quinta-feira, 28 de março de 2024

QUINTA-FEIRA SANTA – MISSA DA CEIA DO SENHOR: Jo 13,1-15:

 


O Memorial da páscoa do Senhor começa a ser celebrado a partir da Quinta-feira santa da Ceia do Senhor. O caráter memorial desta noite, que perpassa os outros dois dias do Sagrado Tríduo Pascal reside no fato de se fazer memória, isto é, atualizar o evento fundador da fé cristã: a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Somos convidados, através desta solene e grande celebração a sermos contemporâneos ao acontecido com o Senhor. Ou seja, a partir da dinâmica memorial, com nossos pés teológicos (da fé), a ir para a ceia, para o calvário e para o sepulcro vazio, e, ao mesmo tempo eles virem até cada um de nós. Por isso, esta noite “é diferente das outras noites”.

A dinâmica memorial é apresentada pela primeira e pela segunda leitura da liturgia desta noite santa. Em Ex 12,1-8.11-14, o autor sagrado narra a pascoa-passagem do Senhor sobre a terra do Egito para libertar seu povo, este é convidado, através do sinal do cordeiro imolado, a celebrar esta passagem de YHWH como Memorial em honra à Ele, e, portanto, como instituição perpetua (v.14). Assim, todo os israelitas, ao celebrarem a páscoa, de geração em geração, deverão ver-se a si mesmos sendo libertados do Egito, passando pelas águas, a exemplo dos primeiros pais na fé. Na segunda leitura, através da memória que o Apóstolo Paulo transmite para a sua comunidade de Corinto (1Cor 11,23-26), a mesma dinâmica aparece na ordem de iteração “fazei isto em memória de mim”, ligada ao relato da Ceia do Senhor. Ou seja, todas as vezes que a comunidade de Jesus, isto é, a Igreja se reunir para celebrar a Eucaristia, que contém e conserva o sentido existencial de Sua vida, ela deverá se ver naquela Ceia, ouvindo as Suas palavras e assimilando a exemplaridade de sua existência. Precisamente esta Ceia ocupará a nossa reflexão, assumindo o texto de Jo 13,1-15.

A ceia, no Quarto Evangelho, não é de caráter pascal. É uma ceia comida às vésperas. A cronologia do evangelho joanino não bate com a de Mt, Mc e Lc. Há um motivo teológico que toca nas intenções do evangelista: ao narrar a ceia nas vésperas da páscoa, pretende lançar a narrativa da morte de Jesus para o dia de páscoa, justamente para o exato momento em que se imolavam os cordeiros pascais, no templo. Assim, a ceia joanina é um jantar de despedida. O que não enfraquece o sentido e a importância desta, pois será nela que o Senhor começará a entregar seu Testamento de amor.

Outra consideração importante a ser feita é a contextualização da narrativa da Ceia joanina. O leitor-discípulo encontra-se no capítulo treze. Ele se encontra na segunda parte do evangelho de João, o chamado livro da glória. Neste bloco (Jo 12 – 21), aquele que acompanhou a Jesus durante os sinais que realizou, e se abriu ao dom de Deus que se faz presente através de Sua obra, poderá contemplar a hora da glória (glorificação) que foi preparada pelos mesmos sinais. A ceia encontra-se dentro de um estilo literário chamado “discurso de despedida” ou “testamento”.  De 12 – 16, o Senhor entrega o seu bem mais precioso aos discípulos: sua vida e o mandamento do Amor. Esta entrega começa a ser feita através do gesto emblemático e questionador que meditaremos agora.

O evangelista situa a cronologia: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). João não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas diferenciar para mostrar a superação dela: a páscoa celebrada pelo Senhor já não é mais a mesma do templo. A sua não exige ofertas e sacrifícios, pois será ele mesmo a se oferecer e doar-se. Na Páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto que na de Jesus com sua comunidade, se celebra o triunfo da vida na forma do serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor; nessa, não há triunfo da morte sobre a vítima/oferta do sacrifício, há doação de vida por amor. Ele inaugura uma páscoa subversiva; é essa que a comunidade cristã deve celebrar.

O evangelista coloca o seu leitor diante de personagens que servirão de espelhos para a comunidade. Ele informa: “Estavam tomando a ceia. O diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus” (v.2).  Uma vez mais aparece o traidor. O Diabo (o divisor; o opositor)” o havia seduzido para que entregasse Jesus (cf. Jo 13,2). João realiza a técnica literária do contraste, ao focalizar a consciência diabólica (cindida / dividida) do discípulo traidor e a ação realizada pelo Senhor.

Judas pensa que tem o destino da vida do mestre nas mãos. Por outro lado, com habilidade, João faz questão de mostrar Jesus com a consciência livre e orientada para o projeto de Deus. Na perspectiva do Quarto Evangelho, o Senhor é um homem livre. Consciente, acima de tudo. Não é uma vítima das circunstâncias. Por isso, a atitude que chamará a atenção de todos é narrada com solenidade: “Jesus, sabendo que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos e que de Deus tinha saído e para Deus voltava, levantou-se da mesa (...)” (v.3-4). Ninguém tem poder ou autoridade sobre a vida de Jesus. Ele mesmo a doa! Realiza-se, assim, a confirmação do dito de Jo 10,11-30: “Ninguém tira a minha vida. Eu a dou por mim mesmo. Tenho autoridade para entregá-la e também para tomá-la de volta, pois foi isso que meu Pai ordenou”.

Solenemente, os gestos de Jesus são narrados pelo evangelista: “tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido” (v.4-5). Após levantar-se, saindo da condição de homem livre (pois se assentavam à mesa as pessoas livres), e deixar a condição de mestre, o evangelista oferece uma pérola que só pode ser compreendida a partir do original grego. A tradução litúrgica diz que o Senhor tirou o manto. Mas não é correto. Pois o texto original diz que tirou a túnica. Ao traduzir a palavra manto, Jerônimo pode ter se confundido com a palavra túnica. Manto, no grego, é “imátio” (tón imatíon), e túnica, “imátia” (tha imátia). Mas feita esta constatação, o leitor discípulo precisa confrontar-se com a forma na qual Jesus está: ao retirar a túnica (imátia), ele ficou com a roupa mais inapropriada, surrada, sem acabamento que se usava por baixo daquelas outras, que recebia o nome de perisôma. Portanto, vestido como um escravo, ao cingir-se na cintura com a toalha. Mas era também a veste dos noivos, na ocasião das núpcias.

O gesto que Jesus realiza é paradoxal: “e começou a lavar os pés dos discípulos” (v.5). Aos olhos dos discípulos, e, de qualquer pessoa de bom senso a época, esta atitude é inapropriada e inadmissível. Porque esta purificação, geralmente, era feita por um escravo, em relação aos patrões; pelos filhos para com os pais; ou pela esposa, ao marido; e, numa demonstração de profunda estima por alguém, pelo próprio anfitrião. Todavia, continuava sendo um gesto de muita humilhação. Certos rabinos até orientavam escravos judeus a não realizarem este gesto para com seus patrões.

Jesus, despe-se de sua condição de mestre, de aparente homem livre, e assume a condição de um escravo, lavando os pés dos discípulos. Este é o sentido do v.1, “tendo amados os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”. O gesto de lavar os pés é, portanto, sinal profético da forma que sua vida assumiu, e assumirá na entrega no alto da cruz. Ele é uma antecipação da doação de si, em amor fiel. Este gesto ilustra o sentido do verbo agapáo (gr. ἀγαπάω), Amor. O Amor de Jesus é qualitativamente mais profudo; é a capacidade da doação de si; é um amor sacrifical, e, portanto, oblatívo. Mas, acima de tudo, operativo. É um amor capaz de esvaziar-se para que o outro encontre vida e seja pleno. É isso que os discípulos precisam aprender, assimilar.

Chega a vez de Pedro. Consciente da conotação humilhante daquele gesto, ele protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?”(v.6). Para si e seus companheiros, aquela atitude era inconcebível. E, de fato, o é para aqueles que ainda não conheceram em profundidade o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma que, por hora, eles não sabem o  seu significado (isto só acontecerá à luz da Ressurreição). Mas, para aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar quando o superior se torna inferior!

“Tu não me lavarás os pés, nunca!” (v.8), declara o discípulo. O que Pedro não quer aceitar e, demora a assimilar, é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão de que o mestre se faça servo; que o senhor se torne escravo. Impensável que um mestre, um rabino, um líder fizesse algo assim. Ainda pensa que é ele que deve levar o mundo nas mãos. Que tem que fazer tudo sozinho. Que é ele que tem que ser forte. Contudo, Jesus inverte as lógicas. Ele não veio para ser servido, mas para servir. Ele não veio para ser senhor da vida dos outros, mas para fazer-se servo de todos. Ele não veio impor sua lei, mas para doar a sua vida.

O Senhor responde, dizendo “que não terá parte com ele, caso não deixe lavar os pés” (v.8b). Em termos joaninos, “não ter parte” significaria não participar da plenitude e inteireza de Sua vida. Por outro lado, “ter parte” significaria ter em si a vida de Jesus e torná-la vivida de novo, através da existência do discípulo e da comunidade. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical. Se Pedro (e qualquer outro discípulo) não aceitar o gesto de Jesus, não participará da Sua obra messiânica. Não contemplará a Sua glória. Ele está a mostrar que é necessário ser primeiro lavado por Ele, para poder lavar os pés dos outros.

O Jesus joanino, depois da incompreensão demonstrada por Pedro, volta à mesa, retoma sua condição de mestre e explica-lhes, então, o gesto. De fato, os discípulos reconhecem-no como Mestre e Senhor. Mas se Ele, nesta condição lhes lava os pés, devem também eles fazer a mesma coisa: lavar os pés uns dos outros, tornando-se escravos uns dos outros pelo amor fraterno. Aqui se encontra, pois, o nexo entre eucaristia e lava pés. O gesto profético que realiza Jesus é colocado durante a ceia pelo evangelista João. Isso é muito significativo. Mesmo não narrando as palavras sobre o pão e sobre o cálice, como fazem os sinóticos, o Quarto Evangelho se insere nesta lógica. A ceia, contém os gestos de comer do pão e beber do cálice. Jesus interpreta e identifica o sentido de sua vida e missão à semelhança do que acontece com o pão e o vinho: da mesma forma que o pão é partido, espedaçado, aniquilado, ao ser comido, e a uva, pisoteada aniquilada para produzir o vinho, sua carne (simbolizada pelo pão) e sua vida existencialmente histórica (vinho) terão o mesmo sentido. É, precisamente, neste contexto, que o gesto do lavar os pés encontra sua mesma força de significado. Por isso, não há “fazei isto em minha memória” sem “dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz”. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical.  Não há Eucaristia sem lava-pés!

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


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