O evangelho deste terceiro domingo da quaresma é retirado do Quarto Evangelho, Jo
2,13-25, o qual apresenta a famosa cena da purificação do templo de Jerusalém realizada
por Jesus. A liturgia, como sábia pedagoga, propõe esta narrativa em forma de
provocação dentro deste tempo quaresmal: convidar e instigar os fieis
discípulos e as comunidades a destruírem as formas equivocadas de se relacionar
com Deus, as noções e ideias deturpadas em relação a Ele, simbolizadas pelo
templo que o Senhor “purifica”, para acolhê-lo como novo e definitivo Santuário,
por meio do qual se poderá fazer uma
experiência nova com Deus. Para se compreender este texto, se faz necessário
situa-lo em seu contexto amplo e imediato.
Jo 2,13-25, se encontra na primeira parte do evangelho joanino, no nível do contexto amplo, no chamado livro dos sinais, os capítulos 1,28 – 12,51, através dos quais o autor sagrado trata de ensinar aos que estão dando os primeiros passos na fé, bem como aos já evangelizados a identidade de Jesus. O contexto imediato da narrativa é aquele após as núpcias de Caná, onde o Senhor havia revelado o vinho novo; a novidade do tempo messiânico que se inaugura com as núpcias entre Deus e a humanidade. No relato do primeiro sinal é revelada novidade da ação de Deus na história através de Jesus. Na narrativa que se segue, isto é, a purificação do templo, se reforça este ensinamento sob uma nova perspectiva. Portanto, o trecho evangélico de Jo 2,13-25 só pode ser compreendido a partir dos doze primeiros versículos anteriores, as bodas de Caná. Feitas estas contextualizações, já é possível mergulhar no mar do texto bíblico de hoje.
“No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados” (v.13). Jesus vai ao Templo para páscoa por três vezes no Quarto Evangelho. Esta é a primeira. Há um detalhe importante na informação que o evangelista transmite. Ele se refere à festa solene como “páscoa dos judeus”, e não “páscoa do seu povo, da qual participa”. O autor poderia muito bem redigir desta forma a informação. Mas este detalhe é para despertar a atenção do fiel discípulo para a seguinte mensagem: a páscoa do Senhor é profundamente distinta daquela. A dele consiste na doação da vida e da salvação ao homem, ao passo que a páscoa dos chefes do povo não realiza mais essa função. Ao contrário, é cumplice dos sistemas de morte que envolvem o povo simples.
A narrativa dá a entender – a quem não está familiarizado com a arquitetura do templo de Herodes – que as atitudes de Jesus que se desdobram, a seguir, teriam acontecido num único lugar. Todavia, não foi assim. E isso não precisa gerar pânico no leitor-ouvinte do evangelho, porque o autor sagrado não deseja transmitir uma crônica dos fatos, mas uma mensagem de salvação que toque a fé do discípulo. Mergulhemos numa breve descrição que historiadores antigos, e a prova arqueológica oferece acerca da arquitetura do templo. Para acessá-lo se fazia necessário passar por uma escadaria de dezessete metros de altura em dois lances de degraus, em L. Na base delas é que ficavam os vendedores de bois, pois não podiam entrar no templo. Ali, muito provavelmente, Jesus teve contato com estes vendedores e tomado aquela atitude. Depois de se passar pela porta régia, entrada principal para as dependências do espaço religioso, então se podia ter acesso ao pátio. Todos podiam entrar ali. Neste lugar, ficavam as mesas de câmbio, para a troca das moedas romanas que não podiam entrar no Santuário por possuírem a imagem do imperador Tibério gravada nelas. A Lei proibia quaisquer imagens que pudessem ser associadas à Deus ou à ídolos pagãos. Ora, ofertar uma moeda na qual se vinha cunhada a expressão “Divus Caesar (Cesar, o divino)” sob a figura não ficava nada bem. Por isso, o câmbio monetário. Provavelmente, ali tenha se desenrolado a outra parte da narrativa. Avançando na descrição, para se chegar no recinto do Santuário, precisava atravessar uma balaustrada. Mas, ainda existiam limites. Ao interno do pátio, somente os homens podiam entrar. O Santuário era divido em Santo, recinto sagrado em que só os sacerdotes podiam ficar, e “Santo dos Santos”, onde somente ao Sumo Sacerdote era lhe permitido entrar. Imagine: todo este caminho era percorrido para poder entrar no Templo.
O evangelista João utiliza dois termos para delimitar cada um dos espaços. Para templo, ele utiliza Iéros (gr. ἱερός), referindo a todo o complexo religioso. E Naós (gr. ναός), para santuário, o lugar mais sagrado. Descrevemos o caminho percorrido para entrar no Templo, no intuito de se fazer captar a seguinte mensagem: o templo de Jerusalém no tempo e na sociedade de Jesus, de lugar de encontro com Deus, havia se tornado inacessível; para poucos e, pior ainda, cumplice e promotor de desigualdade social e religiosa. Mais grave ainda: transmitia-se uma falsa imagem de Deus.
Na compreensão do judeu piedoso da época, a relação com Deus era embasada na troca. Recebia a benção e a prosperidade de Deus porque havia sido fiel ao preceito. Quem não procedesse assim, por sua vez, receberia a maldição. Quanto maior a benção recebida, maior o animal a ser oferecido em sacrifício. Gerando uma maneira equivocada de se relacionar com Ele.
Agora estamos prontos para olhar a cena na com os olhos de Jesus. Ao chegar neste lugar, Ele se depara com a subversão da fé de Israel, e com um ambiente repleto de desigualdade. Vê bois, ovelhas e pombas. Animais para o sacrifício. O gado gordo era destinado a gente rica; as pombas, eram a matérias do sacrifício dos pobres. Constata-se uma religiosidade promotora de desigualdade e segregação.
João concentra num único versículo as atitudes de Jesus contra este cenário e narra este episódio com um certo colorido. “Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas” (v.15). Neste versículo, o autor aponta um pormenor especial: o chicote de corda e os animais expulsos. Esta característica não se encontra nos evangelhos sinóticos. Muito provavelmente, o evangelista conhecia o relato de Marcos. Uma constatação importante: em Mc, Mt e Lc a ira de Jesus se desencadeia contra o comercio e não contra os animais dos sacrifícios. E aí está a diferença característica de João: o detalhe da expulsão dos animais para sacrifício, às vésperas da pascoa para, na verdade, mostrar e ensinar que os sacrifícios do templo ficam impossibilitados, abolidos e superados. Na intenção do evangelista, Jesus é a superação de todo o sistema religioso levítico-cultual antigo. Nele, têm fim todos os sacrifícios. Deus revela, através da vida do Filho, que nunca quis ou desejou sacrifícios. A obra do Cristo supera e acaba com todo sistema religioso e com o Templo. O autor sagrado pretende ensinar que o Senhor é o novo e definitivo Santuário através do qual homem poderá se relacionar com Deus, e de se revelar à humanidade.
No v.18, os judeus entram em cena: “Que sinal nos mostras para agir assim?” Evidentemente, a palavra Sinal, alude a um sinal de autoridade, como Moisés (sinais no Egito) e os profetas. Estes eram as credenciais que os autorizavam enquanto enviados por Deus. Todavia, a credencial de Jesus é bem dura. Na verdade, uma resposta: "Destruí, este Templo, e em três dias o levantarei” (v.19). Interessante, Ele não mostra aquilo que já fez, mas aponta para o que vai fazer.
Outra nota importante, o Jesus joanino não diz que destruirá todo o templo (com a esplanada e adjacências), mas, literalmente, “este santuário” (gr. ναός / naós). Mas o diz com o verbo no imperativo. Trata-se, pois, de uma ordem que o Senhor dá aos chefes religiosos do povo: destruí este santuário que não tem mais seu sentido; eliminai aquilo que é causa de afastamento entre Deus e as pessoas; acabai com os vossos ídolos de poder, de domínio, de alienação; destruir o templo das convicções e ideias equivocadas acerca de Deus, e em relação ao Seu agir. Voltemos ao dito de Jesus, precisamente ao verbo “erguer” (gr. ἐγείρω / egheíro), o qual é aplicado por João ao corpo humano do Mestre. A expressão “eu o reerguerei em três dias” significaria a ressurreição de Jesus no terceiro dia.
Ora, Jesus não veio para reformar ou purificar. Mas para eliminar as situações injustas e os sistemas de morte, os quais não revelavam mais a presença e amor de Deus. Na perspectiva de João, o Senhor propõe um novo modo de relacionamento: assimilar o Seu amor livre e gratuito e o serviço às pessoas. O amor e o serviço são geradores da vida de Deus. O Cristo mostra um Deus completamente diferente, que não pede, mas doa; um Pai que não suga ou absorve a força de vida de seus filhos, mas que comunica a eles o Seu próprio dinamismo vital.
João quer ensinar, portanto, que esta é a novidade comunicada por Jesus: o Deus que ele chama de Pai não está distante nos céus, muito menos preso ao interno do Templo, mas presente em Sua pessoa, existência, vida e obra. O novo templo de Deus é Jesus. Mais ainda, se o novo Templo de Deus é a vida de seu Filho na história, a humanidade toda, através de sua carne, se torna o a morada de Deus.
O v.22 é importante para o desfecho deste episódio: “Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra dele”. Um bom judeu acredita piamente na Escritura e procura nela tudo aquilo que é valioso para crer. João coloca, aqui, em pé de igualdade as Escrituras judaicas e as palavras de Jesus. A Palavra e a vida vivida de Jesus fazem descobrir o sentido profundo das Escrituras de Israel. A sua compreensão é, portanto, exercício pós-pascal, mediante a luz do evento da Ressurreição e da força do Espírito. Entretanto, até que o Senhor não tenha realizado sua obra, o discípulo não terá o parâmetro para compreender a Palavra de Deus. Somente quando ele abre o coração e os ouvidos para a palavra de Jesus (sua vida, missão e obra, a assimila) e à Palavra de Deus, poderá destruir os templos equivocados que outrora construiu.
O Quarto Evangelho é o evangelho ruminado. Deve ser meditado e relido pela comunidade dos Leitores. O Discípulo-leitor, diante da novidade escatológica apresentada por Jesus, deverá decidir-se: optar pelo sistema levítico-cultual Judaico ou aderir à Jesus e à novidade messiânica-escatológica Nele presentes.
Mas o texto deve despertar algumas provocações. Quais são os templos ou ídolos que existem e persistem em nós, que precisam ser destruídos por Jesus, a fim de experimentarmos a força renovadora de sua Páscoa? Como se encontra o templo que somos nós, a partir da graça batismal? Se Jesus aparecesse hoje às portas do santuário da nossa vida, como ele reagiria? E em nossas comunidades? Como Ele se comportaria diante delas, com o chicote e a ira por terem subvertido Seu projeto de vida e de amor, ou as tomaria pela mão e as tornaria sempre mais sua cooperadora na missão?
Peçamos a graça de o Senhor purificar, neste tempo quaresmal, o templo da nossa vida, destruindo e eliminando tudo o que é nocivo e equivocado em nós em relação ao Pai, a Ele, e à Seu projeto, para que sejamos sempre verdadeiros santuários, lugares de sua morada, a fim de revelarmos o Seu agir e seu amor.
Pe.
João Paulo Góes Sillio.
Paróquia
São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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