A
liturgia deste II Domingo da Quaresma apresenta o texto marcano da transfiguração
do Senhor, em 9,2-10. O relato é repleto de elementos simbólicos que ajudam a
recolher a mensagem essencial para este tempo quaresmal: permitir-se transfigurar.
Transfigurar a mentalidade equivocada acerca de Deus e do caminho de Jesus;
transfigurar para a condição de filhos de Deus e discípulos do Reino, rompendo
com tudo aquilo que pode gerar a desfiguração e a ruptura com o querer do Pai. Isso
posto, se pode mergulhar no relato bíblico.
“Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha. E transfigurou-se diante deles” (v.2). No texto original, Marcos inicia a cena com um indicativo temporal, omitido pelo texto litúrgico, o que poderia dar ainda mais ênfase a uma das mensagens que o texto deseja transmitir: “seis dias depois”. Com essa determinação temporal, o evangelista pretende aludir ao sexto dia da criação, no qual Deus criou o homem. A informação é profundamente catequética: ensinar para sua comunidade a quê qualidade de vida o ser humano se encontra chamado a viver: uma existência que não sucumbe com a morte, mas que através dela iniciará uma nova existência.
O evangelista insiste no caráter privado do ensinamento, destinado somente aos três discípulos. Estar com Jesus não significa possuir algum privilégio em detrimento daqueles que não o acompanharam na ocasião. Ao contrário, os três seriam, na verdade, os mais necessitados dos ensinamentos do Mestre, e, portando de correção e de uma verdadeira conversão. A cada um deles, por exemplo, o Senhor adiciona um sobrenome: a Simão, o complementa com Pedro – cabeça e coração endurecidos, a ponto de obstaculizar o projeto de Deus; a Tiago e João, apelida-os de Boanerghes (lit. “Filhos do trovão), identificando neles a personalidade e o temperamento explosivo.
Marcos situa a cena. Não por interesse geográfico, mas por necessidade teológica. Na Bíblia a montanha é o lugar da manifestação de Deus e de sua vontade; o lugar do encontro com ele: Abraão no monte Moriá (Gn 22), Moisés no monte Sinai ou Horeb (Ex 19; Dt 5,10-12), Elias no Carmelo (1Rs 18,20-40) e no Horeb (1Rs 19), o Templo no monte Sião. É, portanto, o lugar da condição divina. Ao subir a montanha com Jesus, os discípulos são convidados a fazer uma experiência nova com Deus.
Ainda no v.2, o evangelista informa que Jesus foi transfigurado diante deles. O verbo grego para esta ação é metamorphôomai (gr. μεταμορφόομαι). Ele trata de revelar aos discípulos a sua condição glorificada, que passará pela morte. Esta, não destrói a condição humana, mas a torna permeada da potência da vida divina. Lido fora do contexto imediato, o texto pode perder sua força de sentido. Por isso, se faz necessário recordar que, na cena anterior, o Senhor, pela primeira vez, anunciou o seu caminho de paixão, morte e ressurreição, imediatamente após a confissão acerca de sua identidade messiânica: o Cristo de Deus (Mc 8,29). Para corrigir a mentalidade dos discípulos que pode estar equivocada, Ele lhes fala a respeito do caminho que abraçará, isto é, a sua forma de ser o Ungido de YHWH: “era necessário que o Filho do Homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos sacerdotes e escribas, fosse morto e que, depois de três dias, ressuscitasse” (Mc 8,31). Mas os discípulos, representados por Pedro, não entendem e oferecem forte resistência. Para eliminar esta atitude e corrigi-los, Ele se decide, então, por leva-los a esta experiência com o Pai, na alta montanha para revelar algo.
Marcos, ao relatar a experiência faz questão de mostrar que é o Pai que realiza a ação de transfigurar a Jesus. Ele redige a frase, utilizando o verbo na voz passiva. Literalmente, “Foi transfigurado” (gr. μετεμορφώθη/metamorphote). É o que se convenciona chamar de Passivo divino (Passivum Divinum): a voz passiva, na qual se flexiona o verbo indica que a ação é realizada por Deus. Assim, é Ele que revela a identidade e a condição verdadeira do Filho Jesus.
As vestes brancas e brilhantes, são, no gênero literário da apocalíptica, os símbolos da intervenção de Deus na história (Dn 2,34.45; Lc 24,44). Marcos se serve destes elementos do Antigo Testamento (luminosidade, nuvem e vestes brancas) para ensinar, através da cena da transfiguração, que a ressurreição de Jesus será a definitiva intervenção de Deus na história (Mc 16,12), e, portanto, da vida divina: as vestes brancas e resplandecentes são um sinal do mundo divino, um sinal de alegria e vitória. Um sinal de vida indestrutível. Nesse sentido, os discípulos são chamados a transfigurar a mentalidade da rejeição, para a aceitação do projeto de Deus; do medo da morte e do caminho do mestre, para a adesão ao sentido de vida Dele. A informação contida no v.3, de que nenhuma lavadeira sobre a terra seria capaz de alvejar as vestes serve como chamada de atenção para o fato de que esta condição transfigurada/ressuscitada não é fruto de um esforço humano, mas é obra de Deus no Filho, e do Filho nos discípulos.
No v.4, Marcos narra que, ao lado de Jesus aparecem Moisés e Elias a conversar com Ele. Os dois personagens do Antigo Testamento aludem à Lei (Moisés) e à Profecia (Elias). É interessante como a cena é construída: ambas personagens importantes do AT aparecem uma de cada lado de Jesus, ficando Ele ao centro da cena. Ou seja, numa visão panorâmica, Moisés viria primeiro, em segundo Jesus, e, por fim, Elias. Isso é muito importante, pois, na tradição oriental, aquele que vem em segundo lugar, e, ocupa, nesse sentido o centro, merece todo o destaque e importância. O autor tem a intenção de mostrar para a sua comunidade que as duas personagens do AT convergem para Jesus. Ou seja, que Ele realiza todas as expectativas suscitadas pelas Escrituras (Lei e Profecia). Mas, tem, ainda, a finalidade de mostrar que Ele é o enviado definitivo e esperado para os últimos tempos.
Todavia, os discípulos não entendem, e, equivocam-se na leitura e interpretação da cena. Simão, como porta-voz deles toma a palavra, e propõe levantar ali três tendas. Marcos faz questão de mostrar o erro da personagem. Pedro subverte a ordem dos três: menciona Jesus, em seguida Moisés, colocando-o no centro (lugar de importância), e Elias. Ao tirar o Senhor do centro, ele e os outros dois discípulos preferem o caminho de Moisés, que é o da lei, o qual representa poder, dominação, ao mesmo tempo que aderem ao caminho encolerizado da personalidade de Elias. Estão presos às personagens do passado, e não se atém ao presente: o tempo pleno, no qual Deus faz ressoar sua Boa Notícia através de seu Cristo. Recusam, assim, a Jesus como o enviado de Deus, bem como o seu projeto e caminho. Não é por menos que o evangelista coloca na boca de Pedro o mesmo título com o qual Judas, o traidor, se dirigirá: “Rabi” (mestre). Para eles, o Senhor não passa de um simples mestre. A visão equivocada necessita também transfigurar.
Marcos deseja mostrar a tentação sofrida pelo discípulo: resistir e se opor ao projeto de Deus em Jesus. A dificuldade de aceitar o caminho proposto pelo Cristo. Querem um Messias que siga as próprias conveniências, as expectativas antigas; um guerreiro, um nacionalista (pronto para restaurar a antiga dinastia de Davi); alguém que venha com feitos extraordinários e com poder, inclusive para dominar e submeter. Este é o imaginário que permeia a cabeça de Pedro, e que embasa as suas convicções e a de seus companheiros. Eles ainda não conseguem se transfigurar. Ainda estão desfigurados, e, com isso, desfiguram a compreensão acerca do projeto de Jesus. Contudo, o discípulo é convidado a romper com a ideia de construir tendas.
Construir tendas pode transmitir a ideia de fixismo e imutabilidade. “Esta bom assim; esta ideia me agrada; este modo de pensar e de agir é melhor! Para quê mudar?” Isto é muito sério e grave, principalmente quando relacionado à Deus. Porque pode revelar a intenção e a tentação de coloca-Lo numa tenda; de protege-lo; de aprisiona-lo ou defini-lo a partir das próprias convicções. Fundindo os horizontes da narração (30 d.C) com o tempo da comunidade (70 d.C), o texto é atualizado para nós. A comunidade cristã para a qual Marcos escreve nos idos dos anos 65-70 sofre a perseguição do império, em Roma. Para a comunidade do evangelista, armar as tendas e fixar-se no lugar, poderia significar a alienação da vida, mediante uma fé descomprometida com a realidade; a mentalidade de reduzir a fé e a vida cristã a uma contemplação mística do encontro com Cristo. Contudo, o texto não para na comunidade de Marcos, mas se torna contemporâneo a nós. Por isso, o alerta acerca destas tentações destina-se aos discípulos e às comunidades de todos os tempos e lugares.
Então, de uma nuvem que descia sobre eles e os encobria, se escuta uma voz (v.7): “Este é o meu Filho amado”. A mesma voz que havia rasgado o céu na narrativa do Batismo. O filho amado, conforme tradição bíblica, indica “o herdeiro”, aquele que carrega a plenitude da identidade do seu pai. Ao intervir no devaneio de Pedro, declarando ser Jesus o Filho amado, Deus está querendo revelar que a sua totalidade e plenitude está Nele. O Senhor, em seu agir e ensinamento, traz com sigo a plenitude da presença do Pai. Em Suas palavras e em seus gestos o Pai se faz presente. Por isso, a ordem: “escutai-O!”. O imperativo “escutai-o”, significa acolher na vida a palavra do Cristo e seu caminho, ainda que seja marcado pela Cruz.
Somente mediante a escuta da palavra (da vida, pessoa e ensino do Mestre) e do seguimento, os discípulos podem transfigurar. Na medida em que vão descobrindo a novidade e identidade do Senhor, vão, então, reconhecendo-se também a partir de dentro, e poderão dizer-se, com sinceridade, enquanto discípulos do Reino, e se realmente se encontram no caminho do seguimento (também perpassado pela cruz), em vista de uma vida ressuscitada.
Jesus, ao final da narrativa dá uma ordem. Os discípulos não devem contar a ninguém a experiência vivida ali, até que o Filho do homem tenha ressuscitado dos mortos. Somente após a sua ressurreição é que se poderá falar Dele como Filho de Deus, porque será ela a iluminar o sentido de sua missão e existência. Do contrário, o discípulo ainda não estará em condições de falar nada acerca da experiência vivida ali. A ordem dada por Jesus pode ser compreendida da seguinte maneira: “não digam ou espalhem nada que seja contrário ou que possa distorcer o sentido da vida que escolhi viver; não digam nada que induzam as pessoas a caírem numa realidade ilusória da fé”. Por isso, importante é descer da montanha com Ele, e assumir a mesma fidelidade ao projeto do Pai. O lugar definitivo de Deus não é alta montanha, mas sim onde se encontra a humanidade.
A transfiguração plena do discípulo é um processo que vai sendo vivido a cada momento em que ele se dispõe a escutar (e seguir) o Filho amado, nosso irmão. A Sua vida foi uma intensa e fiel escuta da Palavra de seu Pai. Só mediante esta atitude Jesus pôde ser transfigurado pelo Pai. Porque decidiu-se firmemente a vive-la.
Como nos encontramos: em transfiguração ou em desfiguração? O que em nós precisa ser transfigurado? Temos exercitado a escuta da Palavra de Jesus? De quais tentações as nossas comunidades devem ser transfiguradas (comodismo, fixismos, tradicionalismos, descompromisso, alienação, uma fé mistificante e mificante desencarnada da realidade)?
A vida transfigurada só pode ser vivida quando assumido o caminho da escuta (conhecimento), do discipulado e do seguimento a Jesus. Assim poderá o discípulo responder sobre si. Só assim poderá deixar-se transfigurar para a imagem do Filho e de discípulo do Reino.
Pe.
João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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