conduz o ser humano para a relação e ao equilíbrio com sigo próprio. Nesse sentido, a oração deve ser verificada na vida concreta, a partir da caridade em favor do próximo, e o jejum deve transformar-se em oferta aos mais necessitados. Quando as necessidades do outro são ignoradas, a oração e o jejum se tornam teatro, encenação, ineficazes e insignificantes.
O Papa Francisco disse certa vez que a Quaresma, a qual iniciamos com este belíssimo evangelho, é uma constante viagem de regresso para o Pai. Isto é, a reorientação da vida para Deus. Estes momentos de recentramento são revitalizadores. A nossa vida não é só um conjunto de inevitabilidades: ela tem de ser uma opção fundamental, isto é, tem de ser algo decidido e escolhido, que eu quero; um caminho que escolho, em diálogo com o Espírito Santo. A minha vida, tem de ter fundamento, para não ser uma deriva, um fragmento flutuante no oceano convulso. Precisamos de um centro. E, para isso, precisamos de momentos de recentramento para escutarmos a voz interior, para nos escutarmos mais profundamente, para perguntarmos: “O que é que eu vivo? O que me enlaça? O que procuro? O que sou?”. Concluo ainda citando o Cardeal Tolentino Mendonça: “A Quaresma não é um momento zen na Igreja; não são quarenta dias para tentarmos fazer rituais mais ou menos arcaicos. A Quaresma é um tempo revitalização, um tempo para nos colocarmos as perguntas-chaves que vão favorecer o renascimento do que somos. E Deus, nosso Pai, sabe como cada um de nós precisa de renascer. Por isso, este é o tempo de voltar a si.
Pe.
João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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