sábado, 24 de fevereiro de 2024

II DOMINGO DA QUARESMA (Ano B) - Mc 9,2-10:

 


A liturgia deste II Domingo da Quaresma apresenta o texto marcano da transfiguração do Senhor, em 9,2-10. O relato é repleto de elementos simbólicos que ajudam a recolher a mensagem essencial para este tempo quaresmal: permitir-se transfigurar. Transfigurar a mentalidade equivocada acerca de Deus e do caminho de Jesus; transfigurar para a condição de filhos de Deus e discípulos do Reino, rompendo com tudo aquilo que pode gerar a desfiguração e a ruptura com o querer do Pai. Isso posto, se pode mergulhar no relato bíblico.

“Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha. E transfigurou-se diante deles” (v.2). No texto original, Marcos inicia a cena com um indicativo temporal, omitido pelo texto litúrgico, o que poderia dar ainda mais ênfase a uma das mensagens que o texto deseja transmitir: “seis dias depois”. Com essa determinação temporal, o evangelista pretende aludir ao sexto dia da criação, no qual Deus criou o homem. A informação é profundamente catequética: ensinar para sua comunidade a quê qualidade de vida o ser humano se encontra chamado a viver: uma existência que não sucumbe com a morte, mas que através dela iniciará uma nova existência.

O evangelista insiste no caráter privado do ensinamento, destinado somente aos três discípulos. Estar com Jesus não significa possuir algum privilégio em detrimento daqueles que não o acompanharam na ocasião. Ao contrário, os três seriam, na verdade, os mais necessitados dos ensinamentos do Mestre, e, portando de correção e de uma verdadeira conversão. A cada um deles, por exemplo, o Senhor adiciona um sobrenome: a Simão, o complementa com Pedro – cabeça e coração endurecidos, a ponto de obstaculizar o projeto de Deus; a Tiago e João, apelida-os de Boanerghes (lit. “Filhos do trovão), identificando neles a personalidade e o temperamento explosivo.

Marcos situa a cena. Não por interesse geográfico, mas por necessidade teológica. Na Bíblia a montanha é o lugar da manifestação de Deus e de sua vontade; o lugar do encontro com ele: Abraão no monte Moriá (Gn 22), Moisés no monte Sinai ou Horeb (Ex 19; Dt 5,10-12), Elias no Carmelo (1Rs 18,20-40) e no Horeb (1Rs 19), o Templo no monte Sião. É, portanto, o lugar da condição divina. Ao subir a montanha com Jesus, os discípulos são convidados a fazer uma experiência nova com Deus.

Ainda no v.2, o evangelista informa que Jesus foi transfigurado diante deles. O verbo grego para esta ação é metamorphôomai (gr. μεταμορφόομαι). Ele trata de revelar aos discípulos a sua condição glorificada, que passará pela morte. Esta, não destrói a condição humana, mas a torna permeada da potência da vida divina. Lido fora do contexto imediato, o texto pode perder sua força de sentido. Por isso, se faz necessário recordar que, na cena anterior, o Senhor, pela primeira vez, anunciou o seu caminho de paixão, morte e ressurreição, imediatamente após a confissão acerca de sua identidade messiânica: o Cristo de Deus (Mc 8,29). Para corrigir a mentalidade dos discípulos que pode estar equivocada, Ele lhes fala a respeito do caminho que abraçará, isto é, a sua forma de ser o Ungido de YHWH: “era necessário que o Filho do Homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos sacerdotes e escribas, fosse morto e que, depois de três dias, ressuscitasse” (Mc 8,31). Mas os discípulos, representados por Pedro, não entendem e oferecem forte resistência. Para eliminar esta atitude e corrigi-los, Ele se decide, então, por leva-los a esta experiência com o Pai, na alta montanha para revelar algo.

Marcos, ao relatar a experiência faz questão de mostrar que é o Pai que realiza a ação de transfigurar a Jesus. Ele redige a frase, utilizando o verbo na voz passiva. Literalmente, “Foi transfigurado” (gr. μετεμορφώθη/metamorphote). É o que se convenciona chamar de Passivo divino (Passivum Divinum): a voz passiva, na qual se flexiona o verbo indica que a ação é realizada por Deus. Assim, é Ele que revela a identidade e a condição verdadeira do Filho Jesus.

As vestes brancas e brilhantes, são, no gênero literário da apocalíptica, os símbolos da intervenção de Deus na história (Dn 2,34.45; Lc 24,44). Marcos se serve destes elementos do Antigo Testamento (luminosidade, nuvem e vestes brancas) para ensinar, através da cena da transfiguração, que a ressurreição de Jesus será a definitiva intervenção de Deus na história (Mc 16,12), e, portanto, da vida divina: as vestes brancas e resplandecentes são um sinal do mundo divino, um sinal de alegria e vitória. Um sinal de vida indestrutível. Nesse sentido, os discípulos são chamados a transfigurar a mentalidade da rejeição, para a aceitação do projeto de Deus; do medo da morte e do caminho do mestre, para a adesão ao sentido de vida Dele. A informação contida no v.3, de que nenhuma lavadeira sobre a terra seria capaz de alvejar as vestes serve como chamada de atenção para o fato de que esta condição transfigurada/ressuscitada não é fruto de um esforço humano, mas é obra de Deus no Filho, e do Filho nos discípulos.

No v.4, Marcos narra que, ao lado de Jesus aparecem Moisés e Elias a conversar com Ele. Os dois personagens do Antigo Testamento aludem à Lei (Moisés) e à Profecia (Elias). É interessante como a cena é construída: ambas personagens importantes do AT aparecem uma de cada lado de Jesus, ficando Ele ao centro da cena. Ou seja, numa visão panorâmica, Moisés viria primeiro, em segundo Jesus, e, por fim, Elias. Isso é muito importante, pois, na tradição oriental, aquele que vem em segundo lugar, e, ocupa, nesse sentido o centro, merece todo o destaque e importância. O autor tem a intenção de mostrar para a sua comunidade que as duas personagens do AT convergem para Jesus. Ou seja, que Ele realiza todas as expectativas suscitadas pelas Escrituras (Lei e Profecia). Mas, tem, ainda, a finalidade de mostrar que Ele é o enviado definitivo e esperado para os últimos tempos.

Todavia, os discípulos não entendem, e, equivocam-se na leitura e interpretação da cena. Simão, como porta-voz deles toma a palavra, e propõe levantar ali três tendas. Marcos faz questão de mostrar o erro da personagem.  Pedro subverte a ordem dos três: menciona Jesus, em seguida Moisés, colocando-o no centro (lugar de importância), e Elias. Ao tirar o Senhor do centro, ele e os outros dois discípulos preferem o caminho de Moisés, que é o da lei, o qual representa poder, dominação, ao mesmo tempo que aderem ao caminho encolerizado da personalidade de Elias. Estão presos às personagens do passado, e não se atém ao presente: o tempo pleno, no qual Deus faz ressoar sua Boa Notícia através de seu Cristo. Recusam, assim, a Jesus como o enviado de Deus, bem como o seu projeto e caminho. Não é por menos que o evangelista coloca na boca de Pedro o mesmo título com o qual Judas, o traidor, se dirigirá: “Rabi” (mestre). Para eles, o Senhor não passa de um simples mestre. A visão equivocada necessita também transfigurar.

Marcos deseja mostrar a tentação sofrida pelo discípulo: resistir e se opor ao projeto de Deus em Jesus. A dificuldade de aceitar o caminho proposto pelo Cristo. Querem um Messias que siga as próprias conveniências, as expectativas antigas; um guerreiro, um nacionalista (pronto para restaurar a antiga dinastia de Davi); alguém que venha com feitos extraordinários e com poder, inclusive para dominar e submeter. Este é o imaginário que permeia a cabeça de Pedro, e que embasa as suas convicções e a de seus companheiros. Eles ainda não conseguem se transfigurar. Ainda estão desfigurados, e, com isso, desfiguram a compreensão acerca do projeto de Jesus. Contudo, o discípulo é convidado a romper com a ideia de construir tendas.

Construir tendas pode transmitir a ideia de fixismo e imutabilidade. “Esta bom assim; esta ideia me agrada; este modo de pensar e de agir é melhor! Para quê mudar?” Isto é muito sério e grave, principalmente quando relacionado à Deus. Porque pode revelar a intenção e a tentação de coloca-Lo numa tenda; de protege-lo; de aprisiona-lo ou defini-lo a partir das próprias convicções. Fundindo os horizontes da narração (30 d.C) com o tempo da comunidade (70 d.C), o texto é atualizado para nós. A comunidade cristã para a qual Marcos escreve nos idos dos anos 65-70 sofre a perseguição do império, em Roma. Para a comunidade do evangelista, armar as tendas e fixar-se no lugar, poderia significar a alienação da vida, mediante uma fé descomprometida com a realidade; a mentalidade de reduzir a fé e a vida cristã a uma contemplação mística do encontro com Cristo. Contudo, o texto não para na comunidade de Marcos, mas se torna contemporâneo a nós. Por isso, o alerta acerca destas tentações destina-se aos discípulos e às comunidades de todos os tempos e lugares.

Então, de uma nuvem que descia sobre eles e os encobria, se escuta uma voz (v.7): “Este é o meu Filho amado”. A mesma voz que havia rasgado o céu na narrativa do Batismo. O filho amado, conforme tradição bíblica, indica “o herdeiro”, aquele que carrega a plenitude da identidade do seu pai. Ao intervir no devaneio de Pedro, declarando ser Jesus o Filho amado, Deus está querendo revelar que a sua totalidade e plenitude está Nele. O Senhor, em seu agir e ensinamento, traz com sigo a plenitude da presença do Pai. Em Suas palavras e em seus gestos o Pai se faz presente. Por isso, a ordem: “escutai-O!”. O imperativo “escutai-o”, significa acolher na vida a palavra do Cristo e seu caminho, ainda que seja marcado pela Cruz.

Somente mediante a escuta da palavra (da vida, pessoa e ensino do Mestre) e do seguimento, os discípulos podem transfigurar. Na medida em que vão descobrindo a novidade e identidade do Senhor, vão, então, reconhecendo-se também a partir de dentro, e poderão dizer-se, com sinceridade, enquanto discípulos do Reino, e se realmente se encontram no caminho do seguimento (também perpassado pela cruz), em vista de uma vida ressuscitada.

Jesus, ao final da narrativa dá uma ordem. Os discípulos não devem contar a ninguém a experiência vivida ali, até que o Filho do homem tenha ressuscitado dos mortos. Somente após a sua ressurreição é que se poderá falar Dele como Filho de Deus, porque será ela a iluminar o sentido de sua missão e existência. Do contrário, o discípulo ainda não estará em condições de falar nada acerca da experiência vivida ali. A ordem dada por Jesus pode ser compreendida da seguinte maneira: “não digam ou espalhem nada que seja contrário ou que possa distorcer o sentido da vida que escolhi viver; não digam nada que induzam as pessoas a caírem numa realidade ilusória da fé”. Por isso, importante é descer da montanha com Ele, e assumir a mesma fidelidade ao projeto do Pai. O lugar definitivo de Deus não é alta montanha, mas sim onde se encontra a humanidade.

A transfiguração plena do discípulo é um processo que vai sendo vivido a cada momento em que ele se dispõe a escutar (e seguir) o Filho amado, nosso irmão. A Sua vida foi uma intensa e fiel escuta da Palavra de seu Pai. Só mediante esta atitude Jesus pôde ser transfigurado pelo Pai. Porque decidiu-se firmemente a vive-la.

Como nos encontramos: em transfiguração ou em desfiguração? O que em nós precisa ser transfigurado? Temos exercitado a escuta da Palavra de Jesus? De quais tentações as nossas comunidades devem ser transfiguradas (comodismo, fixismos, tradicionalismos, descompromisso, alienação, uma fé mistificante e mificante desencarnada da realidade)?

A vida transfigurada só pode ser vivida quando assumido o caminho da escuta (conhecimento), do discipulado e do seguimento a Jesus. Assim poderá o discípulo responder sobre si. Só assim poderá deixar-se transfigurar para a imagem do Filho e de discípulo do Reino.

 

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

REFLEXÃO PARA O I DOMINGO DA QUARESMA (Ano B) - Mc 1,12-15:

 


O primeiro domingo da quaresma apresenta a tentação de Jesus sob a perspectiva do evangelista Marcos, Mc 1,12-15. Iniciar as meditações dominicais do tempo quaresmal com a leitura deste texto é uma oportunidade única. Mesmo a perícope contendo apenas quatro versículos, eles proporcionam uma enorme densidade. Por isso, concentraremos a atenção nos versículos doze, treze e quinze.

“O Espírito levou Jesus para o deserto” (v.12). A cena se desenvolve imediatamente após o Batismo do Senhor no Jordão. A teofania narrada pelo evangelista revelou Jesus como o ungido de Deus, enviado para realizar Seu projeto. O mesmo Espírito, que O havia investido para a missão de anunciar e inaugurar o Reino, o acompanhará em Seu ministério.

O Espírito é o dinamismo de vida e de amor existente entre o Pai e o Filho. Marcos indica com um verbo muito forte que Ele, literalmente, “impulsionou (empurrou/jogou) Jesus para o deserto”. O verbo utilizado é ekballo (gr. ἐκβάλλω). A intenção do evangelista é a de mostrar que é o Espírito que insere Jesus no mesmo caminho que marcou a vida do povo e dos profetas. Compreendamos o uso do tema do deserto pelo autor. Ele deve recordar para o leitor-ouvinte, o Êxodo: a saída dos hebreus do Egito rumo à terra prometida. Um caminho de libertação. Porém, este caminho será feito de forma nova.

No A.T, Josué, ao assumir a liderança do povo de Deus, após a morte de Moisés, guiou os israelitas na travessia do último obstáculo que os separava da terra prometida, o rio Jordão. O evangelista mostra Jesus saindo do rio para a margem oposta a Jerusalém, na direção do deserto. Sua intenção é a de fazer compreender para a sua comunidade que o Senhor é novo Josué (e, até nisso é possível fazer um jogo com o nome deles Yehoshu’a/Youshu’a), que inicia um novo êxodo para uma nova terra de liberdade. Com efeito, Marcos deseja ensinar para a sua comunidade que caminho de libertação e vida nova iniciados pelo Cristo é fruto do Espírito. Liberdade (libertação) e Espírito se encontrarão unidas na Sua práxis.

Em segundo nível, se deve sempre recordar que, conforme a tradição profética, o deserto se torna lugar da restauração da Aliança. Todas as vezes que o povo pecava e era infiel à YHWH, os profetas advertiam severamente aos israelitas, convocando-os para o reestabelecimento da relação com Deus. Portanto, ao narrar Jesus sendo impulsionado para o deserto pelo Espírito, Marcos indica a necessidade que o Mestre possui de estar alicerçado na Sua relação com Deus. Ao mesmo tempo que ensina ao discípulo a assumir o mesmo caminho.

Marcos informa que “E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás” (v.13). Na teologia bíblica, o número quarenta é simbólico. O evangelista não pretende fazer uma cronologia da vida de Jesus. Quarenta não significa um período exato, tampouco quantidade, mas acena para a totalidade de Sua vida. Ali, no deserto, Ele foi tentado por Satanás. O evangelho segundo Marcos foi o primeiro a ser escrito, e é curioso que ele não apresente as tentações, tampouco o número delas. Ele não jejua, como Mateus apresenta em seu relato – há que se ter presente que o relato mateano das tentações é uma redação bem elaborada e trabalhada por ele para atingir os fins específicos para sua comunidade. Mas, aqui, o autor narra, a seu modo, não apresentado o conteúdo das tentações. Mas qual a tentação sofrida por Jesus? A de usar sua autoridade e condição de Messias e Filho de Deus de forma equivocada; utilizar-se do caminho do poder, do prestígio, da glória, da fama, em benefício próprio; consiste, por fim, na ruptura com a condição de Filho.

Jesus não dialoga com o opositor. Sua relação não é com Satanás, mas com a criação e com o Pai. É o que v.13b pretende mostrar: “Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam”. O Senhor é a imagem do ser humano pleno e perfeito, pois ele consegue viver de forma equilibrada; em comunhão e em harmonia com a criação que o rodeia, simbolizada pelos animais selvagens, e vive na estreita comunhão com Deus, representado pela figura dos anjos que o servem. Marcos coloca Jesus como contraponto a Adão. No jardim, em Gn 1 – 2,25, o primeiro vivente provoca descomunhão e desarmonia na Criação quando não respeita o limite imposto por Deus. Jesus, pelo contrário, no deserto vai aprendendo a como ser o recuperador da obra do Pai, pois vive em relação com Ele e com a criação. Portanto, a adesão à tentação, proposta por Satanás, gera desarmonia e descomunhão. A opção pelo caminho existencialmente vivido por Jesus, recoloca a pessoa humana em seu devido lugar e igualmente capaz de vencer as tentações de uma vida inteira. Como Jesus fez. Por isso, ao ler as narrativas (marcana e mateana) das Tentações, é importante adquirir uma nova compreensão: as tentações percorrerão a totalidade de sua vida. Elas não aconteceram num momento determinado e depois desaparecem. Ao contrário, ele, durante sua missão, foi constantemente tentado a romper com Deus.

Quem é este Satanás? É uma figura literária. Não se trata de uma entidade, mas de uma função/atitude. É a ação de se colocar e agir contrário; realizar oposição ao projeto de Deus. No primeiro nível do texto, ele é personificado pelos chefes religiosos, os fariseus e os escribas, gente entendida da Palavra de Deus, que pouco viviam-na. Pessoas altamente religiosas. Mas que agiam como divisores e opositores em relação à Deus. Eles colocarão Jesus à prova, inclusive no último momento de sua vida, instigando-o a manifestar seu poder, descendo da cruz.

Porém, no segundo nível, e, agora, no horizonte da comunidade dos discípulos, essa função exercerá Simão Pedro, quando este se colocar contrário ao projeto de Jesus de subir para Jerusalém realizar até o fim a sua missão. Na concepção dos discípulos, o Messias não poderia ser um derrotado, mas vir com força, poder e violência para aniquilar os dominadores romanos. A Pedro, Jesus dirá, “vinde após mim, Satanás. Porque não pensas as coisas de Deus, mas dos homens” (Mc 8). Simão é chamado de opositor de Deus porque pretende impedir a Jesus de viver em plenitude a missão recebida, ainda que ela passe pela vergonha da morte, impingida pelo poder vigente. Nesse sentido, mesmo um discípulo de Jesus e do Reino pode-se colocar como opositor em relação ao projeto de Deus, e de divisor da comunidade do Reino. E esta é a tentação que o discípulo precisa aprender a vencer em Cristo.

Deus e Jesus não dividem a humanidade. Ao contrário, aproximam os homens entre si, e aproximam a humanidade para si. Deus e Jesus não dividem o homem e a mulher, mas colocam-nos em paridade nas relações, tornando-os um só corpo. Deus e Jesus não causam divisão entre as pessoas, rotulando-as em puras e impuras, mas todos são os destinatários do amor de Deus. Assim, as indicações dadas pelo evangelista, através do uso do verbo “tentar”, aplicado aos fariseus e aos discípulos é a seguinte: atenção, estas pessoas, sejam as lideranças judaicas ou o discípulo, piedosíssima, devotas, detentoras da moral e dos bons costumes, podem se tornar, na verdade, instrumentos de Satanás.

Jesus vence as tentações porque se reconhece conduzido pelo Espírito do Senhor; vence o sedutor e opositor ao alicerçar a vida no "deserto" que é o Pai. Triunfa sobre a mentalidade equivocada acerca de si e de sua missão, ao compreender-se um ser humano equilibrado e integrado com a criação, consciente de que dela é verdadeiro servidor e restaurador. Assim, o discípulo, ao se permitir ser conduzido pelo Espírito de Jesus, permanecer no "deserto" de Deus e reconhecer-se integrado e conectado à criação, com o próximo e com o Pai, consegue vencer as tentações.

“Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galiléia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (v.14-15). O marco temporal para Jesus retornar para a Galileia e dar início ao novo Êxodo, impulsionado pelo Espírito, é a prisão de João. Ele retorna para anunciar a Boa Notícia do Reino. Ele não fala de si, mas somente do Reino e do Deus que chama de Pai. O Evangelho de Deus é que o tempo da espera acabou e se tornou pleno.

O Reino de Deus chegou na nossa vida; em nosso deserto. Ali, o Espírito impulsiona para enfrentar as forças de morte, de opressão, de oposição, de resistência, ou seja, as seduções propostas por Satanás. Para isso, se faz necessário aceitar o convite de Jesus à conversão. Esta, não é somente uma mudança de direção. Antes, é um chamado à mudança de mentalidade (gr. μετανοέω/metanoéo), para ir muito além das velhas maneiras de pensar, de agir. O convite à conversão é acompanhado da proposta do crer. Crer é aderir; fazer a opção fundamental é Cristo. Iniciar uma relação nova e repleta de vida. Assimilar a forma de vida do Senhor. Ao aceitar o convite da conversão e da adesão ao Evangelho, o discípulo poderá iniciar o processo da vitória das tentações.

O texto deste primeiro domingo do tempo quaresmal instiga-nos algumas provocações. Temos a coragem de deixarmo-nos impulsionar pelo Espírito para o Deserto, com Jesus? No batismo fomos ungidos com o mesmo Espírito do Senhor. Ele, mesmo ungido, sofreu as tentações constantes em sua vida e missão, por isso: enquanto batizados, quais tentações que fizeram parte da vida do Senhor, também me rodeiam? Tenho caído nelas? Quem somos nesse deserto, tentados (como Jesus) ou tentadores (como o Opositor, Satanás)?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré; Arquidiocese de Botucatu-SP.


terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

QUARTA-FEIRA DE CINZAS - Mt 6,1-6.16-18:


O tempo da Quaresma, momento de Graça, conversão, reconciliação, que visa preparar o cristão-católico para o ápice da vida de fé, a pascoa do Senhor, inicia-se nesta quarta-feira de cinzas, com um texto evangélico muito provocador e bastante profundo. Ele é sempre tomado do capítulo sexto do Evangelho segundo Mateus, inserido no Sermão da Montanha, o discurso inaugural de Jesus no primeiro evangelho (Mt 5,1 – 7).

O capítulo seis começa com uma exortação de Jesus aos discípulos, “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serem vistos por eles (v.1)”. Jesus chama a atenção dos discípulos, dentro da catequese de Mateus, para um tema muito importante para a tradição bíblica: a justiça de Deus (Justiça do Reino). Ela deve ser superior à “justiça dos fariseus”.

A justiça na bíblia é a vontade soberana de Deus. Dito de outra maneira: é o senhorio (vontade) de YHWH, acontecendo na história e na vida do ser humano, que, ao se tornar discípulo do Reino, tende a ser a expressão histórica do agir divino. Assim, a Justiça do Reino é uma forma de viver – uma ética de vida. Jesus está chamando a atenção do discípulo para o seguinte: aquele que adere à sua Palavra, ao seu modo de viver, não pode mais ser como os mestres da Lei e fariseus. Isto é, devem romper com a moral deles.

Mateus, recuperando o ensinamento de Jesus, quer ensinar que o agir do discípulo deve ser discreto, como o sal, que não é visto, mas que se sabe presente porque se pode senti-lo. Ou seja: a religiosidade do discípulo do Reino não pode ser exibicionista, e nem a religião deve se sujeitar a isso. Uma certa ala do farisaísmo daquele tempo era muito exibicionista. Era uma piedade muito afetada, de modo a se colocarem sempre em evidência e serem considerados perfeitos e santos. O Senhor não quer que essa mentalidade e estas práticas estejam presentes na vida dos discípulos e das comunidades. A perfeição e a santidade a serem esperadas do fiel-discípulo deverão ser vividas em outra ordem.

No v.2-4, Jesus reinterpreta a prática da esmola: “Quando deres esmola não façais como os hipócritas... em público para serem vistos e elogiados”. As obras de caridade, a Lei e o culto eram consideradas as três colunas de sustentação do mundo judaico. Daí a importância da esmola (Tb 4,7-11.16-17; 12,9). O discípulo, porém, é exortado a não fazer como os hipócritas que dão esmola pelas ruas e nas sinagogas, onde se reúne muita gente, de modo a chamar a atenção sobre si e granjear elogios. Esta já seria a recompensa deles. Para dar ênfase à atitude equivocada que deve ser corrigida Jesus é duro na orientação, ao utilizar o adjetivo “Hipócrita”. Quem eram estes? Em primeiro lugar, os atores dos teatros da antiguidade clássica, que, ao atuarem na interpretação de um papel vestiam a máscara, chamada hipocretes. A vida de fé, a religião e sua expressão mais profunda, isto é, a religiosidade não podem ser palanques para uma peça de teatro, tampouco ser elas mesmas uma encenação. No horizonte do ensinamento do Senhor, os hipócritas são os líderes religiosos de seu tempo, e no panorama da vida comunitária, que é justamente onde o texto incide, são os fieis que ainda possuem uma visão equivocada da fé vivida.

“De modo que a mão esquerda não saiba o que faz a direita” (v.3). Na antropologia bíblica, a mão responsável por fazer o bem é a direita. A mão esquerda, faz o mal. A esmola, entendida como caridade precisa ser discreta. O que a caracteriza como um gesto autêntico de piedade, porque pautada unicamente pela gratuidade. Por isso, ela é testemunhada apenas pelo Pai, que recompensará o discípulo da maneira adequada. Um aspecto muito importante da caridade é o fato dela projetar a pessoa para a relação com o próximo necessitado. Este é o peso que ela deve assumir na vida do cristão, a partir da ressignificação que Jesus faz desta prática. Ele se torna o modelo de vida para o ser humano que abraçou a Justiça do Reino. Porque toda a existência e missão do Senhor são uma constante saída e doação de si para o outro.

Os v.5-6 tratam da oração, que deve ser do mesmo modo. Na intimidade e no silêncio. O discípulo do Reino não deve rezar de maneira teatral, como os hipócritas. Ela não pode ser uma máscara, que oculta as incoerências pessoais. A oração do discípulo deve ser feita com simplicidade e discrição, no oculto do próprio quarto (2 Rs 4,33), de modo a ser visto apenas pelo Pai. O próprio Jesus rezava solitário (Mt 14,23; Mc 1,35; 6,46). Nesse sentido, Ele se torna o modelo para o ser humano orante, relacionado e referenciado à Deus. Com isto, não se está proibindo a oração em comum (Mt 18,20), prática muito antiga das comunidades cristãs. Ele mesmo participava delas na sinagoga (Mc 1,21; Lc 4,16). O Cristo questiona, sim, a motivação e a atitude equivocadas por parte de quem reza. A oração, assim sendo, coloca o discípulo na relação com Deus.

Já os v.16-18, tratam do tema do Jejum. O Jejum é uma prática de controle contra as desordens interiores. É a possibilidade da integração relacional consigo mesmo. A maneira hipócrita de jejuar consiste em desfigurar-se, empalidecendo a fisionomia, assumindo uma aparência desarrumada, de modo a ser percebido e, por isso, ser louvado pelos demais. Se assim for, então este jejum não servirá, porque visa mostrar o exterior (a cara de coitadinho), e não corrigir o interior.

Para Jesus, esmola, oração e jejum estão no mesmo nível e só têm sentido se estiverem unidas, pois são inseparáveis e inter-relacionáveis. É digno de nota que, a forma como Mateus estrutura o texto, nos ajuda a perceber essa dinâmica interna entre elas. Quando os autores colocam em segundo lugar alguma coisa, dito, pessoa, seja na estrutura da frase, ou na própria obra, significa que este segundo termo tem importância. No caso, a prática da oração vem elencada por Jesus em segundo lugar, entre a caridade e o jejum.

A oração, na vida cristã, é muito mais do que decorar fórmulas prontas (e mágicas, dependendo da concepção equivocada). Ela é a oportunidade da relação com o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. É a orientação da vida para Ele, centro e meta da existência. Estando no centro da estrutura do texto, enquanto relação com Deus projeta a pessoa para relação com outro, ou seja, impulsiona para a caridade. E, por fim, conduz o ser humano para a relação e ao equilíbrio com sigo próprio.  Nesse sentido, a oração deve ser verificada na vida concreta, a partir da caridade em favor do próximo, e o jejum deve transformar-se em oferta aos mais necessitados. Quando as necessidades do outro são ignoradas, a oração e o jejum se tornam teatro, encenação, ineficazes e insignificantes.

O Papa Francisco disse certa vez que a Quaresma, a qual iniciamos com este belíssimo evangelho, é uma constante viagem de regresso para o Pai. Isto é, a reorientação da vida para Deus. Estes momentos de recentramento são revitalizadores. A nossa vida não é só um conjunto de inevitabilidades: ela tem de ser uma opção fundamental, isto é, tem de ser algo decidido e escolhido, que eu quero; um caminho que escolho, em diálogo com o Espírito Santo. A minha vida, tem de ter fundamento, para não ser uma deriva, um fragmento flutuante no oceano convulso. Precisamos de um centro. E, para isso, precisamos de momentos de recentramento para escutarmos a voz interior, para nos escutarmos mais profundamente, para perguntarmos: “O que é que eu vivo? O que me enlaça? O que procuro? O que sou?”. Concluo ainda citando o Cardeal Tolentino Mendonça: “A Quaresma não é um momento zen na Igreja; não são quarenta dias para tentarmos fazer rituais mais ou menos arcaicos. A Quaresma é um tempo revitalização, um tempo para nos colocarmos as perguntas-chaves que vão favorecer o renascimento do que somos. E Deus, nosso Pai, sabe como cada um de nós precisa de renascer. Por isso, este é o tempo de voltar a si.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

VI DOMINGO DO TEMPO COMUM (Ano B) - Mc 1,40-45:


O sexto domingo do tempo comum conclui a meditação do dia missionário de Jesus, narrado no primeiro capítulo do Evangelho de Marcos. Depois de iniciar o ministério público de Jesus nas margens do lago da Galileia, chamando os quatro primeiros para novidade do Reino de Deus,  de mostrar a libertação de um homem possuído por um espírito impuro na sinagoga, e de narrar o reerguimento da sogra de Pedro, o evangelista apresenta o último gesto de poder realizado pelo Senhor: a purificação de um leproso.

A narrativa mostra um novo deslocamento de Jesus, agora para a região da Galileia. No percurso, Ele se depara com um Leproso. Esta enfermidade deixava a pessoa nas condições de um morto-vivo. O aspecto era deplorável, devido aos membros necrosados e ao mal cheiro. A Lei judaica prescrevia que quem fosse vítima dela deveria ser afastado da vida social, e ser considerado impuro e pecador público, uma vez que a doença era vista como consequência do pecado (próprio ou dos antepassados). Não podendo, sequer, participar da vida religiosa do seu povo. Ficava estabelecido, ainda, que o leproso deveria andar com um sininho amarrado ao pescoço, gritando às portas das cidades, “impuro, impuro”. Ninguém, com um pouco de “bom senso” deveria chegar perto. Caso contrário, seria contaminado com a sua impureza e doença. Contavam, apenas, com a boa vontade de determinadas pessoas ou parentes próximos que levavam alimentos a eles nas entradas das grutas ou nos pequenos bosques em que viviam. O portador da lepra, naquela época, viva uma situação de extrema marginalização social e religiosa.

A lepra, conforme a mentalidade religiosa do tempo de Jesus possuía, além da conotação social e sanitária (proteção para a população, dadas as precárias condições de higiene), um aspecto ético e moral. Devido ao fato de um de seus principais sintomas ser o amortecimento do membro ou da parte do corpo infectada, analogamente ela era classificada como um amortecimento da vida ética da pessoa. Dizer que alguém era leproso seria equivalente ao afirmar que aquela pessoa estava amortecida em na moralidade, a ponto de não perceber a podridão em que sua vida se encontrava. Isto é, a lepra, para além de uma enfermidade exterior, apontava para uma realidade interior: sujeira, pecado, podridão, morte. Uma pessoa cuja vida encontrava-se distante de Deus, a ponto de não poder acreditar ser amada por Ele. Esta era a mentalidade das pessoas em relação a esta doença.  Mas Jesus quebrará com esta ideia.

O leproso se aproxima de Jesus e lhe pede, de joelhos: “se queres, tens o poder de purificar-me” (v.40). Lido na integra, o capítulo primeiro mostra um contraste entre as personagens. Na sinagoga há os que questionam a autoridade de Jesus frente ao endemoninhado que a reconhece. Aqui, o leproso reconhece autoridade de Jesus. O seu pedido, “Se queres, tens o poder.. (lit. podes)”, revela, na verdade, a intenção de Marcos: identificar Jesus como o autorizado por Deus, de anunciar e realizar seu Reino com palavras e gestos de poder. É interessante, porém, que este homem rompe com todas as prescrições que proibiam o contato com as pessoas. Ele vai ao encontro de Jesus. Quem é este leproso?

Uma vez mais, o evangelista se serve de uma personagem anônima. Sabe-se já, que, todas as vezes que os autores sagrados do NT fazem uso deste recurso literário, se tem a intenção de provocar o leitor-ouvinte do texto a identificar-se com a personagem. Nesse sentido, ela simboliza o discípulo que está iniciando a caminhada e o processo com o Senhor, mas que ainda precisa eliminar de si a lepra da imagem equivocada que faz do Pai e da missão do Cristo.

Em seguida, o autor focaliza internamente o sentimento de Jesus diante daquela pessoa: “cheio de compaixão” (v.41). Aqui tem-se um problema textual. Não parece ser este o verbo que foi empregado pelo evangelista Marcos. Nos manuscritos antigos aparece orghistheis (gr. οργίσθης) que é traduzido como ira/raiva ou indignação, e, não, compaixão, como aparece na cópia deste manuscrito. Entendamos: os biblistas, quando se encontram com dois termos, e não se sabe qual foi empregado pelo evangelista, devem escolher aquele mais difícil. Se ele se coloca entre “cheio de compaixão” (gr. σπλαγχνίζομαι) e ira (gr. οργίσθης), deve-se sempre escolher o mais difícil de ser utilizado, e, neste caso, o segundo. Seria muito fácil um copista, não entendendo o sentido da ira de Jesus traduzir o termo por “cheio de compaixão”. Certamente, o termo “ira” é empregado por Marcos. Mas, qual o motivo desta indignação?

Jesus se ira devido à condição de marginalização que o mal provoca às pessoas, afastando-as de Deus. A audácia do leproso que quebra a lei e se aproxima de Jesus cheio de confiança, provoca-lhe a ira contra o templo e contra a lei que marginalizava e explorava as pessoas, principalmente os enfermos. Causa indignação em Jesus a religião e os religiosos que excluem e marginalizam as pessoas. O que o Senhor faz é descrito pelo catequista Marcos: Ele estende a mão, toca o leproso, e, com a força de sua palavra purifica-o (cf. v. 41). Ao purificar o homem de sua lepra, o reinsere na vida e recupera lhe a dignidade. A ação realizada por Jesus é tão plena que ele envia o homem para o templo, não para um rito apenas, mas para denunciar a atitude excludente dos sacerdotes e dos chefes religiosos, servidores de uma religiosidade estéril e incapaz de recolocar as pessoas em sintonia com Deus. “Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova contra eles!" pode ser a melhor tradução.

No entanto, do mesmo modo que nas cenas anteriores, Ele ordena que o homem não diga nada a ninguém (cf. v.43-44). Jesus não quer sua missão compreendida apenas por estes gestos, como se fosse um curandeiro. Existiam muitos na época. Também não quer ser procurado unicamente por interesses. Quer ensinar, através desta censura, que a centralidade de sua missão não reside nos gestos que realiza, mas naquilo que Ele anuncia e faz acontecer: o Reino de seu Pai. Reino, que não tolera exclusão, marginalização; tampouco que o ser humano esteja amortecido ou encontre-se dormente em sua consciência, impedido de ver a realidade que o rodeia, de sentir e de constatar a sua condição desfigurada, a lepra, que o impede de responder livremente ao projeto de Deus. A censura pode muito bem ser um recurso literário do próprio Marcos, que trabalha com o tema do “Segredo Messiânico”, acerca da identidade de Jesus.

A narrativa mostra que a advertência não deu muito certo. O homem divulgou muito o fato. Consequência: Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade. Ficava fora e em lugares desertos. Interessante essa constatação do evangelista. No começo da narrativa, somos convidados a entender que o leproso é quem deve morar em lugares desertos, para não contaminar ninguém (ora, o encontro acontece no meio do caminho). Agora é Jesus que não pode ficar na cidade. Mesmo sendo uma catequese, o evangelista não deixa a coerência narrativa de lado. Mostra um Jesus consciente e consequente em relação às suas atitudes. Ele sabe que, ao se aproximar e tocar um leproso, deve ficar, no mínimo, quarenta dias afastado do contato com as pessoas, para certificar-se de que não foi contaminado pela doença. Por isso, a constatação que permanecia nos lugares desertos e fora da cidade. Ele assume a condição de marginalização vivida pelo leproso.

Ora, o evangelista mostra Jesus superando a lógica da moral religiosa de seu tempo, no intuito de ensinar que, quando a humanidade vive em situações de morte, de marginalizações, de exclusões, que desfiguram a dignidade, não há limites para Ele devolver-lhes a vida. Deus, em Jesus, “sai” para a condição da marginalização, para que o ser humano possa estar dentro do âmbito da vida. Ao mesmo tempo, esta indicação que o autor oferece serve como advertência para o discípulo: se ele quiser encontrar e seguir o Senhor, se faz necessário ir e encontra-lo nos lugares desertos da marginalização e da exclusão, pois é ali em que Ele se encontra. O lugar do discípulo é onde o mestre e Senhor está.

Quais são as lepras que causam amortecimento e desfiguram o ser humano? Nossas comunidades são lugares de purificação – acolhida, cuidado, promoção da vida e da dignidade de cada pessoa humana? Quais as lepras que ainda predominam em nossa sociedade? Temos a coragem de, com Jesus, colocar-se nos lugares desertos e afastados, a fim de resgatar e recuperar a dignidade dos irmãos que estão fora?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

V DOMINGO DO TEMPO COMUM (Ano B) - Mc 1,29-39:

 


O quinto domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo primeiro do Evangelho segundo Marcos. A perícope de hoje inicia-se a partir do v.29 e se estende até o v.39. É o final de “um dia de Missão” de Jesus, que havia começado no v.14, quando o evangelista fez-nos saber que João, o Batista, havia sido preso. Nas margens do lago de Genesaré encontra quatro homens e os convida segui-lo e tornarem-se pescadores de gente. Na cena seguinte, a pesca começa, ao realizar a libertação da consciência de um homem na sinagoga de Cafarnaum, enquanto ensinava a Palavra com autoridade.

O evangelista, na arte de narrar realiza a transição de cenário. Da sinagoga dos judeus, Jesus se dirige para a casa de Simão e André. A casa se torna, ao interno do evangelho de Marcos, o lugar do ensino e da realização da missão. Ela se tornará o ambiente da comunidade cristã. E isso é muito importante, pois esta não é a moradia de qualquer pessoa, mas de Simão. Ora, trata-se de uma imagem para a Igreja. Curioso é, que também dentro desta casa, exista uma pessoa impedida de viver plenamente, como na sinagoga, no relato anterior. Será na intimidade das casas que ele realizará os gestos de poder, com discrição, sem chamar a atenção. Portanto, para além de uma crônica dos fatos, é necessário que o leitor-ouvinte do evangelho, o discípulo, encare o texto como catequese e absorva os elementos simbólicos que apresenta, a fim de captar e entender a mensagem de salvação que brota da ação de Jesus.  

Marcos elabora muito bem a cena, com certeza a partir da tradição que recebeu. Na casa, Jesus é informado que a sogra de Simão se encontrava enferma: febril e deitada. Realiza, então, mais um gesto de poder: o reerguimento daquela mulher. É importante que nos detenhamos no termo utilizado pelos autores do Novo Testamento: “gestos de poder” (gr. δυναμις / dynameis). Ele se refere às ações realizadas por Jesus, as quais traduzimos equivocadamente por milagres. Estes gestos tem a função de revelar e confirmar que Ele é o autorizado – tem autoridade, a exousia – para pregar o Reino de Deus.

Já se sabe o significado simbólico da casa. É a comunidade dos discípulos. Da mesma forma, a mulher destinatária da ação de Jesus, bem como a enfermidade dela são elementos carregados de força simbólica. A mulher, por um lado, representa o povo de Israel no A.T. Cujo o esposo é Deus. Na perspectiva do N.T, esta mulher passa a identificar o novo Israel, os discípulos do Senhor, que formam a comunidade do Reino. Então, esta passagem tem a intenção de chamar a atenção do discípulo e da comunidade. Há uma provocação que Marcos deseja fazer ao leitor-ouvinte de seu evangelho. A mulher é uma metáfora para o discípulo que, mesmo estando na casa-comunidade, se encontra impossibilitado, bloqueado, resistente e refratário ao projeto de Deus. A condição da mulher – deitada e febril – ilustram esta condição. É, portanto, uma metáfora para o discípulo que tem dificuldades de assimilar e aderir a Jesus e a sua forma de vida.

Antes de refletir sobre o significado da febre, se faz necessário compreender o gesto de  Jesus. Subitamente, os discípulos falam da mulher. Isso é importante, pois eles dão a conhecer ao Senhor que existe ali uma situação que merece a atenção dele. Eles compreenderam uma novidade no ensino do mestre a partir do ocorrido na sinagoga: o bem do ser humano deve ser colocado acima de tudo. Deve vir antes mesmo da observância da Lei divina. Interessante, a centralidade na sinagoga recaia sobre a observância e no estudo da Lei. Na práxis de Jesus e na vida da comunidade, não será mais um preceito a ocupar o centro, mas a vida das pessoas. O centro daquela casa não era a Lei, mas uma pessoa a ser recuperada! Recorde-se que o preceito de guardar o sábado era o mais importante, sendo que quem o descumprisse poderia ser réu de morte. Jesus poderia muito bem ter dito, “esperemos passar o sábado”, mas não foi essa a sua atitude.

Marcos ritma a ação central de Jesus a partir de três verbos de movimento: aproximou-se, tomou-a pela mão e levantou-a (v.31). O evangelista quer recordar à sua comunidade o Sl 73,23, no qual o salmista louva a Deus por tê-lo tomado pela mão direita e introduzido em Sua Glória. Ser tomado e conduzido pela mão significa ser salvo por Deus; aponta para a realidade da ação e da presença de Deus. O gesto de Jesus chama a atenção, porque ele era desnecessário, e, ao mesmo tempo, proibido, devido ao repouso sabático e conforme a lei de pureza ritual. Ao tocá-la, sendo a pessoa em questão uma mulher, e, devido à enfermidade, Jesus, segundo a Lei, torna-se impuro. Mas a mensagem que Marcos quer transmitir é a de que, mesmo correndo tal risco, assumindo a impureza da mulher, Jesus comunica a ela a Sua força geradora e restauradora de vida.

O verbo “levantar” (gr. ἤγειρεν / ehgheiren) é muito significativo. O gesto de Jesus é descrito pelo evangelista com mesmo verbo utilizado na narrativa da ressurreição, para indicar a condição ressuscitada do Senhor. Em simples palavras: a simplicidade deste gesto, realizado na intimidade familiar, antecipa a vitória do Senhor sobre a Morte.

Qual é o significado da febre? É a compreensão equivocada acerca de Deus e de Jesus. A imagem errada que faz de si, do discipulado e da missão. Ainda no v.31, o evangelista narra que após a ação de Jesus, imediatamente a febre desapareceu e ela começo a servi-los. A febre que a mantinha deitada era a concepção de que o discipulado e o seguimento a Jesus consiste em ser servido. Ora, a enfermidade a colocava numa condição de cuidados, atenções excessivas, ser servida em suas necessidades. O encontrar-se deitada acena para o bloqueio, a resistência, e a paralisia diante da novidade que o projeto Senhor apresenta. Não é atoa que o autor utiliza o verbo “diakoneo (gr. διακονέω)”, que significa a atitude livre e amorosa de servir. O catequista bíblico pretende ensinar através deste gesto de Jesus que, o discípulo que permitiu ser tomado pelas mão e levantado por Jesus – ser ressuscitado por Ele – e, portanto, acolheu sua mensagem, só pode ter uma única atitude: servir a todos, e nunca servir-se ou ser servido pelos outros. Antes, romper com ideia de ser servido.

Dos vv.32-34, o evangelista faz um resumo da ação de Jesus fora da casa. Para mostrar que, aquilo que aconteceu na intimidade da casa, deve se tornar programa de vida para Ele e Seu discípulo fora dela. Esta ação do Senhor deve se realizar sempre em saída. Fora da casa. Ou melhor, a casa deve estar em condição de saída. O que se vive e experimenta ali dentro, deve ser realizado fora dela.

Os gestos de poder operados por Jesus não são espetáculos públicos, mas atitudes de fraternidade e solidariedade, que permitem perceber de que lado Deus atua e se coloca na estrutura do mundo. Ao lado dos marginalizados. É no interior de uma casa, e ao redor dela, que Jesus realiza seus gestos. Não é no meio do barulho, ou nos locais de evidência. Ele não era um pop-star. Não era midiático. Também não era sensacionalista. Tampouco sofria da síndrome do Pavão, a exibir-se para chamar a atenção para si. Ele jamais se autorreferenciava. Marcos, enquanto catequista de uma comunidade, preocupa-se com que seus leitores-discípulos não concebam uma falsa imagem de Jesus: um curandeiro, um milagreiro (taumaturgo), como tantos de sua época, para que não tirem conclusões precipitadas nem se confundam sobre sua identidade antes da manifestação definitiva: a morte e a ressurreição. Por isso, os gestos de poder que ele realiza não devem ser absolutizados, mas colocados em relação ao Reino e ao Deus que chama de Pai. Dai, a ordem de fazer calar os espíritos impuros, retornando o tema do segredo messiânico, o qual só será revelado na Cruz.

O v.35 traz o nascimento de um novo dia na vida de Jesus e dos discípulos. Informa que, ainda de madrugada, o Senhor se colocou em oração, num lugar deserto. Depois de um dia intenso de atividades, parou para se abastecer; para entrar na intimidade com o Pai, no intuito de compreender-se a si próprio e a sua missão. É um modo que o evangelista também tem de mostrar que, enquanto homem, Jesus também sofria a tentação de colocar sua missão de anunciar o Reino no caminho do prestígio, da glória humana, do holofote; na lógica do poder (ou do super-poder). É pela oração – na intimidade com o Pai – que ele reorienta constantemente a missão da qual foi por Ele encarregado. E retira dali a força para rejeitar o caminho contrário. É no silêncio da oração, na noite do confronto consigo, que Jesus reorienta a sua vida e missão para o querer de Deus.

Simão o interrompe. Diz que O estavam procurando. Precisamente este discípulo personifica a tentação que Jesus sofre. Pedro não compreendeu também, ainda, o sentido da missão de Jesus. Pensa que o exibicionismo, o poder e o sucesso, que podem revelar uma mentalidade de poder, de domínio, de opressão são compatíveis com Jesus e seu evangelho. Este discípulo está febril também, só que não se dá conta. Mas o Cristo é consciente de sua vida e missão. Por isso corrige imediatamente o discípulo, dizendo que “deve ir às aldeias vizinhas pregar”, pois foi para isso que veio. Sua missão não consiste em ficar ali satisfazendo as expectativas. Antes, seguimento-discipulado, missão e, também, cruz. Uma experiência pessoal com Ele, da qual brota a disponibilidade para o seguimento e a comunhão de vida com a vida, história e opções Dele.

A partir do encontro com Jesus é que se pode ficar livre da febre que paralisa e prostra. 1) Qual a febre que ainda me impede de fazer uma experiência genuína com o Senhor? 2) Ao interno do cristianismo e das comunidades ditas cristãs que febres existem nelas e impossibilitam as pessoas de viverem um encontro verdadeiro e profundo com o Senhor? 3) Nossas comunidades tem sido - a exemplo dos quatro primeiros discípulos – continuadora do gesto gerador de vida do Cristo?

Sabemos dar nomes a estas febres?

Sem pretensão de viciar a leitura e a resposta às perguntas anteriores, gostaria de, criticamente, provocá-los, nomeando algumas, dentre as inúmeras febres. Por exemplo, a febre do poder, do domínio; a febre do ser visto, da fama, do sucesso, da autorreferência na vida de fé e na missão evangelizadora e eclesial. A febre do fechamento e do esimesmamento, que não edifica comunidade, mas que promove divisão, construindo guetos e feudos. A febre do tradicionalismo legalista, que paralisa a vida das pessoas com moralismos falsos, fazendo da vida um fardo pesado de se carregar. A febre do saudosismo vazio e morto, que não consegue ressignificar o presente e mirar para o horizonte da novidade que o Evangelho gera e promove. A febre do milagre, do sensacionalismo e do extraordinário, que aliena na mesma medida que as anteriores. A febre do negacionismo diante dos sinais que os tempos vão dando. A febre da indiferença ao Evangelho e do descompromisso com a vida comunitária e eclesial. A febre da marginalização, da exclusão, do descarte.

Há quem goste de viver doente, como que um hipocondríaco em matéria de fé; há, como no tempo de Jesus, aqueles que gostam de viver com febre e deitados. Agora, a escolha é de cada um: viver das febres ou deixar Jesus comunicar e gerar vida. Com Ele somos chamados a também tomar pela mão e comunicar vida aos que se encontram deitados em estado febril.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.